Estou
em mudanças, deixei há poucos dias a minha alegre casinha, cá me arranjei para
ocupar uma outra, bem bonita e a desejo, com comodidades que a que deixei não
tinha mas que a minha idade já não dispensava.
Entre
outras vantagens dispõe de gás canalizado, o que o meu marido acha óptimo, (queixava-se
que as botijas pareciam aumentar de peso a cada ano que passava), é um
aprazível rés-do-chão rodeado por bonito jardim, e fica localizado pertinho da
casa nova que o meu filho irá estrear, o que, não deixando remorsos à alegria
de o ver partir, minimiza a dor da separação.
Por
este motivo ando ainda com tudo em bolandas, de tal modo que até há poucos dias
e ao certo só sabia onde tinha a escova dos dentes e pouco mais, quase tudo o
resto andava embalado numa centena de caixas de cartão aguardando vez de
arrumação, para o que me sobrava vontade mas não me chegava o tempo.
Finalmente
tenho espaço para suprir a velha necessidade de um escritório/biblioteca à mão,
pois todas sabemos quanto é difícil trabalhar sem condições e na velha casa os
livros já se amontoavam por tudo que era sítio, visto ambos sermos leitores
compulsivos, mas sobretudo porque o meu marido os devora mais rapidamente que a
um petisco numa qualquer cervejaria.
Até
ocuparem o seu lugar no novo espaço que lhes será dedicado, muitos deles
repousam ainda nas ditas caixas de cartão, razão porque não recordo agora se é
de Camus, Sartre, ou qualquer outro um título que me acudiu há dias à memória; “ Os homens e os outros”, a propósito do
ter carácter ou da falta dele, numa questão levantada no seio de um grupo de
amigos e num alegre convívio.
Sou
por hábito e formação directa e frontal, assumo as minhas atitudes que defendo
com tanta garra e convicção quanto estou disposta a retractar-me e corrigir-me
quando erro. Engano-me algumas vezes e outras tantas sou assaltada por dúvidas,
problema que procuro resolver na hora ou logo que possível. A dar o dito por
não dito é que não me apanham.
Nessa
roda de amigos lancei propositadamente para o ar uma rasteira que sabia de
antemão só ser aceite por parvos, na absoluta certeza de não haver ali nenhum,
coisa em que não me enganei. Mas alguém mordeu o isco e se denunciou, e
denunciou-se não pela posição tomada, (na rasteira eu sabia que ninguém cairia),
mas pelo modo como colocou a questão, toda ela solidamente alicerçada numa
diplomática falta de bom senso, de diplomacia, de verticalidade e de coerência.
Respeito
ideias contrárias, honram-me opositores à altura, crentes, honestos e assumidos
na defesa intransigente daquilo em que acreditam, mas não vejo com os mesmos
olhos aprendizes de feiticeiro, marionetes a mando de cadáveres adiados que
pensam fugir a uma morte anunciada porque ouviram ao longe tocar as trombetas
das suas hostes. Quando os sinos tocam a finados os cães fogem assustados
porque desconhecem não ser por eles que dobram.
Os “homens”, especialmente os condenados,
têm obrigação de saber por quem vão eles repicar e quer se ouça ou não o clamor
das suas hostes, em duas coisas deveriam pensar,
- primeira; se elas chegam a
tempo ou dispostas a salvá-los,
- segunda; se não seria boa
opção fazer os mínimos estragos possíveis de modo a morrer com alguma dignidade
e com menos pecados na consciência.
Qualquer
condenado que assim proceda não ganhará certamente um óscar, mas morrerá de pé,
num combate frente a frente e nunca sujeito às indignidades que lhe mancharão a
memória e jamais lhe apagarão as nódoas que sobre si derramou.
Quanto
ao meu amigo que tão infantilmente se denunciou, não me conforma que se tenha
desculpado, traições não se perdoam nem se esquecem, saberá certamente que terá
que viver o resto dos seus dias com o anátema de quem não procedeu
correctamente. Há culpas que nem o mais compreensivo confessor redime, são
culpas que nem terá coragem de confessar.
Quanto
aos restantes amigos dessa grande roda que fizemos não me desiludiram, vincaram
opiniões que defenderam com galhardia, nem outra coisa deles seria de esperar.
Prevaleceu sobretudo entre todos e no final a concordância.
Saí
satisfeita do convívio. O que me aborrece mesmo é precisar de fósforos e
verificar que há homens que não os têm...