Desde
que em 73 ou 74, ano em que obteve algum sucesso com o aluguer de um monte a um
grupo de escravos da colónia que a vida lhe sorria. De tal modo que, sem dar
nas vistas e mantendo embora a mesma casinha simplória que alugara quando aqui
assentara arraiais, mandou erguer no meio da serra um monte nada modesto que
hoje não venderia a ninguém por menos de cinquenta ou setenta mil.
Foi
o primeiro agente imobiliário que a terra conheceu, alugar o monte abrira-lhe
horizontes conhecimentos e contactos que nunca pensara vir a abarcar, tanto que
se dá mal com o protocolo e nunca se sentiu à vontade entre gente normal. Os
recalcados complexos de inferioridade com que aqui chegou depressa lhe
passaram, só não reparou que o rodeavam tolos que o incensaram mas que agora
lhe não são capazes de acudir.
A
favela estava carente, fez umas gracinhas e brilhou, tendo caído no goto de
quem nunca soube o que querer e ainda não sabe, embora tenha passado tanto
tempo que já lhe chamam avô. Foi apostando sempre no imobiliário, sempre
devagar, que os excessos de oferta nunca foram bons para o negócio e é sabido
que a procura é mais mansa se não tiver muito por onde se afirmar. A par dos
negócios que ia controlando com mão de ferro fazia umas obrinhas de
melhoramentos na favela, o que fez com que, para onde quer que fosse,
arrastasse invariavelmente atrás de si uma multidão agradecida, ainda que cada
vez mais empobrecida.
Depois
descobriu acidentalmente que essas multidões estavam ávidas, há muito ávidas de
consideração, coisa banal barata mesmo, que começou por distribuir
parcimoniosamente, ainda que a baixo preço e hoje dissipa por altos valores.
Negócio é negócio mas as coisas não vão bem. A turba é ingrata e a horda não
lhe sai já nada barata. Uns exigem cada vez mais obras, a consideração passou
de moda e atingiu uma cotação que anda pelas ruas da amargura, outros já não
vão lá por menos e só lhe gritam;
-
Fiquemos !
Ou
uns ou outros diremos, não vai já decerto contentar ambiciosos há trinta anos
desejosos e muito menos os gananciosos que lhe apertam o cerco, lhe tolhem o
passo, roubam o espaço e dele tentam fazer um palhaço. Não deixa nem se queixa,
vai andando, mirrando, a consciência não lhe pesa, a coerência ! Ah! A
coerência ! Essa sim que coincidência ! Que ambivalência ! É um homem de
sucesso a quem o processo avilta, mas em qualquer entrevista, se pelo progresso
lhe perguntam, não hesita;
-
Ah ! O progresso ! Não seria má ideia não !
E
por aí se fica.
Amealhou
um capital nada desprezível durante todos estes anos, pena que o ande a
desbaratar em atitudes senis que já não convencem ninguém. Morrerá pobre se por
este caminho teimar, pobre e sem glória, já que vassalos, gonçalos e outros que
tais, mais dados aos vis metais, dele fizeram o bezerro de oiro que uns tolos
adoram e outros ignoram. Como deus não terá grande sucesso neste mundo de
mitos, como fetiche acredito mesmo que venha a ser empalhado ou melhor,
embalsamado, se no entretanto não ficar emparedado.
É
este profano que querem consagrar quem fica mais pequeno a cada dia que passa,
em simultâneo passam-se os dias, acumulam-se os dias em que nada se passa,
há-de até chegar o dia em que nesta cidade virtuosa, nem uma passa, o que não
deve demorar muito até que aconteça, visto que todos se afadigam para que nada
se faça, mas tudo pareça. Dos tempos de rapaz ficou-lhe o hábito de andarilho
ou não tivesse ele corrido meio mundo para aqui chegar, por isso está velho
dizem uns, que não dizem outros, está apenas gasto por baixo de tanto
andarilhar, e a gente sem saber no que acreditar.
No
entanto quando passa deixa já no ar um excessivo cheiro a naftalina, enquanto
as criancinhas, somente as criancinhas ou outros inocentes, divisam já em seu
redor seráficos querubins, anunciando o abandono da alma, gulosa de ascender à
eternidade e posar desnuda nos frescos da abobada que o espera, que a todos
espera.
Já
não arrasta multidões, um fenómeno sociológico que a economia o desenvolvimento
e o progresso futuros hão-de explicar para o ano faz com que já não arraste
multidões. Vagarosa e penosamente arrasta os pés por estas calçadas que
esventrou e só as crianças lembrarão um dia aquele andarilho que por aqui
passou.
*
NOTA: Vasculhando uma pouco usada gaveta
dei com um nítido primeiro rascunho deste inédito de Maria Luísa Baião,
impresso numa folha A4 já amarelecida pelo tempo, não datado e entalado entre
dois livros que em tempos idos agitaram a urbe, ambos do mesmo autor ainda que
separados cronologicamente por dúzia e meia de anos, ESTA CIDADE E EU do ano
2000 um deles, e UM PROJECTO PARA O FUTURO o outro, de 2016. Atendendo ao lugar
em que o rascunho se encontrava diria que o mesmo reportará alegadamente ao
autor das obras mencionadas. Tive o cuidado de nada alterar, cuidei somente da
pontuação e de um ou outro pormenor de somenos importância. Eu próprio que com
ela privei ignoro o sentido de alguns parágrafos, talvez o leitor faça deles
uma leitura mais completa que a minha, por esse motivo impunha-se que o texto
fosse minimamente remexido por mim, facto que respeitei em memória e respeito
pela sua autora.A seu tempo darei a minha opinião sobre este pequeno livro que somente agora comecei a ler.