Hoje fui
surpreendido, bem não fui surpreendido, surpreenderam-me, e considero não só agradável
essa surpresa, como terei que a considerar uma inaudita surpresa, daquelas que
de todo não esperamos e que, embora nos deixem de cara à banda, nos deixam
feliz o coração. Tanta felicidade porque hoje trouxe para casa um almoço que era
uma trampa. Vamos por partes, primeiro a sopa, depois o segundo e por fim a
sobremesa.
Quando eu e a
Luisinha andamos mais atarefados, assoberbados ou incapacitados, por falta de
tempo, de paciência seja o que for, socorremo-nos duma cantina e refeitório de
funcionários públicos aqui próxima de casa. Hoje, umas lulas mal feitas como a
merda e a saberem mal como o caraças acabaram por gerar uma conversa
interessante entre nós, e coisa incrível, entre essas lulas intragáveis e um
leite creme flutuando em canela houve tempo para a gente, ela ter-me-ia
repreendido aqui e obrigado a usar o nós, ela, a Luisinha, mas ia eu dizendo que entre as duas
coisas ainda houve tempo para nós nos descobrirmos, ou eu descobrir coisas novas
e surpreendentes sobre ela depois de quarenta anos de casados.
- Pois é
Bertinho, esta coisa da cozinha, de cozinhar, não é um dom que Deus tenha
concedido a algumas, ou alguns, evidentemente há quem tenha mais jeito para a
coisa, mais habilidade, mas isso acontece com electricistas, médicos, médicas, canalizadores,
enfermeiras, etc., o problema é que muita gente esquece que cozinhar envolve compreender
as ciências físico químicas que, pelo menos num aspecto básico todas estudámos
na escola.
- Sim, eu
também as estudei mas nunca as liguei à cozinha Luisinha.
- Pois é mas
tu tinhas a Mocidade Portuguesa, e o dia do Lusito, e a Bufa, e eu tinha
Lavoures e uma coisa que salvo erro se chamava Economia Doméstica a que muita
gente nem ligava, não apreciava, calhei estar desperta, não tanto por a minha
avó Joaquina ser uma excelsa cozinheira, como sabes, ou até a minha mãe que
Deus tem, mas sobretudo por ter tido como mestra, naquele caso dizia-se mestra
e não professora, uma mulher genial, ainda há-de aparecer perante mim um homem
tão genial como essa mestra Dominica sabes ?
- E eu pá ?? E
eu ? EU ????? Olha que tu também…
A mestra
Dominica não ensinava, só falava, contava histórias, mas aquela mulher tinha o
dom de ensinar, constava até não ser lá muito boa cozinheira, a verdade é que
jamais a esqueci, a ela e às suas soluções, solutos, solventes, concentrados, reacções
e reagentes, proporções, ocorrências, saturação, densidade, tempo e
temperatura, física pura Bertinho, física e química filho, era termodinâmica, ou
seja é física, é o estudo das causas e efeitos das mudanças que a temperatura
potencia, ou antes propicia Bertinho, quer quanto à temperatura em si quer
quanto à pressão e ao volume, por isso em cozinha nos socorremos de panelas de
pressão, e se não tivermos cuidado com elas a pressão faz aumentar as coisas e
sai tudo pelo fuinho de segurança, por esta válvulazinha, já me tens ajudado a
limpar a porcaria dos azulejos da cozinha… Calor é energia querido, energia
dinâmica, movimento, a termodinâmica essa energia não só coze, cozinha os
alimentos, os transforma, como cria movimento, cozinha mas também fez andar as primeiras
máquinas a vapor, aquela dona ou mestra Dominica era um must, eu ficava duas
horas de boca aberta ouvindo-a, babando-me, e para ser justa só uns anos mais
tarde a apreciei bem e fui capaz de reconhecer quanto de excepcional aquela
mulher era.
- Essa não
sabia eu Luisinha, nem fazia a mínima ideia, sabia que tinhas tido essas
disciplinas claro, todas vocês tinham, mas que te tivessem impressionado tanto
nunca teria acreditado. Mas essa do tempo e da temperatura alterarem sabor e textura ta boa, alteram a química, ta bem visto sim senhora, e o segredo no saber dosear a coisa, e mais um cadinho disto e daquilo, ter mão no acafrão...
- Não é uma
questão de impressionar, foi antes uma questão de saber ensinar, a tal ponto
que quando tive ciências já estava familiarizada e conhecia os termos, foi-me
portanto mais fácil aprender ciências, ao mesmo tempo facilitou-me a
compreensão da matéria de Economia Doméstica e do acto de cozinhar, acto velho
como o homem, que só depois da descoberta do fogo e de começar a cozinhar ainda
que toscamente os alimentos viu as calorias durarem mais tempo, o estômago despender
menos esforço a moer tudo, moer e desfazer, e lá está a química a funcionar, os
sucos solventes, os ácidos reagentes, a enterogastrona, a gastrina o suco
pancreático, a bílis injectando química naquilo, a solução transformando-se em
quimo, depois em quilo, o cérebro crescendo, a raça evoluindo, não sei já bem a
ordem das coisas e alguns nomes me hão-de falhar aqui mas no essencial era
isto, era e é isto que se passa, no estômago, nos intestinos, mas muito antes
numa panela, numa caçarola, num tacho, numa frigideira, é alquimia, cozinhar é
ciência e alquimia, claro que também um pouco de bom senso e intuição q.b. a própria
expressão q.b. deriva de deitar ou acrescentar a quantidade e o reagente certos,
ou a coisa dá porcaria…
- Tenho que
confessar que me surpreendes, caraças Luisinha, quarenta anos depois e quando
pensava não seres novidade nenhuma para mim sais-me com uma aula de ciências físico
químicas que me deixa de cara à banda, esta trampa já arrefeceu, antes assim,
está intragável não está Luisinha ?
