DERRIBAR OS MUROS DA INDIFERENÇA ...
Sim,
penso ter sido a um domingo e lembro-me bem quanto o dia começara radiante,
como se nas margens de um rio a beleza das cores, a frescura e fragrância dos
dias felizes igualasse a cadência deste coração cansado mas enorme que albergo.
Nem a memória de outras cadências, de outros dias felizes, deste mesmo ou doutros
rios, das mesmas cores, não esfumadas mas intensas, fulgurantes, me fez
esquecer ou antes me fez lembrar a repetição dum inexorável e incansável ritual
de celebração da vida, qual hino à coerência ante esta provação esta prisão e a
fuga dela, hino à sublimação do meu ser, da consciência em mim a qual sempre me
redimiu do pior que pudesse e possa haver no meu íntimo.
Esse
dia não começou diferente dos demais, começou como sempre começam, como um
sonho em que estou na luz e diviso vagamente um vulto fugidio ao qual sinto o
perfume e a quem, num gesto delicado tento segurar serenamente. Essa
pressentida presença, da qual primeiro apenas uma sombra mas depois o perfil
dum desejo de cores claras e, o mundo repentinamente todo ele luz, eu uma sombra
saindo da escuridão, o corpo tolhido antecipando delírios e paixões, o olhar
nascendo renovado destes mesmos sentidos, tal qual noutros dias e noutros
sonhos os mesmos rodopios e devaneios, o mesmo degelo da alma, o corpo
bamboleando-se-me, a volúpia das palavras primeiro, o aroma das flores depois
e, quando nem em mim cria, já não sonho, deliro, repentinamente abraçando-te,
repentinamente beijando-te, saboreando nos teus lábios champanhe, agora o
delírio e a volúpia sim, mas dos sentidos, lascivos, ébrios, sedentos da boémia
testemunhada p’los copos e garrafas abandonados ao deus dará por toda a sala.
É
noite, mergulho na sombra do astro e já nem sei se arlequim se querubim, e o
teu corpo parecendo mexer-se, e nem sei se estes cabelos são meus se teus,
afago-me, afago-te a pele morena, a silhueta, depois as tuas curvas. O pecado tramado
é este sonho em escalada contínua, estas sombras que me cobrem, promessas
figuradas que tingem meus olhos, e, perante mim, qual milagre, vagamente tomando
forma uma mulher que amo e de imediato tornada vício, carência, imagem debruada
na luz mergulhando no esplendor da minha alma.
Pareço
em ti ter tropeçado mas não, depois de ti não mais a melancolia, nem a solidão,
agora sei não querer habituar-me à tua ausência, tudo que sou também és, tudo
que és também sou, agora sei, o mundo somos tu e eu e mais ninguém, palpitas em
mim, nem durmo pois este sonho me leva a perder-me, persegue-me como silício
vivo e eu, incapaz de fugir ao meu fado, de alma sobressaltada, o fogo
alimentando-me os sentidos, o lume no peito, imagino-te, imagino carícias
ingénuas, o coração batendo como não batia e eu fremente de desejo, já sem
destino nem rota, fugindo ao presente, ansiando o futuro, os sentidos girando e
a abóbada celeste um carrossel, girando, girando e eu que morreria se não te
contasse este anseio, corações mais não são que cinzas e paixões, vejo claramente
na penumbra desses dias com luz flâmulas e pendões multicores engalanando um
mar de rosas e a alegria imensa de todo o meu bem querer-te.
Disse-to
por agora a ponte que nos une ser a ausência, nem de casa posso sair
praticamente quanto mais tomar um comboio ascendente que me leve até ao Porto, então
deixo-me levar pelos sonhos e invento desejos embriagando-me com bacantes,
acumulando coragem para conquistar de novo o teu corpo, matar as saudades em
nós e cobrir-te de abraços, de beijos, saciar estes olhos, vaga-lumes
tilintando numa festa nascida deste sonho, desta inquietude dando largas à
loucura que me grita ter o nada que acabar-se e deixar correr o meu sangue
pulsando nas veias, dizendo-me não haver regras nem limites, só a verdade de
mim, homem sincero, e pergunto-me, quando será que poderei gritar tudo isto ?
Quando terminará esta contenção ? Este confinamento, esta aberração ?
- Onde, quando posso sorrir-te de novo sem parecer louco ?
- Onde
e quando poderei gritar-te a verdade e rir-me de tudo e de todos ?
- Onde
e quando de novo só nós dois e mais ninguém ?
-
Sim quando, pois agora sei, o mundo somos tu e eu, e mais ninguém !
Não,
não foi Deus nem o destino quem nos separou, foi o COVID e a CP que suprimiu
comboios deixando-nos inadvertidamente a milhas um do outro. Bem sei que
descurei os avisos mas sempre fiz orelhas moucas a tudo que me cheire a
repetições e tentativas de manipulação. Errar é humano e desta vez errei mesmo,
ou errámos, dou o braço a torcer, já que era eu quem deveria ir para cima e não
tu tomares um qualquer comboio descendente.
Provavelmente
o que aconteceu foi ela ter estranhado a minha ausência e ter-se esquecido de
mim, ter tomado a minha falta por desinteresse, arrependimento ou
desprendimento já que as coisas ainda não estão sólidas, a relação está nos
primórdios e o desconhecimento mútuo é a normalidade. Foi isso, ou deve ter
sido isso e então caprichou no orgulho próprio, cicuta que algumas vezes também
eu já engoli. É isso, ou foi isso certamente. Ou uma questão de confiança e
espera que me justifique.
E
nem no intervalo deste maldito jogo !
Esqueceu-me.
Admito dadas as circunstâncias alguma desconfiança e racionalismo na sua
atitude, esqueceu-me, pura e simplesmente esqueceu-me. Ou me esqueceu ou me
ignora. Poderia simplesmente ter-me enviado um “sms”, rápido, apenas um ”bjs”,
eu saberia que estava pensando em mim, que não me esquecera, que não me
ignorava. Mas não. Nada. Já consultei o telemóvel mais de cem vezes nos últimos
sessenta minutos, e nada. E teria sido tão fácil, tão simples. Um só "bonequinho
amarelinho" que fosse, qualquer outro bonequinho ou símbolo simples, acciona-se
com um simples teclar, e não, nada, eu teria sabido, ela nem imagina quanta
coisa um simples bonequinho pode dizer, ou saberá ?
Claro
que sabe ! Quem não sabe ? Ignora-me. Pura e simplesmente ignora-me. Põe-me à
prova. E eu para aqui inquieto. Do telemóvel para o PC, do PC para o telemóvel
e nada, e se não me esqueceu o que significa o seu silêncio ? Sei como adora o
futebol, mas o intervalo já passou e nada, e um "sms" ou um bonequinho
não custam nada a enviar, porque não o faz ? Bem sei que não há entre nós mada
mais que um qualquer descomprometido compromisso, na verdade nem estou certo de
ela ter percebido quanto a adoro, com certeza percebeu, que mulher não percebe
essas coisas ? O carinho com que a mimoseio nas minhas mensagens, as respostas
prontas e a disponibilidade que lhe concedo, será que ela não percebe isso ? Admito
que me precipitei um pouco ao dar-lhe o meu número de telemóvel, mas para quê
interrogar-me, se ela nunca me ligou, nunca uma única chamada, nunca um simples
"sms". O parvo devo ser eu, que me empenhei nesta amizade, nela
coloquei todo o meu ânimo, a minha esperança, e nem isso ela perceberá ? Esta
constância, a assiduidade com que visito a sua página, os corações que lhe
mando, é impossível não ter percebido o quanto gosto dela.
Estará
a servir-se do vírus e do confinamento para se afastar de mim, para me afastar
? Então porque nada me diz ? Nem um "sms", nem um bonequinho, um
sorriso, eu ficaria tão feliz ! Será que não sabe isso ? Ou simplesmente não me
percebeu ? Ou não quis perceber-me ? Corresponder-me ? Comprometer-se para além
do que avançámos ? Só pode ser isso, foge a um compromisso, ou foge ou tem
medo, teme os compromissos, teme-me, e não imagina nem sonha quanto lhe quero,
quanto a sonho, quanto a desejo. Bastar-lhe-ia dizer uma palavra, uma palavra
só, e a minha alma seria dela, minha alma e eu, todo eu, e não consigo ficar
parado, salto do PC para o telemóvel, do telemóvel para o PC, e ela nada, nem
um beijo, um bonequinho, nada, esqueceu-me, esqueceu-me ou ignora-me. Não
suporto, porra p’ra mim, hoje não suporto isto !
E o
jogo já acabou. Que andará ela fazendo? Onde ? Com quem ? Que nem me liga, que
nem me liga nem manda ao menos um "amarelinho" a estúpida ! Podia
ter-me se o quisesse, adoro-a, amo-a loucamente ! Mas não, nada diz, nada faz,
esqueceu-me, ignora-me, não o suporto ! Já não posso nem vê-la ! A arrogante !
