No mesmo dia
em que o sociólogo e pensador Zygmunt Bauman num artigo brilhante (1) designa
por trampa as redes sociais, o meu amigo Faleiro posta uma frase bombástica que
por algum motivo o terá tocado “A mente não suporta ser nada” (2) e, ainda que
num repente me tenham acudido à memória as palavras de José Mário Branco
proferidas no longínquo ano de 79 (3) palavras que por si só seriam uma
completíssima resposta ao seu desabafo inconsequente, perderei todavia mais
tempo e paciência com ele que a Céu, que no seu entender, no entender dela, muito
lhe deve.
Percebo o
Faleiro, tem tido azar na vida é o que é, e a Céu nem foi o primeiro desses
azares, depois de juras juradas deixou-o de mãos atadas e abalou para as Arábias
com um enfermeiro artolas todo ele ai não me toques, que assinara um contrato
fartote mais parecido ao dum treinador. Ela continua a jurar-lhe amor e
envia-lhe postais ilustrados de arranha-céus desmesurados onde diz ser ascensionista
e poliglota.
- Sempre teve queda para línguas, diz-nos o Faleiro, saudoso e cheio de remorsos por agora o lambidinho ser o enfermeiro…
Na realidade a Céu era bióloga, tinha tirado um mestrado que lhe abrira as portas de um hospital veterinário onde havia quinze anos dava banho e penteava cãezinhos, e estava quase nos quarentas... Azarenta ela e azarento este Faleiro, festa de arromba em 2000 por ter acabado o curso em primeiro, engenheiro de correntes fortes, porém com tanta sorte na vida que nunca fez mais trabalhos que ligar dois zingarelhos e substituir-lhe os fusíveis. De empreiteiro em empreiteiro todos lhe ficaram devendo, nem tendo direito sequer ao desemprego de lei, pois os patrões nem salários pagavam quanto mais as habituais contribuições sociais. Um deles inda ia ajudando e no Algarve emprestando um chalé que por lá tinha, mas também esse p’ra comer o dito teve que vender e o Faleiro lá ficou uma vez mais a arder…
- Sempre teve queda para línguas, diz-nos o Faleiro, saudoso e cheio de remorsos por agora o lambidinho ser o enfermeiro…
Na realidade a Céu era bióloga, tinha tirado um mestrado que lhe abrira as portas de um hospital veterinário onde havia quinze anos dava banho e penteava cãezinhos, e estava quase nos quarentas... Azarenta ela e azarento este Faleiro, festa de arromba em 2000 por ter acabado o curso em primeiro, engenheiro de correntes fortes, porém com tanta sorte na vida que nunca fez mais trabalhos que ligar dois zingarelhos e substituir-lhe os fusíveis. De empreiteiro em empreiteiro todos lhe ficaram devendo, nem tendo direito sequer ao desemprego de lei, pois os patrões nem salários pagavam quanto mais as habituais contribuições sociais. Um deles inda ia ajudando e no Algarve emprestando um chalé que por lá tinha, mas também esse p’ra comer o dito teve que vender e o Faleiro lá ficou uma vez mais a arder…
O problema contudo
reside todo no facto de, para o meu jovem amigo Faleiro “as coisas” se passarem
totalmente lá fora, lá fora do seu âmbito pessoal, lá fora no virtual, eu disse
“no”, no virtual, lugar onde ele concebe agora a realidade e a luta, uma vez
que, a julgar pelas suas palavras, posições e atitudes é um tipo resignado, ele
mesmo o diz e confessa, admitindo inconscientemente que “de geração em geração
estamos a perder direitos, qualidade de vida e aos poucos se foi chegando onde ele chegou” tendo desistido de
ser quem é, de ser algo ou alguém, de ser alguma coisa na vida. A culpa será
portanto do tempo e da história, do passado, que é como quem diz, dos outros.
Não faço
ideia de como ele assumiu ou alguém lhe implantou tais coisas na cabecinha mas
está solenemente enganado, errado. A génese do problema que o afecta, e que
afectará centenas de milhar de jovens no país, é que ela a génese das suas
queixas, não radica no passado nem nos outros, radica no presente e nestes,
nestes que agora governam, põem e dispõem as peças no xadrez inclusive ele,
Faleiro, ele e todos os jovens que amocham e calam, preferindo levar a luta
para as redes sociais onde matam e esfolam de modo fútil e inconsequente.
O meu amigo
Faleiro está portanto muito pouco preocupado ou interessado no porvir, estará
mais resignado, até por desconhecer, por nem ter vivido o passado nem
naturalmente o conhecer muito bem, desconfio que nem muito mal, portanto, para
usar uma palavra que tão cara lhe é, dir-lhe-ei que o tempo não volta atrás,
mas que é uma pena já que o que nos espera no futuro, futuro que começou ontem,
nem é nada de bom nem nele se perspectivam moldes de cativar a juventude,
juventude que para melhor ser erodida e iludida se mantém agora até aos
quarenta anos e não tarda muito que oficialmente se seja jovem até aos
cinquenta…
Obviamente um
regresso ao passado é tão absurdo quanto um salto para o futuro e os problemas
com que a juventude hoje se debate não existiam há quarenta anos, senão
vejamos:
A)
Há 40 anos ninguém precisava tirar uma
licenciatura para vender sandes no McDonalds ou sentar-se a uma caixa
registadora num híper. Há 40 anos os jovens tinham bué de saídas profissionais
onde se realizarem e onde darem forma aos seus sonhos, desde logo uma guerra em
três frentes, corrijo digo quatro frentes para ser mais exacto, e onde através
do ingresso num dos ramos das forças armadas podiam alimentar vaidades pessoais
e egos, nos Comandos, Pára-Quedistas ou Fuzileiros qual destes corpos o mais
aguerrido, o mais famoso, reconhecido ou prestigiado. Existia a justa
perspectiva de atingir-se a glória através de um qualquer acto de heroísmo, de
reconhecimento pelos pares, de exemplo de bravura, nem que fosse a título
póstumo, uma medalha de latão honrosamente atribuída à família num dia de
cerimonial militar capaz de comover a pátria, os amigos e os presentes.
