sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

627 - POEMINHA A LEMBRAR BELISÀRIO



Enquanto durar a mágoa ardente, nem lhe fará frente a felicidade urgente que experimento e vivo, ambas digladiando-se na terra de ninguém, neste meu peito, trincheira profundamente aberta, longo pranto.

Ferozmente se enfrentam, ora avançam ora recuam, tremendo eu, estremecendo c’os recontros, balanço, não tombo, tento o equilíbrio, ora tomando partido ora hesitando.

Ouço o clarim, os cascos dos cavalos, a carga da brigada e emudeço quando troam os canhões, quando avanço não esmoreço, olho-me e, umas vezes eu, outras outro eu, serei sempre eu mesmo erguendo este estandarte, vivendo este contraste entre quem fui e quem sou, entre o que vivi e o sonho que persigo.

Persigno-me, após aturada genuflexão ponderada reflexão prostrou-me no chão, chão que ora piso ora me foge debaixo dos pés e eu, buscando-me, vejo-me mas não me alcanço, ou procuro-me e não me encontro e,

balançando à deriva neste mar de desencontros que é a vida, eis que diviso tábua de salvação a que me agarro como um náufrago, bóia a que lancei mão e na qual me apoio esperançoso e crente de que,

Nossa Senhora de Fátima acolherá este ateu agnóstico no seu regaço, porque são rosas Senhor, até aqui só têm sido rosas e nada se opõe a que doravante assim não seja, 

pois desde que haja vontade e ensejo para tal até em cima ou no exíguo espaço d’uma agenda coiso e tal, afirmava o juiz Vidigal, homem experiente e expedito ou não fosse dele este dito.

Feito e dito ou dito e feito, resta esperar o resultado, o proveito, aguardar serenamente, esquecer casa em Benavente e continuar confiante, soprando a bóia, inflando a esperança, projectando a vida, sarando chagas e olvidando mágoas, quais cicatrizes que, 

podendo não estar cá sempre cá estarão, recordando e lembrando quão rica de pormenores é a vida e nós meras formiguinhas, vogando à deriva numa casca de noz, sobrevivendo, curando chagas, abafando mágoas, aprisionando prantos, acreditando que entre encantos e desencantos, entre encontros e desencontros, havemos de vogar felizes e contentes com a sina que a cada um fadou, 

ou o destino lhe destinou, como quem passou incólume entre os pingos da chuva e se não molhou.

Mentira, e a prová-lo estão as cicatrizes que arrastamos, as visíveis e as invisíveis e, por muito que as escondamos e calemos, elas aí estão, quando menos esperamos gritando por nós e denunciando-nos, 

porque não há almoços grátis, tudo tem um preço, um custo, e esse custo mor parte das vezes fica-te inscrito na pele, no ADN, e torce-te, molda-te, verga-te, e depois?

Depois são as inexplicáveis atitudes que em ti ninguém entende, e por vezes nem tu mesmo, é genético, é hereditário, é congénito, é-te intrínseco, é fruto do teu carácter, da tua personalidade, do teu feitio, dos teus modos. 

São as tuas taras, as tuas manias, as tuas pancadas, as tuas pancas, daí a bóia, a necessidade da bóia, de um colete de salvação que te salve a ti mesmo de ti, para que haja onde te agarrares e sobrevivas.

Por isso a necessidade de esperança, de devoção, de fé nos segredos que a vida encerra e neles creias, neles, acredites, é forçoso acreditar, confiar, para que sintas confiança e avances, para que o terreno pantanoso se solidifique à medida que avanças, que caminhas. 

Que marques a direcção, o rumo, e não hesites, que dês o passo.

Carregas em ti anos de experiência, portanto ousa, não temas, confia, crê, e cria uma brocha, uma boneca de trapo, um esfregaço com que cauterizes as feridas, um bálsamo para as chagas, láudano para as mágoas, um lenço para o pranto, e ergue-te, caminha, vai.

A felicidade constrói-se, por vezes mesmo sobre os escombros de tudo que vivemos e, sendo preciso, é começar de novo uma vez e outra se necessário …

Verdade ou não Belisário  ?