A convencida ! Já vais ver ! Onde está a tecla DEL ?
Pim
pam pum ! Já está ! Fora !
Ai
de mim que alívio, foste um sonho mau que tive, uma coisa que passou por mim,
já eras, pois isso, era uma vez, já foi… Deixa-me acalmar, deixa-me sentar,
olha !
Quem
será esta ? Que gira !
Deixa-me
ver, que original ! “BLUE DREAM”, que
engraçada ! Que espirituosa ! Quem será? Vamos ver! Pim pam pum ! Já está ! Que
linda ! Que querida ! O que não faltam são amigas à mão de semear !
Eu
estava habituado a acompanhá-la no ginásio e observava-lhe os gestos, após a
reconciliação pareciam-me estudados, exagerados, parecendo assépticos.
Calhou-lhe um dia e mesmo na minha frente, fazer uma tripla tentativa para
colocar a toalha em sítio que nunca lembrara a ninguém o que me chamou a atenção.
Os modos cerimoniosos, quase teatrais, o nojo em tocar c’os cabelos onde toda a
gente toca, a repugnância em apalpar com as mãos as pegas dos instrumentos
tocadas por todos nós. Esta coisa do vírus muda-nos ou expõe-nos, e
imaginei-lhe a náusea sentida pelo suor dos outros, como suportaria ela
respirar o mesmo ar ainda que todos de máscara ? E já fora pior, graças ao
condicionamento actual o ginásio agora nem metade da lotação habitual permitia,
que pensaria, como reagiria ela por ter que pisar o mesmo chão ? Nem me atrevi
a perguntar-lhe. Normalmente não reparo nas mulheres cuja prática é simultânea
com a minha, quer por serem tantas e a atenção se dispersar, quer por ser gente
normal, fazendo como eu a sua manutenção, quer por ser gente igualmente cuidando da sua
saúde e beleza. Não haja facto invulgar e nunca será despertada a mínima
curiosidade.
Claro
que não posso dizer o mesmo de uma calcinha de cor impressionante ou
impressionista estrategicamente deixada à vista precisamente para não nos
deixar indiferentes, (aqui as opiniões do meu grupo de ginastas dividiram-se e
ainda não chegámos a um consenso), ou de um corpinho divinal deixado mais
destapado que tapado num mais que propositadamente escolhido fatinho de treino,
ou de um fio dental que mais depressa nos lembra o hálito que possamos ter
naquele momento do que ter começado a Primavera. São factos a que uma pessoa
não consegue ficar alheia, indiferente, tal a impressão que causam precisamente
por pretenderem causá-la.
Não
era o caso.
Mas a
minha senhora, chamemos-lhe por enquanto assim, agia motivada por um excesso de
medo de ser contagiada ou por manifesto repúdio na partilha de um espaço que é
de todos e cujo asseio jamais ocorrera a alguém colocar em causa. Havia ali ou
antes havia nela uma nada aparente anormalidade. Uma vez em casa abordaria com ela
e cuidadosamente o assunto, por saber serem precisamente extremos destes que,
no “cantinho do suor” põem a malta a falar, cochichar, eu explico melhor, são
estes casos de realce e dignos de nota que, no espaço predominantemente ocupado
pelos aparelhos de musculação num canto do ginásio onde o pessoal
maioritariamente masculino nas pausas a que o esforço da prática forçosamente
obriga, são estes casos dizia, que debatem à exaustão e por vezes com algum
gáudio e sátira à mistura. Apesar das máscaras abafarem o som eu ouvi-os e
corrigi-os, porém sem resultado, debalde as minhas constantes tentativas para
elevarem a qualidade dos diálogos, limitaram-se a improvisar anedotas sobre outro
tema e outra personagem e já aconteceu, por mais que uma vez ter que os moderar
com base na minha idade, musculatura e inerente autoridade, pois o riso não
parava havendo quem se babasse alarve e copiosamente.
Não
podemos consentir tal, a nossa integridade posta em causa. Mas a minha senhora decididamente
não saberia o que era um piolho, nunca teria apanhado uma pulga, muito menos
uma carraça ou um chato e então um homem nem pensar ! Por certo nunca tivera as
canelas arranhadas pelas unhacas de um macho menos atento a esses pormenores ! Contudo
saibam ser eu cuidadoso com elas, elas as minhas unhas. À volta dos cinquenta
anos, peitinho cheio e ainda firme e redondo, as ancas levemente descaídas, mas
não por defeito, sim por feitio, só os pés de galinha emergindo dos cantos dos
olhos e a flacidez das carnes pendendo ameaçadora dos braços lhe traíam a
jovialidade aparente ou simulada há muito perdida e naquele momento provavelmente
vítima de apostas dos presentes, precisamente aquilo a que a queria furtar.
Virgem,
não virgem, tia não tia, alguém um destes dias apostaria. Bem os ouvi, fingi
que não para evitar dissabores. Não sei se a minha senhora terá irmãos ou
irmãs, sobrinhos ou sobrinhas, que ali estava uma verdadeira tia anui, de mim
para mim concordei... A minha bela senhora alguma vez terá cheirado homem ou
acordado ao lado de uma boca sabendo a pautas musicais e ressacada, certamente
nunca, nem deve ter segurado a testa de um amor ébrio, esparramado no chão e
vomitando a casa de banho toda, incapaz de acertar na sanita. Talvez, não sei,
sabê-lo-ei com o tempo, quando ela entender abrir-se.
Estaria
eu perante um “casus rarus” cuja observação dissimulada nunca mais deixaria ao
acaso, a verdade é que aquele corpinho tão bem desenhado e em acelerada queda
merecia ser aproveitado enquanto vale a pena, ou enquanto é possível. Não nutro
contra as rugas qualquer preconceito, também já as tenho, registem. Possuía
realmente umas mãos e unhas extremamente cuidadas, uns modos afectados de quem
nunca na vida buliu a valer, uma boca denunciando imperceptíveis rugas
provocadas por quem, qual peixe, a esteja sempre abrindo e fechando, portanto
mais habituada a dar ordens e falar que a servir para outras coisas como a
minha mente perversa logo me sugeriu. A minha senhora já foi
extraordinariamente bonita, e, além de ainda o ser, tem um corpinho e uma
postura que o atestam e ainda não a deixam ficar mal, o que me envaidece um
pouco e consola muito. Recordo-vos que nem o Covid congregou por aqueles dias
tantas atenções quanto aquele dilema em que inesperadamente me vi envolvido,
beleza versus inteligência, ela era excelente nas duas, ganhei eu, marquei
bingo ! Ela que continue praticando exercícios físicos ! E que insista !
Ainda
hoje lembro o ginásio e a lembro a ela. Aliás alguns meses mais tarde ela
voltaria a entrar na minha vida e desta vez de modo mais sério e intempestivo. Uma
vez mais e tal como o povo costuma dizer, nunca digas desta água não beberei.
Mas já devem ter percebido que a coisa não acabara no ginásio, calma que já lá
iremos. Como não a lembrar se ela corporiza uma das minhas recordações que
viriam a demonstrar ter sido das mais felizes ? Mas momentos felizes todos
temos para recordar, e momentos, felizes ou não são isso mesmo, momentos, aos
quais há que juntar também compreensíveis frustrações e arrependimentos, e as
minhas foram muitas. E essas tantas foram ou são, que nada mesmo ganho em as relembrar.
Mas lembro, feliz ou infelizmente lembro, e já que as não esqueço, relembro-as com
saudade pois em relação a algumas delas ainda gosto de o fazer. Ou por terem
sido lições de vida ou porque me marcaram positiva ou negativamente.
Uma
dessas estórias conta-se em poucas penadas, e como estamos em maré de
confinamento e a prisão me concita a abrir o bar, este por sua vez induz-me a
abrir o baú de recordações e consequentemente as goelas, que é como quem diz, a
boca. Já vos estou a ver palpitantes de curiosidade, espreitando avidamente
este íntimo e este passado recheados de desilusões, frustrações e
arrependimentos, vos garanto. E de erros, tantos erros que quaisquer de vós com
a minha idade não somará nem metade, mas não eu que errei, erro e hei-de
continuar errando. Errar não é humano ?
Somente
quem não me conhecer não desconfiou já do meu ar seguro, da minha faceta
extrovertida, do meu carácter prá-frentex, é tudo fingimento, artifícios para
disfarçar as minhas debilidades e limitações. Tudo para esconder
insuficiências, incapacidades, anos de erros acumulados, de arrependimentos
sentidos, de desilusões que são chagas, de frustrações que me revoltam e põem
de mal comigo mesmo. Nunca o confesso, nunca o confessei, e jamais o admitirei,
muito menos aqui que esta merda dos contos acabará sendo mais pública que
julgamos e terá montes de gente espreitando, gente que nunca dá sinal de si,
cobardemente resguardada por consciências comezinhas e que, se tivessem a ponta
de um corno de vergonha, já se tinham apagado a si mesmas do próprio mundo, da
vida ! Pois nem farão a mínima falta nem consta que façam algo que me interesse
minimamente, isto porque posso ser um falhado mas sou respeitador, quando não,
imaginem só a desgraça ou praga que lhes rogaria.
