terça-feira, 10 de janeiro de 2017

408 - A MÁSCARA DE MPINGO ..............................



Depois do espanto e de olhá-la profundamente quedou-se olhando-a, remirando-a demoradamente até que um estremecimento a denunciou, assustara-se e levara involuntariamente as mãos ao peito persignando-se, como se no ritual duma crença em que eu sabia não acreditar ou cresse pudesse protegê-la.

Encontrei-a um dia destes quando visitava a exposição “Vantagens e Desvantagens da História para a Vida” no Fórum da Fundação Eugénio de Almeida, reconheci-a não só pela cicatriz e pela “pinta” mas sobretudo quando parou petrificada ante a exposição duma máscara negra africana em madeira de mpingo, jacarandá africano ou pau-preto. Não a via há mais de trinta anos, vira-a em Durban por volta de 75 ou 76 pois os pais chegaram a morar ao lado de uma vivenda onde vivi uns meses. Ela era então uma criança de uns doze ou treze anos  a quem eu fazia umas festas na cabeça sem lhe ligar grande importância.

- É tudo uma questão de fé, disse-me a páginas tantas. – Ainda recordo o meu pai distribuindo ordens, lugares e munições pelos homens deitados no interior de janelas e portas, o paizinho ajeitando o chapéu para que a aba o protegesse do raiar do sol, os homens praguejando, a neblina matinal confundindo-se com o fumo que os casões e os celeiros ainda largavam e por cima do cheiro a fumo o odor nauseabundo dos animais e dos pretos mortos e inchados, abandonados à sua sorte ia para alguns dias pois ninguém arriscava abandonar a segurança dos fortes alicerces da casa mãe.

Mpingo dissera o pai ao arrancá-la da cara do matulão estendido ao comprido na soleira da porta, lábios secos encolhendo em volta da boca cujos dentes o inchaço parecia querer expelir das gengivas, a barriga aberta por um zagalote, as tripas espalhadas empestando a atmosfera de um cheiro fétido.

Pau-preto, como os pretos que ela assustada guardara e apertara contra o peito como fazia com a boneca Carmina, também ela preta, ambas desandando para a casa grande onde as mulheres rezavam e choravam pedindo a intercedência de Deus a fim de levar os pretos para que se salvassem os brancos.

Olhei-a consternado.

- Além disto pouco mais recordo daqueles dias duma infância vivida em sobressalto. Nunca mais vi o paizinho vermelho de raiva como naqueles dias. Ainda o recordo bramindo:

- Bala de branco não mata preto, ai não mata, devem ter aprendido a lição os cabrões, não enterrem nenhum, deixem-nos ficar a apodrecer ou a servir de pasto à bicharada.

E não os enterraram, as cruzes ao fundo do jardim tinham todas nomes brancos, Eulália, Laura, Elsa, Ludovina, Natércia, Florindo, Metrogos, Fonseca, Marco, Rocha, Gervásio, Pacheco, Santos, Palma, Rolo, Desidério, Pimenta, Pessanha, e uma cruz pequenina da cadela Violeta que por vingança tinham degolado com uma catanada. Uma cruz maior, na qual enrolaram o terço com o qual andava sempre rezando, movendo os lábios numa ladainha que não serviu de remédio nem de consolo a ninguém, foi feita a preceito para a irmã Esperança. Mas decididamente o deus dela não estava olhando os brancos naquela hora fatídica.

Durante a viagem a Carmina perdeu os cabelos primeiro, uma perna depois e ao fim de tantos dias caminhando debaixo de sol acabou por perder a cor. Quando o primeiro camião da fila tocou o claxon anunciando Durban estar à vista e a viagem a chegar ao fim, deixei-a cair devagarinho pela janela do carro mal me senti ensanguentada e alarmando tudo e todos com um ferimento que parecia ter escapado ao mais atento e pôs os nervos da mãezinha em franja até ter acabado por sossegar e me acalmar também a mim explicando-me a natureza coisas.

- É a menarca, disse para o meu pai.

