domingo, 17 de setembro de 2017

463 - UM DOCE PÉ DE VIDEIRA CONSTANCE .......


Quando em 77 ou 78 regressei de Africa trouxe a meu pai, que acabara de adquirir uma pequena parcela duma herdade onde, para ocupar a reforma pensava entreter- se, um pé de videira Constance, um vinho doce da região de Constantia, na África do Sul, dado que ele começara já a plantar naqueles dez hectares uma fieira de vinhas. No passado, a popularidade dos vinhos doces fizera história. Os gregos, produziam o vinho o mais doce e concentrado possível para consumi-lo diluído em água e "temperado" com ervas e especiarias. Já na Roma Antiga os vinhos mais apreciados eram brancos doces, a partir da desidratação de uvas, para que se obtivesse concentração dos açúcares da fruta. Na Idade Média grandes cidades italianas, Génova e Veneza, ficaram conhecidas pelos vinhos que eram bem mais doces do que no resto do país. Até ao final do século XIX, a venda de vinhos doces provenientes da região de Constantia, na África do Sul, era sinal de status em toda a Europa. Portanto o que eu trazia ao meu velhote era um tesouro.

Mas o velhote ao invés de me agradecer invectivou-me, perguntou-me se estava louco, admirou-se mesmo como me tinham deixado entrar no país com uma bomba daquelas nas mãos. Eu não a trouxera propriamente nas mãos, viera num vaso de argila cheio de boa terra do Transval por sua vez bem enrolado em jornais permanentemente humedecidos e num avião militar até às Lajes, razão pela qual alfandega nem vê-la e dali para o continente fora um voo interno, sem péages nem adouanes nem alfandegas nem merdas dessas que só empatam e nos fazem perder tempo.


No fim do responso o velho agradeceu-me a boa intenção não esquecendo acrescentar e lembrar-me que de boas intenções estava o inferno cheio e mais a Filoxera e bla bla bla … Estava eu ali, espantado e especado, sem saber que fazer e com o vaso do pé da videira na mão quando entrou a Deolinda, espampanante, como sempre, em busca da minha mãe, a quem entregara um qualquer serviço de costura e, admirada ao ver-me ali largou um:

- Olha o caramelo, tu por cá ? Que tens feito ? Por onde tens andado que tão bom cabelinho tens criado ?

- Esperava-te, mal te vi no início da rua fui buscar esta lembrança que me ocorreu trazer-te, quem melhor que tu para lidar com uma nova cepa, uma nova variedade e eventualmente acautelar e lidar com o possível perigo da Filoxera ?

Arrumei-a, perdeu o pio, corou, ou corou e perdeu o pio, balbuciou um muito obrigado estou muito impressionada, nunca julguei que no outro lado do mundo te lembrasses de mim e mais isto e mais aquilo e mais bla bla bla …

Filoxera é o nome comum do pulgão ou hemíptero da família Phylloxeridae, da espécie Daktulosphaira vitifoliae, por vezes também designada pelo seu sinónimo taxonómico Phylloxera vastatrix. Todo o reboliço derivara do facto de em 1880, o pulgão estar disseminado na África do Sul onde dizimou hectares e hectares de vinhas, arruinando todos os produtores, tendo chegado ao norte de África somente passados cinco anos. Era uma praga terrível contra a qual o mundo pegou em armas, basta lembrarmo-nos que o século XIX chegou ao fim com as vinhas de todo o mundo destroçadas e com a produção mundial seriamente comprometida. Os serviços sanitários agrícolas mantinham-se permanentemente alerta em todo o planeta, até hoje.


Mas a minha airosa saída da situação acabou por cair bem e correu bem melhor que eu alguma vez teria imaginado, recordo que nos três ou quatro anos seguintes nos deslocámos umas cem ou duzentas vezes à estação agronómica onde ela debutara e trabalhava, era enóloga, ou seja, e abreviando, a merda do pé de videira que tanta arrelia me dera viera a rebentar numa vocação e a ser a haste donde cresceria e se fortaleceria a nossa amizade, e que amizade.

Hoje é famosa, tem três filhos, enquanto eu me fiquei por um só mas lindinho. Ela casou com o meu amigo Benigno para quem ela foram umas segundas núpcias pois a primeira mulher dele não estivera para lhe aturar as pielas constantes ao passo que a Deolinda, vinhos e seus efeitos eram com ela, coisas que tratava por tu, tendo endireitado o Benigno. Em boa verdade e aproveitando a sua tendência natural p’ra emborcar copos fez dele um escanção de craveira internacional, brilharete com o qual ela coroou o fruto do seu trabalho, hoje premiado e reconhecido internacionalmente e a mim orgulhoso dos seus sucessos e das suas amizades.

Vida e trabalho separaram-nos mas durante os últimos quarenta anos em todos eles recebi pelo Natal um pack, aliás dois packs com garrafas de vinho do melhor que ela sabe, um pack de brancos para a Luisinha e um de tintos para mim, estou mesmo vendo que este ano a Luisinha sairá beneficiada com um pack do reserva branco premiado, enquanto eu ficarei a olhar para o meu azar que só bebo tinto, mas é o tinto que ajuda a manter-me eternamente jovem, culpa dos taninos alentejanos, experimentem e verão, mas convém não começar tarde, eu comecei aos vinte e no verão de 78 com a primeira garrafa que ela me ofereceu no meu dia de anos, 29 de Setembro, estamos quase em cima deles. Não se esqueçam de mim vá lá…

Eu e a Deolinda sempre encaixáramos bem, fôramos colegas no ciclo e mais tarde nos complementares, uma espécie de 12º ano, ela formou-se primeiro que eu, saiu enóloga, e não descansou enquanto não lhe provei as características, eu era novo e nessa idade queria era tratar dos vinhos, queria lá saber das vinhas..