Os
concursos, quaisquer concursos, têm geralmente uma fauna muito “sui generis” cujo estudo empírico,
agora que tenho tempo e me sobra vagar, viver o distanciamento social exigido
pelo Covid-19 está dando comigo em maluco e fazendo com que só me apeteça
trepar pelas paredes pelo que, antes que tal aconteça o melhor é passar já à
estória. Estudo que ando desenvolvendo há algum tempo dizia eu e de que vos
darei conta na altura certa embora não garantindo tal. Talvez mais adiante logo
veremos. Mas ia eu dizendo, o melhor será começar a contar a estória e não
arriscar mais não venha a levar por descuido alguma dentada de impaciência.
Chamava-se
Lucília.
Eu fora
colocado nessa época como professor numa escola secundária, sempre dado ao
progressismo e à esquerda, os mesmos movimentos que agora tanto abomino, e guardara
desde o 25 de Abril um espólio desse movimento de idealistas, espólio de que me
orgulhava e me servira anos a fio para, em cada escola e em cada efeméride,
promover exposições sobre esse acto histórico. Gradualmente fui-me vendo
despojado dessas memórias, em cada um dos eventos não terá faltado cabrão ou
filha de puta que não me tivesse roubado um cartaz ou qualquer outro exemplar
desse rico e único conjunto, a ponto de me ver quase sem nada.
Acudiu-me
à ideia nesse ano remoto, solicitar a colaboração do Centro de Recursos, nessa
altura a designação era menos prosaica, como Biblioteca por exemplo. Diga-se
também que nessa altura era ela quem estava à frente desse departamento, não
foi no ginásio que a conheci, éramos aliás velhos conhecidos, por isso logo me
prometera colaboração desmedida e quanta eu necessitasse:
-
Primeiro está o 25 de Abril camarada !
estou a contar-vos a coisa tal
qual ela o afirmou ! Fiquei banzado ! Não tanto pela inusitada disponibilidade
e colaboração da Lucília, mal nos conhecíamos, mas pela sua beleza madura,
pormenor que nem o seu permanente ar meditativo lograva esconder. Cabelo liso e
então dum negro de azeviche que só visto, aliás toda ela por esses tempos sempre
de negro, o mesmo rosto oval, lindo, por baixo de uma nova franja parecendo o
pano subido de um cenário, sorriso daqueles que nos derretem, sempre encavalitado
nuns lábios carnudos, sequiosos, suscitando desejos, olhos fundos de amêndoa,
escuros, rasgados e pestanudos, que mais que uma vez me fizeram vacilar as pernas
já que não aguentava olhá-los se pestanejassem duas vezes seguidas. Todos estes
atributos tinham como base um peito farto que certamente as horas de ginásio
ajudaram depois a suster e confesso-vos, mais uma fraqueza minha, sempre adorei
mamas grandes, não me perguntem porquê. A verdade é que o peito dela sempre me
cambalhotara as órbitas se calhava fixá-lo, montado numas pernas altas,
monumentais, nas quais por tudo e por nada, até por dá cá aquela palha, em
sonhos ou acordado me via envolvido, apertado, submergido ou enlaçado.
Nem
sei por que não me converti à sua doutrina de imediato e perante tais
argumentos, ou sei, pois por essa época nada mais recordava nem via que a Lucília,
toda irreverente e sorridente no seu blusão de cabedal preto e cheio de
fivelas, imagem de marca que nunca abandonava. Concedo que sou bonito, e há
quase vinte anos atrás ainda o era mais, perdoem-me a modéstia, a Lucília
também não deve ter resistido à minha beleza, tanto que se eu suspirava por
ela, ela suspirava por mim, e, claro, acabámos várias vezes por nos
encontrarmos bebendo umas bejecas e comendo uns caracóis, delirando e
suspirando com a presença um do outro. Era da Afurada, separada, e nem ela me
sugeriu ir para a Afurada nem eu que ficasse em Coimbra. Víamo-nos quando
calhava, até calhar quase todos os dias. Lembrem-se, eu era prof nessa altura,
o mesmo é dizer que não fazia nada, trabalhava poucas horas por semana, não
ganhava mal, entrava tarde e saía cedo. O “ser humano” não foi feito para
trabalhar mas para se dedicar à contemplação, à retórica, à oratória, à
filosofia, e ao sexo oposto, esta deve ser a verdade. A maçã tragada no paraíso
saiu-nos cara.
Um
belo dia, eu e a Lucília, já fartos de chupar os dentes por neles se terem
metido os nossos olhares gulosos, mas também de repartir o mesmo caracol,
combinámos sair, o que fizemos numa calma noite de verão. Escolhemos um recanto
abrigado do luar por baixo do choupal e ali ficámos falando de nós e da vida
umas boas horas. Eu, não querendo ser malcriado, atrevido ou alarve, e, embora
com toda a vontade de a amar e tomar toda ali mesmo sem deixar uma migalha que
fosse, fui ficando quieto. Ela, ou por pudor ou porque esperasse um avanço meu,
ia-se ficando sem me dar o mínimo sinal de abertura, consentimento ou
encorajamento.
Eu
népia só conversa, e ela mais conversa. Ficámos conversados !
Talvez
a minha incapacidade para aproveitar uma oportunidade tivesse contado, não sei,
não posso jurar, o que sei é que nunca fui oportunista até hoje nem penso
sê-lo, o que terá pesado na minha hesitação e reflectido na atitude dela. Não
sei se a Lucília me terá julgado ou ficado chamando maricas, a verdade é que
aquela noite foi uma frustração para ambos e o facto de não termos voltado a
ver-nos nem nos termos procurado durante uns bons anos, até ao reencontro
casual no ginásio, é um indicativo dessa desilusão. É com os erros que
infelizmente tantas e tantas vezes aprendemos. Nunca aquela noite devia ter
acontecido. Uma coisa aprendi, nunca mais voltou a acontecer-me. Por quê ?
Porque nunca mais saí com uma mulher ? Porque deixei de ser inexperiente ? Por
outra qualquer razão ? Conhecendo-vos como penso conhecer, prefiro deixar esse
critério às vossas mórbidas curiosidade e especulação, crente que uma
dissecação destas incógnitas nunca será despiciente para ninguém sobretudo
agora que, confinados, todos os motivos serão bons p’ra vos ocupar o tempo, até
porque de outra forma qualquer dia saberiam mais da minha vida que eu próprio,
o que não me posso dar ao luxo de permitir.
O distanciamento social tem tido aspectos positivos, tem-me, aproximado de
mim, estou mais introspectivo, vejo o mundo de outra maneira, confio menos nos
noticiários e avisos catastróficos ou catastrofistas, não se pode confiar
naquela gente do governo, mentem com todos os dentes que têm na boca e
saturam-nos, e eu vingo-me neles fugindo para os canais por cabo, para o
visqui, para as aguardentes velhas que não se ficam atrás de um bom Porto ou de
um Moscatel de Palmela, puxo dum bom charuto e relaxo até entorpecer, até
anoitecer, por vezes pego a noite com o dia e vice-versa por isso acontece vulgarmente
não saber às quantas ando, mas ando, divagando ou vogando em bem-aventurança
por mares e oceanos, cada vez mais convencido que ventos felizes e arcanjos
perspicazes se uniram para, em harmónica simbiose darem corpo às linhas que, na
palma da mão, desde a nascença, nelas marcaram um rumo que, durante anos se
mostrara para mim e para toda a gente uma incógnita insondável.
O mistério ter-me-ia sido desvendado quando uma
noite destas, numa noite de insónia me senti levado por prazenteiros sonhos em
canoa aparentemente imprópria para tão inesperadas viagens mas, à qual
incompreensivelmente os Deuses concederam os desígnios com que há séculos
teriam prendado Ulisses. Desta forma inesperada e peculiar marinhei incólume p’lo
mar da fantasia e pelo oceano mágico do encantamento, sem que uma vaga sequer
ou um salpico ao menos, me tivesse marcado o rosto tisnado por tanta felicidade
que recebi e aceitei mais incrédulo que extasiado por tão inusitada prebenda. E
foram meses atento às vagas, às correntes, aos sóis e às luas de cada noite, tantos
quantos o confinamento durou, numa perdição completa de mim mesmo e numa
entrega messiânica e devotada a tão feliz sorte e incontável felicidade.
Aborrecidas só as filas nos híperes e o facto de nem sempre encontrar as
garrafas correctas, isto é as que trazem encantamentos dentro.
