Quando em 77 ou 78
regressei de Africa trouxe a meu pai, que acabara de adquirir uma pequena
parcela duma herdade onde, para ocupar a reforma pensava entreter- se, um pé de videira Constance, um
vinho doce da região de Constantia, na África do Sul, dado que ele começara já
a plantar naqueles dez hectares uma fieira de vinhas. No passado, a
popularidade dos vinhos doces fizera história. Os gregos, produziam o vinho o
mais doce e concentrado possível para consumi-lo diluído em água e
"temperado" com ervas e especiarias. Já na Roma Antiga os vinhos mais
apreciados eram brancos doces, a partir da desidratação de uvas, para que se
obtivesse concentração dos açúcares da fruta. Na Idade Média grandes cidades
italianas, Génova e Veneza, ficaram conhecidas pelos vinhos que eram bem mais
doces do que no resto do país. Até ao final do século XIX, a venda de vinhos
doces provenientes da região de Constantia, na África do Sul, era sinal de
status em toda a Europa. Portanto o que eu trazia ao meu velhote era um
tesouro.
Mas o velhote ao invés
de me agradecer invectivou-me, perguntou-me se estava louco, admirou-se mesmo
como me tinham deixado entrar no país com uma bomba daquelas nas mãos. Eu não a
trouxera propriamente nas mãos, viera num vaso de argila cheio de boa terra do Transval
por sua vez bem enrolado em jornais permanentemente humedecidos e num avião
militar até às Lajes, razão pela qual alfandega nem vê-la e dali para o
continente fora um voo interno, sem péages nem adouanes nem alfandegas nem
merdas dessas que só empatam e nos fazem perder tempo.
No fim do responso o
velho agradeceu-me a boa intenção não esquecendo acrescentar e lembrar-me que
de boas intenções estava o inferno cheio e mais a Filoxera e bla bla bla …
Estava eu ali, espantado e especado, sem saber que fazer e com o vaso do pé da
videira na mão quando entrou a Deolinda, espampanante, como sempre, em busca da
minha mãe, a quem entregara um qualquer serviço de costura e, admirada ao
ver-me ali largou um:
- Olha o caramelo, tu
por cá ? Que tens feito ? Por onde tens andado que tão bom cabelinho tens
criado ?
- Esperava-te, mal te vi
no início da rua fui buscar esta lembrança que me ocorreu trazer-te, quem
melhor que tu para lidar com uma nova cepa, uma nova variedade e eventualmente
acautelar e lidar com o possível perigo da Filoxera ?
Arrumei-a, perdeu o pio,
corou, ou corou e perdeu o pio, balbuciou um muito obrigado estou muito
impressionada, nunca julguei que no outro lado do mundo te lembrasses de mim e
mais isto e mais aquilo e mais bla bla bla …
Filoxera é o nome comum
do pulgão ou hemíptero da família Phylloxeridae, da espécie Daktulosphaira
vitifoliae, por vezes também designada pelo seu sinónimo taxonómico Phylloxera
vastatrix. Todo o reboliço derivara do facto de em 1880, o pulgão estar
disseminado na África do Sul onde dizimou hectares e hectares de vinhas, arruinando
todos os produtores, tendo chegado ao norte de África somente passados cinco
anos. Era uma praga terrível contra a qual o mundo pegou em armas, basta
lembrarmo-nos que o século XIX chegou ao fim com as vinhas de todo o mundo
destroçadas e com a produção mundial seriamente comprometida. Os serviços
sanitários agrícolas mantinham-se permanentemente alerta em todo o planeta, até
hoje.
Mas a minha airosa saída
da situação acabou por cair bem e correu bem melhor que eu alguma vez teria
imaginado, recordo que nos três ou quatro anos seguintes nos deslocámos umas
cem ou duzentas vezes à estação agronómica onde ela debutara e trabalhava, era
enóloga, ou seja, e abreviando, a merda do pé de videira que tanta arrelia me
dera viera a rebentar numa vocação e a ser a haste donde cresceria e se
fortaleceria a nossa amizade, e que amizade.
Hoje é famosa, tem três
filhos, enquanto eu me fiquei por um só mas lindinho. Ela casou com o meu amigo
Benigno para quem ela foram umas segundas núpcias pois a primeira mulher dele não
estivera para lhe aturar as pielas constantes ao passo que a Deolinda, vinhos e
seus efeitos eram com ela, coisas que tratava por tu, tendo endireitado o
Benigno. Em boa verdade e aproveitando a sua tendência natural p’ra emborcar copos
fez dele um escanção de craveira internacional, brilharete com o qual ela
coroou o fruto do seu trabalho, hoje premiado e reconhecido internacionalmente
e a mim orgulhoso dos seus sucessos e das suas amizades.
Vida e trabalho
separaram-nos mas durante os últimos quarenta anos em todos eles recebi pelo
Natal um pack, aliás dois packs com garrafas de vinho do melhor que ela sabe,
um pack de brancos para a Luisinha e um de tintos para mim, estou mesmo vendo
que este ano a Luisinha sairá beneficiada com um pack do reserva branco
premiado, enquanto eu ficarei a olhar para o meu azar que só bebo tinto, mas é
o tinto que ajuda a manter-me eternamente jovem, culpa dos taninos alentejanos,
experimentem e verão, mas convém não começar tarde, eu comecei aos vinte e no
verão de 78 com a primeira garrafa que ela me ofereceu no meu dia de anos, 29
de Setembro, estamos quase em cima deles. Não se esqueçam de mim vá lá…
Eu e a Deolinda sempre
encaixáramos bem, fôramos colegas no ciclo e mais tarde nos complementares, uma
espécie de 12º ano, ela formou-se primeiro que eu, saiu enóloga, e não
descansou enquanto não lhe provei as características, eu era novo e nessa idade
queria era tratar dos vinhos, queria lá saber das vinhas..