- Bertinho,
até quando eu deito bicarbonato de sódio na panela para ajudar a cozer os grãos
nada mais estou fazendo que antecipando trabalho que caberia salvo erro ao
intestino, por isso quando tu comes os grãos irás ter menos trabalho a
digeri-los, d’outro modo o bicarbonato de sódio só entraria em acção quando o “bolo”
o quimo chegasse ao intestino, e assim quando fores à casa de banho graças a
este meu truque de magia alquímica até fazes mais molinho amorinho eheheheh !
- Para quem
comeu um almoço de caca estás muito bem-disposta, bem, tu na verdade nem
comeste, insiste na fruta querida, não podes passar em branco, logo lanchamos
mais cedo querida.
- Estou sim, bem-disposta
e grata àquela mulher que já não recordava há muitos anos, estávamos em 73, em 73
ou 74 mas lembro bem que foi antes do 25 de Abril, o que não recordo bem foi se
ainda na Escola de Santa Clara ou já na Preparatória da Rua Mendo Estevens,
frente ao jardim do Bacalhau, e lembro que foi antes do 25 de Abril porque com
o 25 de Abril ela desapareceu, desapareceu de Évora, levou sumiço, quero dizer
levou o ano até ao fim, até Julho, depois nunca mais ninguém a viu por cá, a
mim deixou-me saudades, saudades e uma dívida da qual somente passados anos tomei
conhecimento, talvez porque se vivia no velho regime ela ao dar uma receita
jamais chamava os bois pelos nomes, nunca nos deu uma receita de frango em
tomate, as receitas dela eram sempre Frango à Anne Frank, Espargos à Catarina
Eugénia, Cação à maneira de Carolina Beatriz Ângelo, Pezinhos à moda de Ana Castro
Osório, Peixinhos da horta como os de D. Teresa Horta, Rolo de Carne de Emmeline
Pankhurst, Polvo à Maud Watts, Os Mil Bolinhos de Millicent Fawcett ou Ensopado
à maneira de Emily Wilding Davison, curiosamente nunca mas nunca deu a mais
pequena explicação quanto a quem eram todas aquelas mulheres que tomámos naturalmente
por excelsas cozinheiras de fama mundial.
- E afinal
não eram ? Se não eram cozinheiras o que eram então ?
- Não
imaginas Bertinho o choque que tive quando pelos meus quinze ou dezasseis anos
ouvi ou li pela primeira vez o nome de Anne Frank, claro que quis logo saber
tudo sobre a tal cozinheira da receita de frango, imaginas o meu espanto quando
vi quem era Anne Frank, o espanto virou curiosidade, corri a saber quem eram as
outras cozinheiras e nessa tarde chorei baba e ranho agarrada a uma
enciclopédia nova que chegara à biblioteca, tantos anos depois D. Dominica
acabara de me dar a sua última lição de culinária e nesse momento amei-a tanto
quanto à minha mãe e à minha avó Joaquina.
Confesso que
também eu fiquei impressionado com esta mulher, esta D. Dominica, professora
Dominica de quem a Luisinha nem o apelido recorda, é bom, é reconfortante saber
que mesmo nos tempos mais fumegantes do velho regime, fumegantes pois de
cozinha e cozinhados tratamos, houve gente que não se rendeu, que não temeu,
que foi exemplo quando ser exemplo era raro e exemplar, era sobretudo perigoso
e exigia coragem inaudita, ao invés de agora que se calam, que comem e calam,
que engolem e calam, que podiam gritar e se calam, todos, ou quase todos, no mínimo
muitos, demasiados…
T rês de areia e dois de cal, não me ocorreu dar
outro título a esta história em que o almoço servido parece ter sido
confeccionado tal qual a massa dos mestres, dos trolhas, a balde, devem ter
atirado para o caldeirão as lulas, cebolas e pimentão, uma mão cheia de sal, um
saquinho de cravinho, um frasco de noz moscada, uma mão cheia de salsa e outra
de coisa nenhuma, tudo ao molhe e fé em Deus, ignorando as reacções destes
reagentes perigosíssimos, piores que nitroglicerina e a usar com parcimónia. Por
isto, por cozinhar ser perigoso me lembrei de escrever e vos deixar de sobreaviso
após esta conversa c’a Luisinha, e continuo a reiterar ter em boa verdade ficado
estupefacto, 40 anos depois ainda aprendo coisas sobre ela, coisas que, juro-vos, não sabia nem imaginava, e olhem que até com a
canela é preciso muito cuidado e cautela. Esta vida …