Há momentos, poucos, que em tudo isto jamais teria
acreditado, não fosse o sucedido, o vivido, testemunhado e visto, ou não
tivessem sido os cânticos por mim ouvidos oriundos da beleza indizível de uma
sereia baixinha que por artes mágicas me foi atraindo e chamando a si. Alucinado
por este belo sonho me quedei em ilha mirífica onde o tempo não tinha fim nem
principio, o espaço nem alto nem baixo, direita ou esquerda, e cada dia mais
cônscio ser ali que desejaria viver e morrer, inda que os dias não tivessem
fim, apesar de recordar auroras indizíveis a oriente e um pôr-do-sol permanente
e risonho a ocidente. Vivo tempos imemoráveis que nem sei a que devo a razão de
não esquecer, antes crê-los vivamente irrepetíveis, tal a felicidade fruída e
que, por insuspeitas razões julgo eterna. Compreender-me-ão.
O inimaginável infinito é contudo prenhe de
mistérios que o homem não desvendará nunca e, quando tudo julgava perene e
imortal a ilusão, senti levantar-se um vento medonho vindo das profundezas da
minha alma já entregue e devotada, o céu escurecer por arte de negras e
ameaçadoras arrastando montanhas de carregadas nuvens, as vagas ergueram-se em
castelos terríficos que me agitaram o corpo e o ser numa inusitada cadeia de
emoções a que os sentidos se mostraram incapazes de responder.
Exausto, vencido, quedei-me petrificado de terror no
fundo da singela canoa não compreendendo por que pecado estaria condenado,
visto nem a mínima indulgência me ser concedida e, interrogando-me perante tão
desgraçada quão breve morte a que a fúria dos elementos parecia destinar-me, já
que mais que numa serena canoa me parecia navegar ora numa montanha-russa,
atirado, batido, e a cada vaga mais perto do fim, até que outra vaga maior
ainda me acometesse, ora boiando num esquife malfadado que ao Adamastor tivesse
tido a impertinência de acordar. Incrédulo, cansado, suado e assustado com a
minha sorte e previsível morte, adormeci ou perdi os sentidos ante aquele
terror mais vero que imaginado. Recuperei os sentidos noite alta, mar chão,
iluminado p’lo que me pareceu ser o Cruzeiro do Sul, e que apreendi como o sinal
maligno de um fim próximo. Uma vez mais me enganaria, tão depressa se fez dia
que, vendo nos céus monstros de papel e aves plásticas sob várias formas e
cores, me mirei e remirei duvidando da vida em mim, coberto de um suor frio,
pingando em gotículas que os raios de sol transformavam em miríades de cores,
tão admiráveis quanto as que a bela sereia reflectia quando, na praia
maravilhosa para que me arrastara, as suas escamas sob o astro aquecia.
Então tomei consciência de que a minha hora ainda
não chegara, pois aquilo mais não podia ser que um presságio benigno dos
venturosos dias vividos, cuja lembrança me acalmou a par da bonança instalada,
como que para recordar o valor prodigioso da felicidade gozada, pelo que por
uma vez acreditei não ter sido em vão tanta meiguice, tanta doçura e ternura,
tanto o amor e a ventura encontrada em cada garrafa vinda até mim, não com um
mapa do tesouro mas trazendo engarrafado um indiscutível truísmo, que só depois
de perdidas as coisas nos mostram o seu verdadeiro valor e o alcance ou
dimensão da perda. Então logo acreditei que tamanho susto mais não era que uma
partida dos deuses para que jamais esquecesse a fortuna dos dias vividos ou a
quem a devia, devendo encarar o futuro com bonomia e ocorreu-me depois do
almoço passar a servir-me de sangria, mais leve, mais fresca e carregando em si
muito menos encantamentos.
Acordei
em sobressalto, entre a noite alta e a madrugada. Curiosamente chorava, contudo
jamais saberei por quê. Pelo sonho? Pelo susto? Pela perda da consciência ? Dos
sentidos ?
Esta prisão, o condicionamento ou o distanciamento
social ou lá o que seja ou o caralho anda a tirar-me a paciência e ela, mal
habituada a mim, nem tempo para se encher disso teve, tenta consolar-me quando
pode e quanto pode, fazendo das tripas coração e esquecendo o fardo de
resignação que ela própria carrega sobre os ombros tendo sido em atenção a isso
que calmamente lhe respondi, não a sacudi, não a recusei nem melindrei mas
tentei fazê-la compreender que também ela a ela mesma terá que se conceder
alguma atenção se quiser sobreviver a esta merda que nos está a foder o juízo a
todos, então saquei do meu arsenal de psicologia barata e fui-o estendendo na
sua frente, logo veria o que aquilo daria, preparei-me para dançar conforme a
música e atirei-lhe:
- Mas tu não achas que já pesa sobre ti um céu
demasiado pesado ?
- Talvez, mas por certo carrego também a esperança.
Não foi desacertada de todo a sua resposta não, bem
vejo quão atenta ela fica aos dias perdidos, aos dias passados, parecendo-lhe
terem sido sempre iguais, eternos, símbolos de uma vida frustrada. Isto dito e
afirmado por ela entendam.
- Mas… e no
centro da tua frustração, dos teus anseios, eles sim a mais linda promessa de
amor vogando num mar de temores e incertezas, qual céu ao teu alcance e cujos
horizontes segundo dizes te parecem inacessíveis, num contexto desses não te vês
a ti mesma como reflectida num espelho mágico, vendo as cores tisnadas ou
esbatidas, crês apesar disso e da revolta, da solidão e do vazio interior que
sentes que essa cara e o sorriso alegre, confiante e perene que passeias não mostram
nem deixam transparecer esse temor secreto que carregas ? Ou os julgas e enraivecida
os alimentas como fruto da frustração que não dominas mas escondes ?
- E que tens tu com isso, agora passaste a médico de
família meu doido ?
- Calma querida, só pretendo ajudar-te, conhecer-te
e ajudar-te, eu não creio que te deixes dominar por esses sentimentos ou
pensamentos, antes os vejo como um detonador accionando uma sensualidade que te
é muito própria me cative e envolva, me prometa carícias, meiguices e ternuras
sem fim, até que te sonhe, encostando ao teu o meu rosto e o coração,
palpitando, excitando-se ao mínimo pestanejar desses olhos que, na tua cara,
sempre sorridentes, me enleiam os sentidos, despoletam emoções e confundem o
espírito.
- Filho, andas sempre de braços abertos, buscando,
tacteando a libertação, rastreando onde suprir carências, não és livre querido ?
Claro que não, ninguém é !
- Não temas amor, esquece as cores apesar de carregadas
desses traumas querida, dessas frustrações. Tem sido esse pormenor, essa secreta
tristeza o motivo da perturbação escondida em ti ? Pois se como bem dizes a
liberdade mais não é que um estado de espírito ! Alguma vez ponderaste ser a
tua mente a culpada dos teus próprios medos ?
Por que acumulas então em ti mesma conscienciosa e
deliberadamente tantos receios ? Vejo em ti tudo quanto te recusas a mostrar,
és de uma transparência impensável e desnudada te vejo, e vejo claramente
recalcados nesse íntimo os teus temores e os teus traumas, agigantando-se para
fora desse subconsciente que, sem que o saibas, diz mais sobre ti que um cartaz
gigante à beira-mar plantado ! Cuidas tu que te resguardas ? Talvez, talvez
creias que sim, mas não de mim para quem o maior de todos os perigos para ti
mesma és tu. E de que te podes acusar ? Desse teu casamento estiolado ? Dos
teus sonhos frustrados ?
Que exijas dedicação, mimos há tanto esquecidos que
só a mente já tos permita obter não é novidade para mim, não, nunca foi, mos
contou gritando o teu silêncio, esse mesmo silêncio que te engana quando te diz
que os anos já pesam, que a tua vez já foi, que as oportunidades te estão
vedadas. Então, nada me admira que te fiques sonhando, entregue a ti mesma,
sonhando novelas, almejando outras vidas que gostarias viver ou ter vivido.
Garante-me que não é essa a razão pela qual ansiosa aqui vens e aqui estás,
espreitando o único mundo a que podes aceder para fugir dessa prisão em que te
encerraste. Sedenta de atenção te vejo e, crê, terás que libertar-te desse
refúgio dessa recusa a ti mesma. Procura a esperança, faz com que as rugas, o
peso e o corpo, os medos e receios, tu, acreditem que ainda existe vida e
esperança. Não temas a tentação, o sonho, a ilusão, o amor, a paixão, a
entrega, a dádiva ! Deita ao chão as barreiras que ergueste em teu redor, em
tua mente, liberta-te desse mundo que temes e será cada vez mais temível se não
ousares, no qual inadvertidamente te fechaste, ou deixaste te fechassem. E não
sabes agora como derrubar essas grades, esses traumas e temores ? Desaprendeste
de viver, viver de novo, viver, tão enleada nos teus medos ficaste ?
Leio em ti, sempre li tudo quanto tentas esconder.