E foi o último episódio da minha vida em que sangue me poria em polvorosa. Custei a adaptar-me à escola em Durban, o monhé que dava as aulas não tinha a paciência da irmã Esperança e pela primeira vez na vida desejei enterrar alguém e esquecê-lo. Nesse ano ainda os meus pais conseguiram falar por telefone com a família na Covilhã e rumámos à metrópole, metade da minha vida foi passada em viagens, se não foi é o que sempre me parece, ou fugindo de uma coisa ou correndo para outra.

De volta a Lisboa, de que não me recordava minimamente, senti pela primeira vez ser indesejada. Para onde quer que nos virássemos éramos vistos como tendo peste, ou lepra, os pretos não gostavam de nós e fugimos deles, mas como fugir dos brancos, e para onde ? Em três ou quatro anos arrolei meia dúzia de namorados, não suportei nenhum e admito que fiz tudo para correr com todos eles. Todos com a boca cheia de solidariedade mas incoerentes entre o dizer e o fazer, nem lá a ignorância das gentes preenchia um décimo do que por aqui vi, ainda se vê. Cidades atrasadas, gentes atrasadas, ruas e ruelas tortas e tortuosas, tenho saudades das mentes libertas e dos espaços livres das cidades das colónias e de Durban. Aqui sou culpada, ainda não percebi bem de quê ma sou culpada, o remédio é usar uma máscara, é isso, fingir, ouvir, concordar, e depois fazer como quiser, esta gente é incapaz de tolerar seja o que for. Poderei um dia tirar a máscara mas já não sou a criança de há vinte ou trinta anos, Mudei muito, mudaram-me, a máscara garantiu-me a sobrevivência, lá fora a estupidez continua a mesma, contínua igual.

A conversa prosseguiria dias depois na sua casa em Cano, Casa-Branca, Sousel, terra onde o marido, veterinário, refez a vida e lhe repôs a calma numa alma torturada havia demasiado tempo. Puxou de um baú de onde retirou a máscara que o pai tinha arrancado do rosto de alguém diante dela naquele dia fatídico. Virou-a para mim e recomeçou o diálogo que interrompêramos dias antes:

- O óleo espalhado no corpo não evitou a bala do branco, nem o óleo nem as máscaras, mas a mim salvou-me a máscara que afivelei, salvou-me da estupidez e das incongruências destas gentes. Simbólicas as máscaras por vezes, quer sejam ou não irei restaurar a que tenho em casa e herdei do paizinho, passá-la a óleo e expô-la na sala, jamais deitarei fora esta máscara, não, não vou voltar a guardá-la, foste um herói paizinho, recordar-te-ei sempre como um herói, contra os pretos lá, contra os brancos cá, contra os preconceitos de toda a gente e em toda a parte. Quanto à minha máscara jamais a tirarei. Culpada, incapaz, todos somos considerados incapazes, só porque alguém se recusou a negociar a paz, só porque alguém não acautelou, não recorreu à diplomacia, não nos protegeu naqueles dias, nos dias em que todos sabiam o que iria acontecer e em que aconteceu. Só não soube quem não quis, só não sabia quem não queria, por que não nos defendeu quem nos convidara a ir ? África sempre foi dos africanos, como a Europa dos europeus e as Américas dos americanos. Angola era nossa, Angola não era nossa, e o que é nosso agora ? Uma dívida que vai durar duzentos anos a ser paga ? Nada, não temos nada, está tudo nas mãos das Tríades Chinesas, de Fundos Anónimos, de Mercados Invisíveis, os pretos quando quiseram lutar pela libertação ainda tinha a nossa cara para apontar mas se nós quisermos lutar agora pela independência a quem vamos apontar ? A quem ? Com o quê ? Quando ?  Como ? Que gente de trampa esta, que miséria de povo, gente de merda, este país dá-me nojo, só gente estúpida, corrupção e corruptos, e ninguém lhes mete as tripas ao relento… Expulsa de um lado, atirada para o outro, é assim que me sinto desde 74, mas que culpa tenho eu ? A quem fiz mal ? Quem foi o animal que assinou e selou o meu destino ?  Quem ?

E tu Diogo cala-me essa cadela e muda-me já a merda da televisão para o canal Disney que já não posso com a trampa do funério, e faz o que te digo ou desaparece-me da frente.

Desapareceu...

MÁSCARA  *

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.

* Álvaro de Campos, in "Poemas"

TABACARIA  **


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

** in Tabacaria /Álvaro de Campos (F.P)