B)
Nem era precisa muita sorte para sobreviver às
guerras do ultramar, guerras que tanta celeuma costumam levantar. Foram das
guerras menos mortíferas que a história mundial regista e de tal modo foi empolada
a questão à sua volta que houve grupos de historiadores relutantes em admitir
a classificação de guerra apesar das tentativas de Salazar. Inclusive na ONU o
nosso problema no ultramar nunca logrou alcançar essa atribuição, essa categoria,
embora fosse reconhecido que o país sofria agressões cuja classe ou natureza
apontavam todavia para meros incidentes, inda que se pautassem por uma inegável
e pontual mas continuada violência. Israel que mantinha um qui pro quo idêntico
com a Palestina nunca viu ser-lhe reconhecido direito a usar a designação “guerra”,
até por não haver no caso de Israel, tal como no nosso não havia, declarações
de guerra trocadas, nem dois países directamente envolvidos no nosso caso pois
no caso de Israel a Palestina nem era reconhecida como nação. Era simplesmente uma
região e a ONU nunca fez mais que atirar para cima de Israel com resoluções que
jamais seriam cumpridas. Quer num caso quer no outro os contingentes de capacetes
azuis da ONU nunca foram mobilizados por oficialmente não existir uma guerra
declarada. De concreto sabe-se que na nossa “guerra” do ultramar faleceram em
treze anos perto de oito mil militares, metade deles em acidentes de viação, acidentes
com armas ou de outras quaisquer índoles que não directamente devido a esse tão
reclamado estado de guerra.
C)
A título meramente informativo e comparativo adianto
que a guerra de independência da Argélia conduziu à morte de 250 mil
combatentes de ambos os lados em apenas sete anos de confrontos, e que a guerra
civil de Angola (4), quase trinta anos, incluindo a decisiva, fratricida e
morosa batalha de Cuíto Cuanavale, a batalha mais prolongada no continente
africano desde a IIGG, fez tombar cerca de 500 mil africanos. A duração e o
morticínio de outras lutas ou outras guerras poderá ser avaliado com um simples
clique, vão ao Google ou à Wikipédia. Quanto ao resto cada lado de um conflito terá sempre os seus heróis e os seus mártires, que mui evidentemente para o lado contrário nunca passarão de párias...
Mas enfim, esqueçamos a guerra, quem
quisesse ficar por cá poderia igualmente armar-se em herói e abraçar uma
carreira de contestatário ou subversivo, granjeando dessa forma, mais tortuosa
contudo admitamos, o mérito que perseguisse. Bastaria ter a felicidade de ser
arrebanhado e bater com os costados no Aljube, em Caxias ou Peniche, e desde
que assim fosse o sucesso entre os seus pares estaria garantido. Portanto, de
um modo ou de outro, a favor ou contra, o futuro estaria sempre assegurado,
dois casos paradigmáticos e bem conhecidos vos vou apontar, o Major Valentim
Loureiro (o batateiro) e Manuel Alegre
(o poeta), ambos exemplos de abnegação e luta pela democracia, ou contra ela, e
que resultaram em soluções diferenciadas mas igualmente proveitosas e nada
despiciendas. Aquilo não era uma guerra,
era um modo de vida de onde todos tiravam proveito e quando não puderam tirar,
zangaram-se e deram uma golpada, fizeram uma revolução, a revolução do 25 de
Abril, cujo custo vais pagar com três palmos de língua fora porque os vampiros
que lá estão agora são trinta vezes piores que os senhores que lá estavam anteriormente.
Entre ser contra ou a favor dessa
guerra eu não teria duvidas, o que não quereria era ser ser moço de recados,
criado às ordens, porteiro ou segurança, venha o diabo e escolha qualquer
destas situações pois nenhuma delas oferece o mínimo prestigio ou o mínimo
futuro, E é tão mauzinho o futuro que temos pela frente que nem podemos sequer
mandar um patrão para o caralho e dar o salto para outro no dia seguinte, ou no
mesmo dia, today simplesmente não há empresas nem patrões. Esta nossa
democraciazinha com esta paz…zinha de merda e sem rupturas que se mantém a
balões de oxigénio não interessa a ninguém, a não ser a uma dúzia de
privilegiados que dela têm beneficiado como nunca. Com uma divida nacional
impagável, nem nos próximos duzentos anos vamos ter uma folgazinha para aliviar
o cinto ou os costados.
Será caso para dizer antes a morte que
tal sorte, por isso amigo Faleiro, mata-te e acaba com o sofrimento porque de
resto, por mais sonhos ou aspirações, desejos e ambições que acalentes, todos
os requerimentos que metas nos próximos cem anos simplesmente não terão
provimento. Nem cabimento. Posto isto toma e embrulha ó Faleiro porque a coisa
não vai acabar bem, é impossível que acabe bem. Nem a Céu vem, nem do céu tu
esperes o que quer que seja, conforma-te ou revolta-te, luta meu grande incréu…