Quanto mais escondes mais transparente te tornas. Acredita, não imaginas nem
sonhas quanta tralha vejo recalcada no teu íntimo, rodeada de teias de aranha e
ferrugem, como antigas peças espalhadas pelo chão terroso de um qualquer
antiquário, cujos passados adquire para vender como futuros, futuros de que nem
te apercebes mas não serão teus, nunca serão, o futuro faz-se, não se compra,
por isso vês o teu como se um peso, um estorvo, uma impossibilidade, e tentas
nesse mercado de velharias encontrar outro, mais promissor, mais liberto, mais
conforme, mais teu, mais tu. Todavia, ainda que não creias, foste tu a obreira
da prisão contra a qual agora te debates, e eu, sim, dar-te-ei a mão,
ajudar-te-ei a saltar. Quem pretendes enganar quando comigo falas ? A ti
certamente. A verdade é que não encontras modo de te libertar não é ? Não és
única, quem me dera contigo em cada momento, ter tido ocasião de abraçar-te,
envolver-te em meus braços, beijar-te ardentemente, longamente e, porque não,
amar-te mesmo nesse momento, nesses momentos, amar-te não com a violência que
em mim provocas, mas devagar, somente com esta vontade que em mim encerra a
urgência de desejos reprimidos, calados, contidos, num delírio que nos elevasse
bem mais alto que os sonhos que partilhamos. Provar-te que te quero, te desejo,
que és mulher, que és bonita e gostosa. Que são no caso as tantas e tantas
diferenças e obstáculos que nos separam ? Como não lembrar-te se te desejo ? E é
grande o desejo, agora que pressenti o lacrimejar dos teus olhos, que neles me
enleei, que por eles perdi os sentidos, a noção de espaço e de tempo,
recolhe-te nestes braços abertos para ti, vê a esperança, a liberdade, poderás
ser de novo livre, de novo senhora de ti, não temas, vem a mim, afasta para
longe traumas e receios, isto não é um sonho, nem ilusão, é a minha resposta
aos teus medos, vem, deixa que te
ame, deixa que te abrace, ainda é possível, tem coragem, crê.
Amo-a
sinceramente, não posso beber tanto se quero que confie em mim, contudo um ou
outro copo dão-me a coragem para tocar em temas tabus que de outro modo não
tereia coragem de abordar e agora sou eu que piegas lacrimejo ao lado dela, mão
na mão, vou sorrir para a animar e lembrá-la da hora do almoço e que comprei
para sobremesa um melão, sim está no frigorifico a refrescar, coisa que tanto
ela como eu adoramos acompanhado duma fatia de presunto. É isso mesmo, um
branco de Colares geladinho, pão, melão e presunto.
Zabora
Machel que se faz tarde.
Bem
disposto como estou, bem comido e bem bebido, o sol radiante e o campo um
paraíso, penso não vos ter dito ainda que ele, ele o campo começa nas traseiras
da minha casa, do bairro ou urbanização onde vivo, a da Cartuxa, por aqui ter
sido esfolado vivo no tempo do Marquês de Pombal um monge. Não vou cansar-vos
com a história desse frade ou abade, nem sei se a abadia já estaria erguida ou se
o foi depois da morte dele, mártir da ignorância da impetuosidade e boa vontade
da populaça, é coisa que não interessa à matéria deste conto, adianto-vos
somente que a turba deu-se conta demasiado tarde que o bom homem estava
inocente, todavia já era tarde para travagens e arrependimentos pelo que o
homenagearam com o dito convento ou abadia ou igreja, assente logo ali e sobre
a cova onde o enterraram.
Um
dia belíssimo para me evadir desta prisão, do condicionamento, do
distanciamento social ou o diabo que os carregue, pegar na mota e fazer um
crossezinho por estes campos sem o transtorno das operações de segurança na
estrada que não serão animadoras nem encorajadoras nestas voltinhas, bem pelo
contrário como estão sempre mostrando na televisão metendo as estatísticas por
tudo e por nada para assustar ou impressionar os papalvos. Agora como dantes e
depois destas trevas continuaremos morrendo alegremente nas estradas, ainda que
nunca tenha percebido qual a nossa mórbida preferência pelo Verão, Natal e Ano
Novo. Por mim o período que atravessamos não será o mais agradável mas no campo
sê-lo-á certamente mais correcto, pois porquanto nem haverá contactos pessoais
ou interpessoais nem forças de segurança nem bombeiros, pois é primavera e não
têm ainda que se haver com a praga dos fogos. E gostos não se discutem, o que
vale a pena discutir são os “cavalos” das nossas máquinas, cada vez mais
potentes e seguras, pois não queremos ser envergonhados por qualquer artola, ou
morrer ao volante de um veículo infame, mais para burro que para Ferrari, o que
em nada dignificaria uma morte tão digna como a que todos certamente
ambicionamos. Por mim estou bem servido, esta máquina é uma cabrita dos diabos
e para mim como para os demais pelo menos nesse momento, só o melhor. Mas o
tempo não está para paleio macabro, vou mas é aproveitar esta tarde de sol e
dar um passeio. Tenho já saudades da sensação que a adrenalina provoca em mim,
e não são os cigarros nem o atravessar das passadeiras que me fazem vibrar. Tiro
a mota da garagem, acciono o start com o pé, uma patada seca, forte e deixo-a
ronronar enquanto o motor aquece. Parece-me bela ainda, tal como no dia em que,
apaixonado, a fui buscar ao stand. Há algo de subtil nas suas linhas que me
cativa, e a silhueta dá-lhe um ar bravio de cabra montês.
Experimentem
observá-la do posto de pilotagem, tem algo de feminino que não sei explicar, as
medidas são as de uma modelo de topo, magrinha, anorética, não brinco, o
depósito, comprido e estreito esconde um motor potentíssimo, alma que a anima,
que me anima, o banco ou selim, estreito e delgado, para que me possa cingir
bem nela como quem enlaça uma mulher com as pernas, a traseira de ancas escorreitas,
albergando um pneu de medidas soberbas e base de muita tracção e segurança
neste tipo de veículo. Fato desportivo e colorido vestido, ajusto o capacete e
parto sem destino. Como é diferente de um carro, um carro é um sofá com rodas,
bem pensado esteve aquele anúncio na TV que assim os retratou, efectivamente
nunca um carro me seduziu, nem o porte nem a velocidade. Sou aliás condutor
cauteloso, respeitador, cortês, nunca buzino nem faço gestos menos próprios a
quem quer que seja, e lembro-me que atrás de uma bola vem sempre uma criança. Respeito
religiosamente o código e os limites de velocidade, sou mesmo um condutor
exemplar, mas como é diferente a mota, como todo eu fico diferente, há quem vá
para o rio pescar, ou quem vá ao futebol, ao cinema, ou beber uns copos para
libertar o stress da semana, eu gosto de andar de mota, sem destino tantas
vezes, sentir o campo, o vento, a velocidade, a vertigem. Instintivamente busco
as veredas ou as estradas de terra batida, trilhos entre rochedos, ravinas,
riachos, açudes, penhascos, tenho mais motor que estrada, mais velocidade que o
necessário. Outras vezes rolo pacatamente em velocidade de cruzeiro, a mota quase
parecendo somente embalada, parada e eu apreciando a paisagem.
Tudo
que seja menos de 50 quilómetros por dia não dá para aquecer, só a partir dos 20
o corpo se altera, fica mais tenso, mais vivo, mais rastilho, mais detonador,
mais explosivo, nervos à flor da pele, depois o cansaço, o corpo doído, mole,
moído, concita-me a pensar em fazer o caminho de volta. Após percorridos vinte, trinta, é aí que está o
paraíso, é a partir daí que as sensações valem a pena, é a partir daí que a
adrenalina entra em ebulição, é aí o limite mínimo das sensações que se
procuram, é nessa faixa estreita entre os 20 e os 30 quilómetros feitos que o
milagre acontece. Que o expliquem psicólogos e psiquiatras, que o perceba ou
entenda quem saiba ou for capaz, eu não sei, não compreendo, não entendo, que
torna o homem-máquina uma cabra, um monstro ? O risco ? A vertigem ? O desafio
? A inconsciência ? Mas se eu até sou um cidadão exemplar ! Acelero quanto
posso, curvo e travo nos limites, travar a estas velocidades pode ser um erro
crasso, a bota a raspar o chão, abro a perna dobrada para o lado em que curvo,
o corpo tombado sobre a mota equilibra as forças em presença e contraria a
força centrifuga, o tronco manobra o centro de gravidade e o depósito estreitíssimo
diminui a resistência ao vento, os sentidos alerta, os olhos, como um radar,
perscrutam a estrada muitos metros adiante observando minuciosamente tudo, os
reflexos apurados antecipando tudo. Homem e máquina são um só, nem uma mulher
consegue tal simbiose, nem prolonga no tempo e no espaço tal comunhão. É uma
sensação medonha, avassaladora, viciosa, viciante, a dependência é total. Porque
somente o tabaco, o álcool, as drogas, são socialmente condenados? Quem acode
ao monstro que por vezes vive em mim ? Em nós ? Nem eu nem tantos outros nos
lembrámos ainda de ir escrevendo o epitáfio, mas seria bom que não fossemos
apanhados desprevenidos, como tantas vezes acontece, apesar de cautelosamente
anteciparmos tudo.
Depois
desta evasão e do cansaço inerente a calma volta a mim sem necessidade dos
cigarros da cerveja ou de outros quaisquer consoladores destes tempos de
cólera, não de cólera mas p’lo menos de epidemia de pandemia. Nem charutos, nem
sequer um baseado, depois de tantos quilómetros a bater o stress foi dissipado
e eu, que nunca fui capaz de dizer amo-te, que nunca fui capaz de dizer amo-te
querida, amo-te. Apesar de tão simples, aparentemente tão simples nunca fui
capaz de o dizer directamente quanto mais de o repetir. E devia tê-lo dito,
tantas e tantas vezes, e não fui capaz. E como se diz a uma mulher com quem
ainda não haja um compromisso sério que a amamos ? Como o compreenderá ela se o
disser ? Pensará que minto, que finjo ? Melhor que o cale antes que ela pense
que só lhe desejo o corpo fino, esbelto, apetitoso, há que dar tempo ao tempo. Melhor
nada dizer até porque ninguém abordou este tema para além do seu valor factual,
nem ela nem eu, nenhum de nós o fez, o abordou, nem meramente a título de
curiosidade ou informativo, geralmente escondemos um do outro o nosso passado,
os nossos dramas, aspirações, sonhos por realizar, e não devíamos. Hoje, tal como
ontem, perante esta realidade que nos confina e ainda continuará a
condicionar-nos por algum tempo, a responsabilidade nestes assuntos exige
abertura, confissão, catarse, mas ambos continuamos contemporizando e nunca
será assim que ganharemos a confiança um do outro, é uma questão de confiança
mútua. Estou a falhar, tenho consciência de tal e isso revolta-me !
Quantos
de nós apesar de atingida esta idade, apesar da maturidade não nos realizámos
ainda ? Quantos de nós se desviaram ou foram desviados das suas aspirações ?
Quantos fomos incapazes de sublimar aquela força íntima que teria feito de nós sei
lá, um Prémio Nobel por exemplo. Quantos de nós fomos privados de uma
oportunidade ou de seguir estudos por governos que há quarenta anos falham
sucessivamente, que de há quarenta anos para cá falharam rotundamente ? Quantos
de nós graças a eles hoje varrem ruas ? Quantos hoje são “caixas” em
supermercados ? Quantos fazem turnos na AutoEuropa ? Quantos portageiros ? Portageiros
não que já nem isso há, mas quantos emigraram ? Quantos rumaram a Badajoz e
Salamanca, ou outras cidades espanholas, para cursar, com médias irrisórias,
médias de gente normal, e não médias que só anormais alcançavam, o curso de
medicina que aqui lhes foi negado ? Quantos de nós fomos fodidos com a nossa
permissividade e a ausência de responsabilidade e competência de quem nos
governou e governa ? Que futuro tem um país que assim fode as aspirações dos
seus filhos ? Olhemo-nos, vivemos uma crise dentro de outra crise, a crise é
nossa, está em nós, erigimos um Serviço Nacional de Saúde que a Cuba de Fidel
envergonha todos os dias, temos listas de espera a perder de vista e com
tendência a piorar, temos a medicina mais cara do mundo, consome rios de
dinheiro do orçamento de estado e não nos serve, graças à nossa ignorância e
incapacidade instaurámos a medicina privada como a nova galinha dos ovos de
ouro num país de miséria cuja miséria está a tornar-se galopante. No oeste
selvagem, na velha América, ou naqueles países onde hoje a liberdade e os
direitos dos cidadãos são coisa palpável e um bem seriamente defendido, no
oeste selvagem dizia eu, por menos, por muito menos, puxavam do colt 45, “o
justiceiro”, ou penduravam pessoas nas árvores. A crise somos nós. E eu que
nunca fui capaz de lhe dizer abertamente quanto a amava, quanto a amo ! Eu que
nunca fui capaz de lhe dizer amo-te ! E devia ter dito ! Teria sido tão
simples, contudo nunca fui capaz de o dizer, de o escrever em letras garrafais
numa qualquer parede e devia tê-lo feito. Mas juro-vos que o farei !
Tantas
e tantas vezes penso nisso agora, não ter sido capaz. Porque agora sei como se
diz a uma mulher madura que não é mera boneca ou Barbie o que nela amamos ! Estando
com ela ! Ao lado dela ! Por certo ela compreenderá se eu o fizer! Pior se o
calar. Hoje sei por que abandonei a carreira docente, porque fui incapaz de lho
dizer, calei, calei-me. Esse gesto pesar-me-á na consciência a vida inteira. Será
que poderei fazer algo que emende o resultado do meu silêncio além deste tardio
arrependimento, além desta aparentemente irredutível defesa. Posso, pedir
responsabilidades e satisfações a mim mesmo, abandonar a postura sinistra e velar
pelos nossos interesses comuns, pelo nosso bem-estar, pela nossa saúde mental,
pelo nosso futuro. Afinal vivemos juntos e juntos buscamos um compromisso mais
sério, mais duradouro.
Meditei
seriamente nestas minhas últimas palavras, procurei conhecer-lhes o alcance,
talvez então me prodigalize alguma razão, porque todavia os factos que vos
narrei contra mim estão, mas isso era dantes e feito com desconhecimento das linhas
que pisava, terei que mudar, mudar e enfrentar a verdade e a realidade com
coragem, com sentido do dever, da ética, com humanismo, se é que quero apostar
numa relação séria e duradoura. Tudo isto é triste. Foi. Acabou-se. Vida nova
doravante, assim o vírus me poupe e fica aqui a jura feita.
Já
devem ter calculado que depois daquela noite passada debaixo do choupal só
voltei a encontrá-la, no ginásio, passados muitos anos. Tantos que eu era outro
e não o mesmo que então claudicara perante o seu ar de jovial ingenuidade e
extrema hesitação, minhas também, tendo guardado dela a lembrança da proverbial
e irradiante simpatia, que difundia a partir de um rosto espelhando meiguice em
catadupas tais que me submergiram e em simultâneo calaram, como agora voltaram
a calar inda que tenha jurado a mim mesmo abrir este coração empedernido sob
pena de me condenar a perdê-la de novo. Terão entendido que a revi agora
passados alguns anos e que em mim voltei a calar, apesar da mesma hesitação, da
mesma simpatia e meiguice, o que calei então. Não que me sinta outro, apesar de
o ser, nem que me sinta o mesmo, que o não sou, todavia os anos ensinaram-me a
cultivar uma humildade que nessa época nem era uma marca minha nem estava perto
de alcançar. Contudo, agora, a mesma contenção de outrora, porque o
cavalheirismo, a educação, o civismo, mas sobretudo as convenções ou
conveniências assim o exigiam e exigem. Calei ontem como hoje o que tenho neste
momento vontade de gritar, mau grado as dores passadas, mau grado a vontade e o
desejo, mau grado o ensejo, cousas que não quero ver mal interpretadas.
Revi-a
agora neste ginásio confinado, condicionado, condenado a metade da lotação
habitual ou nem teria dado por ela e, como então à sua passagem voltou a
lembrança, imagem e odor que nunca olvidei, a graça do andar, a altivez honesta
do porte, a simplicidade da presença, o sorriso, o mesmo sorriso, simples,
sincero, leal, franco, autêntico e afectuoso que julgo ostentará sempre, porque
há coisas que não mudam com a beleza, ou com a idade, mas sobretudo porque há
coisas que algumas mulheres não sabem, como a vitalidade e capacidade inata de
nos transmitirem, mesmo que o não sintam, mesmo que o não saibam, o poder de
conquistar o mundo por elas e para elas.
Lembrem
D. Pedro e Inês de Castro, Napoleão e Josefina, César e Cleópatra, Heloísa e
Abelardo, Romeu e Julieta, Hitler e Eva Braun, para que vejam a força
construtiva ou destrutiva que a influência de uma mulher poderá ter na vida de
um homem, pois como disse há coisas que algumas mulheres não sabem, como seja a
vitalidade e capacidade inata de nos transmitirem, mesmo que o não sintam,
mesmo que o não saibam ou desejem, o poder de conquistar o mundo por elas e
para elas. Por isso voltei a calar, o que calei então. Compreender-me-ão, o
mundo não me perdoará o avanço, ou a sinceridade, a mágoa ou o amor se não
forem sinceros.
Perdoar-me-á
ela ? Merecerei eu esse perdão ? Será melhor calar de novo o que então calei,
melhor conformar-me agora como então me conformei, ou não ? E é isto a vida, é
esta complexidade que em nosso redor criamos, é nesta complexidade que avançamos,
ou soçobramos se incapazes de libertar o que nos vai na alma mas capazes de
infligir a nós mesmos e aos outros, a imposição e continuidade, pela força, do
desígnio, das convenções que nos tolhem e agrilhoam, como se a vida não fosse
uma só, não fosse nossa, e acredito que não seja, por isso digo para mim e a
toda a gente que, embora tarde, descobri da pior forma como a vida é curta.
E
como será ela agora ? Agora que a jovialidade se foi, ainda que a hesitação e
sinceridade se mantenham ? Agora que a rotina dos dias sempre iguais lhe terão
desfeito os sonhos dos dias felizes que a agnosia permite ? Calará também ela
como eu fiz, os sonhos que em segredo foi acalentando mas a que, para mal dos seus
pecados, jamais deu corpo ? Por certo calará como eu calo o que a alma grita e,
como eu, talvez um dia demasiado tarde descubra como eu descobri que a vida é
curta, tão curta, demasiado curta.
E
agora acabaram-se os dias longos e rotineiros. Quando ela passa, cada vez mais tenho
a certeza do turbilhão calado e contido que em mim provoca, sem que se dê
conta, como com tantas mulheres acontece, elas como nós gizando um mundo tão
distante da realidade quanto da ficção em que vivemos, porque a tal nos
condenamos, porque para tal contribuímos e, calados, calamos o que nos vai na
alma, o que só não fez uma única mulher que eu saiba, Isabel Allende, ao
escrever “Inês da Minha Alma” ou Gabriel Garcia Márquez com “O Amor em Tempo de
Cólera”.
Quem porventura tenha lido estas obras compreender-me-á
melhor que ninguém por isso é hora de me abrir, de ganhar a sua total
confiança, de lhe dar conta dos meus projectos e do caminho que sonho venhamos
a partilhar juntos. Leram aquelas obras, suponho que leram, e quem não leu só
terá a ganhar se o fizer.
É
que eu tenho uma vida sabem ? E adoro-a, a ela e à vida, e adoro-me
desmesuradamente mercê desta autoconfiança, deste amor-próprio, desta
auto-estima e do ego, que tenho inflado quanto baste e nem um bar a mais nem um
grama a menos, e tanto que me falta, e tanto que não tenho, nem invejo, nem
procuro. Sou espartano no ter, estóico no ser, vivo feliz, saciado, tenho uma
vida sabem ? Vivo ! E não me chega o tempo, e sobra-me disponibilidade, como o
Cristo-Rei, braços abertos, sim, sou eu esse ! Verdade que sempre cicatrizando
feridas, verdade que sempre sorrindo à vida, e os olhos ? Ah ! Os meus olhos !
São tudo para ti os meus olhos ? Mas nada mais para mim que não um espelho
opaco desta alma em permanente agitação. Vivo de agitação, vivo para a
agitação, não consigo viver sem ela ! Sabias ? Então imagina agora quão me
custa manter-me confinado dentro destas quatro paredes, não fosses tu, não
fosse a tua presença e maior seria o martírio.
Mas
OK, está bem, olhaste, e nada viste ? Ao menos a cor ? A pupila dilatada ?
Retraída ? E nada mais viste ? Que pena, que lamento, que ironia estas janelas
do mundo fecharem-se quando as olhas ! Mas viste o cansaço, a impaciência ?
Notaste o cansaço, a saturação ? Bastou-te ? E então ? Contente ? Feliz ? E
conclusões ? Posso sabê-las ? Saber quanto ficaste longe da verdade, ou saber
quão afastada estás da roda da vida…
Olhaste
e só viste uns olhos vermelhos, carregados, inchados, só o cansaço te foi
visível ? E o peso acumulado de sonhos desfeitos ? Traídos ? De frustrações
assumidas mas dissimuladas ? O cansaço de tantos fardos carregados não lograste
alcançar ? Então o que te mostraram os meus olhos ? Mais é o que escondem que
aquilo que mostram não é ? Mas tu não sabes, e por eles tentas descortinar-me a
verdade olhando-os ? Medindo o grau da cor que carregam, como quem numa feira
esquadrinha cautelosamente os dentes de uma mula que qualquer cigano venda ? E
eu feliz, escondido nestas olheiras mas feliz, rindo do mundo, desse mundo que
aprendi a não tomar a sério mas para o qual me faço parecer ou não me
perdoariam a ousadia, sei-o, não me perdoarão o desprendimento das coisas
terrenas, o alheamento aos pormenores comezinhos que prendem, prenderão mesmo ?
E é
pelos olhos que me perscrutas ? Que coisa mais tola, abre-me antes o peito, olha-me,
vê como sou, ficarás maravilhada, assombrada, talvez siderada. Não presa, não
estupefacta por o coração me bater ainda neste ritmo certo, rimado, mas
surpreendida com a sua grandeza, generosidade. Apesar dos remendos, o seu
acolhimento e magnanimidade, a sua invariável batida, o modo repentino como
bateu acelerado ao teu olhar, ao teu toque, à tua observação, tudo isso nada te
disse ?
E,
fora as marcas, as cicatrizes que observaste acredita, não recordo já os maus
momentos, nem me lembro de esquecer os bons por um segundo que seja. Ah ! E que dizes da sobriedade ? Do
tino ? Do juízo ? E de tantas dessas merdas com que durante anos te encheram a
cabeça ! Aposto as não viste nos meus olhos pois não ? Ah ! Ah ! Ah ! Há
quantos anos alijei essa carga ! E crê em mim, só então o sol ! A luz ! A
claridade ! A vida ! A plenitude ! Eu !
Munida
de meras palavras, falaste-me um dia da vida e da morte, da eutanásia, do livre
arbítrio, do conflito entre o Id o Ego e o Superego, da necessidade que tinhas
desse equilíbrio entre o sujeito que eras e o social em que te movias,
lembro-me como se fosse agora, lembro-me que nunca mais no meu espírito houve
paz, condescendi e calei-me, no final e retocando o rímel disseste-me com um
sorriso:
- A
vida é um palco, sê.
Tornei-me
egoísta, e desde aí vivo no medo, de ficar só, de perder-te embora sabendo que
me convidavas para entrar em cena, na tua cena, no teu guião, no teu cartaz,
mas fiquei feliz, felicíssimo. Ainda lembro esse dia de júbilo e, em minha mente
estalaram foguetes festivos, petardos, embora tenha sido a queda ocasional mas
simultânea de estrelas cadentes que me fizeram pressentir, através do instinto,
no momento em que te conheci, a iminência do destino impondo ao meu fado outros
rumos, imprevisíveis, pois foi como se alguém tivesse acendido lustres no
caminho que para casa piso, ou como se festejando estivesse toda a vila em que
vivia.
Tão intrigado fiquei quando te revelaste que
duvidei de uma linha nunca vista na palma da minha mão, e tantas vezes mesmo em
sonhos ou através de uma simples imagem a contemplei, sem coragem para algo te
pedir, que se me acabaram nesse instante os dias de apodrecida felicidade, mas,
e foi particularmente ao ver as borboletas que acusam de provocar com um bater
de asas furacões no outro lado do mundo, que me senti como que invadido no meu
ser, no meu íntimo, tendo sido como entrar numa outra dimensão e ter ficado
outro, fiquei outro.
Repetidamente
e com prazer revivo esse momento único, contemplo de quando em vez o céu e
acodem-me essas lembranças de ti, de nós, em tantas das quais fui levado a
pensar se não estaria perante uma visão de espanto em que não mais o meu
coração até aí aturdido, adormecido, teve um instante de sossego porque passei
a cumprir um destino exclusivamente ditado pelo capricho da rosa-dos-ventos,
diariamente dedicado à exaltação da tua glória e em que o silêncio passou a
incomodar-me mais que o alvoroço em que dantes vivia.
Quantas
vezes tropeço agora nas minhas palavras dantes tão ordeiras, e agora me enleiam
ou fazem que a realidade se enrede em mim, de tal modo que ouço gaitas trinando
como celebrando esta minha alegria incessante não havendo dia sem que
tempestades de flores me ensopem da cabeça aos pés, a mim que passei a ouvir as
rosas abrindo silenciosamente pela manhã, a ver meninas virgens fazendo renda
nas soleiras das portas quando marcho pelas mesmas ruas às quais dantes nem um
minuto de atenção me prendia e agora impossível não lembrar-te, formosa como
sempre, num hábito de noviça do mais puro linho, tu oferecendo-te numa
inimaginável cama cuidadosamente decorada para os desaforos do amor e num gesto
em que, curiosamente, jamais deixas de te persignar antes de para ela subir,
pelo que deixei de suportar a nostalgia dos tempos passados, visto durante
aqueles ter morrido em mim a razão ultima da minha ansiedade e hoje estar
pronto a jurar e garantir que te quero tanto que morreria por ti. Será caso
para dizer andar-me o pensamento flutuando na luz cristalina da esperança e me
perguntar se não será pequeno o mundo ? É não é ? Ignoro se sempre assim foi,
mas sei que é assim agora, assim o vejo neste instante e no meu constante
fluir, tão manso quanto o pode ser um rio.
E tu
? E por que não me falas de ti ? Conta-me de ti, que pensas de ti ? Como te vês
a ti mesma ? Como te consideras ? Que vês quando te olhas no espelho ? Terás de
ti mesma a imagem que eu colhi ? Sim porque ao longo dos anos te tenho
construído e reconstruido como um puzzle, como um jogo de Lego sem jamais te
ter entendido. Creio conhecer-te mas falta-me o teu ámen, a tua confirmação, a
tua assumpção.
Sim,
olha-te ao espelho, olha em frente… Que vês no espelho que não a inocência e
ingenuidade de um anjo ? Diz-me, que vês nesse espelho ? Esse rigor
auto-imposto fica-te mal, exagerado. Onde iria o mundo com a bitola de um rigor
assim ? Quanta gente condenarias aos infernos ? Quanta com pecados bem maiores
? Mas qual o teu ? Que pecado afinal que não entendo ? Que exagero não achas ? Que
sabes da vida ? De tentativas e erros ? Que moral em ti que te condena dessa
forma ? Experiências não são erros, são dores de crescimento, são partos de
maturidade. Não te pergunto se boas ou más, apenas digo que erros desses são os
rebites duma mulher em construção, em assumpção. Deus distraiu-se um momento,
foi isso e apenas isso, e enquanto tal o teu anjo salvador caminhava neste
mundo deslumbrado c’o pecado de que te devia resguardar. Apenas isso crê,
creio.
Dir-te-ei
seres doida por assim pensares, que serás mesmo muito doida. Doidinha. Porque
não pensas em ser feliz ? E isso sim, chamares louco a quem te vê assim ? Assume
esses pecados que o não são, liberta essa alma cativa de conceitos que te
marcam o peito, maltratam o coração, não sejas tola, isso nem é pecado nem
segredo, é retrato a branco e preto, nem mata nem consola, importante é não
seres vencida, condenada ao degredo, esquece, foi feitiço, foi encanto, foi
pedra no caminho, foi instante, que as tuas escolhas não sejam distraídas, que
nenhum homem te olhe com indiferença e, jamais esqueças, vive-se mais quando se
sente. Não te condenes a uma vida sossegada, sem sentimentos, sem sentido, foge
do que não sentires, foge de não existires e não queiras como certa gente,
estar morta sem o saberes, ou viva sem dares por isso.
Cura
essa chaga que abriste c’a inocência que brandiste quando o coração, ébrio, em
alvoroço no teu peito se batia. Esquece, nem saudades nem ciúmes, esquece,
porque é assim que as cicatrizes se vão, aos poucos, sem que marcas deixem, que
desapareçam e pronto, o que foi passado passou-se, o futuro há-de chegar
trazendo o amor, sonhos correndo como rio impetuoso cavado em leito entre vales
varrendo na passagem pesadelos e desgostos, culpas sem fundo, pecados
imaginados, vinganças inflamadas e lágrimas desperdiçadas. Ressurgirás então pura
e inocente como sempre foste, aos dias suceder-se-ão as noites, e, como sempre,
sol e lua brincarão de novo perseguindo-se através de continentes, de oceanos
e, no entretanto os teus prantos ficarão comigo, ficarão esquecidos para que o
teu coração possa arder de novo, de novo largando chamas e alimentando
esperanças, e estrelas, e tu, mulher madura, soltarás um sorriso irónico e,
prenhe de consciência, concordarás que na vida não há coincidências e na milagrosa
e elíptica espiral que é por vezes nos apanha desprevenidos e, nem que apenas
por um momento seja, ai de nós se esquecemos amor, meiguice, carinho, doçura,
paixão, no fundo tudo que dá sentido e cor a esse furacão, a esse vulcão e a tudo
que te preenche, da paleta à tela em que o nosso destino desde muito cedo foi
esboçado.
Estás
de partida, a meninice já foi, na estação azulejos, neles um anjo e um
querubim, não sabes, como ninguém sabe ainda qual o caminho, sabes apenas como
cada um de nós que terás que ir até ao fim, que o destino se cumprirá. Haverá
quem te ame, e ame tanto que te achará a mais linda, então sorrirás de novo e
chorarás de alegria, borrarás o rímel e, por um momento tão pequeno que só tu
entenderás, só tu perceberás, olharás o infinito soltando um sorriso,
concordando que na vida não há coincidências e que por algum motivo nos
encontrámos numa das encruzilhadas que o fado cantou, canta e cantará, sempre.
Então,
só então, te darás conta do quanto vale um amor assim.
Por
mim posso agora afirmar com propriedade ter sido a tua exuberância,
sensibilidade e beleza, faculdades que só a verdade engendra e testemunham a
tua alma em permanente mutação as primeiras a conquistar-me, mutação no sentido
da renovação, da criação, da metamorfose da vida, o que somente o natural comporta,
por isso me prometi a ti e desde esse momento profetizei que havias de ser
minha e eu teu, sem que a menor dúvida me tivesse beliscado. De nada portanto
valeram no caso sofismas, retóricas, malabarismos, artifícios, fórmulas,
teorias e teoremas, conjuntos lógico matemáticos ou racionalismo puro. Analisei-te
desde o primeiro instante com uma objectiva frieza e um calculismo que, tendo-me
convencido, me levaram a baixar a guarda e abriram em mim o baú da esperança,
qual caixa de Pandora que me será impossível conter, aberta que foi, e activada
ou executada a profecia.
Juro-vos
ter sido esse o preciso momento em que ela me deslumbrou pela primeira vez,
pois desde essa ocasião em diante não recordo dia algum que ela não me tenha
surgido como uma aparição. Essa impressão incomum cativou-me primeiro e
encantou depois, para sempre.
Por
isso te lembro e relembro, te sonho e desejo, te imagino num altar, tu em pé,
altiva e hirta, eu de joelhos, abraçado a ti, mirando-te, olhando-te de baixo
para cima, admirando-te as colunas de Hércules, o olho de Ciclope, o olhar
trespassando-te dum desejo latente, permanente e, ante ti eu, qual lactente
sedento, olhando o Paraíso, a maçã, o fruto apetecido e eu, de novo eu, sempre,
homem amadurecido, sucumbindo à tentação, ao fruto proibido, trepando p’las
marmóreas colunas acima, agora abertas, agora convidativas, dando passagem a
minha nau, acolhendo o meu rumo, e eu sedento, e tu o sumo. Além, o Farol de
Alexandria assinalando a noite, marcando o ritmo, o dia, policiando as águas
agitadas como dois lençóis em desalinho e, entre sedas e linho, o cálice ! O
cálice ! Quero-o ! A cicuta, a cicuta, a mim ! A mim ! Anseio matar esta sede,
este desejo, fantasia, ambição, sonho, melodia, delírio.
Tremem
as colunas de Hércules ante o meu gatinhar sôfrego e, de tão fortes oscilam sob
tensão, tangem, vibram como cordas, viola, violinha, violão, fado, destino,
vibram hesitantes, dissonantes, cunha cravada entre querer e não querer, entre
o dar e o haver, saldo, preço, conta, sacrifício, razão e emoção, quem vence ? O
coração, que tacteias com a mão enquanto abres como pétalas em flor c’os dedos
teus, e evolando-se no ar o néctar, o cheiro a néctar, agora meu, e tu, e eu, e
nós, e em minhas faces o mármore gelado das colunas quentes, ardentes, a cicuta
bebida num trago, avidamente, o Farol no máximo. A luz omnipotente, as
estrelas, sobre nós somente estrelas, tudo estrelas, estrelinhas, estrelícias, as
colunas fechando-se e o meu abraço cingindo-as, enlaçando-te, e tu, qual
Ciclope, tacteando-me os cabelos, puxando-me, empurrando-me contra ti.
O
olho do Ciclope dado, dando-se, abrindo-se, extasiado, surpreendido,
estupefacto, e finalmente fechando-se, sossegando, dormindo e eu num abraço
arrebanho contra mim o mar Mediterrâneo, velando as tuas águas, o teu descanso
até ver em meu redor mar chão, ouvir o canto das sereias e divisar ao longe o
galeão onde dessedentados partiremos gizando um novo rumo, construindo um novo
mundo, redescobrindo arquipélagos, enseadas, portos, abrigos, e de novo o amor,
o mesmo outrora tão temido, ora perdido, ora encontrado, agora o passadiço,
passado é passado, subimos ambos, devagar, tu à direita eu à esquerda, a espada
balançando na cintura, o galeão ondulando na bonança, o espartilho, corpete
dando-te forma, um camarote real, baldaquino, dossel, o amor, o amor, o galeão
avançando, navegando, balançando como um
carrossel…
F I M
By Humberto Ventura Palma Baião, em 22 fde Abril de 2020