Era
sábado, nuvens toldavam o dia, o futuro anunciado era de um inverno glaciar
onde nem os milhafres se atreveriam a crocitar nem aos voos rasantes e às
piruetas de outrora, e eu, triste, acordei ao toque da mão dela, vi ao longe a
torre do castelo de Monsaraz e lamentei que o meu sonho não tivesse
continuado...
Olhei
displicentemente a Tv, ao fundo as galerias da AR vazias, fora isso toda aquela
gente engravatada que nunca deixara de ver na televisão continuava botando
discursos, assumindo compromissos e fazendo juras enquanto o país se afundava e
eu, irritantemente revoltado, perdera os teus olhos cuja luz maravilhado
olhava. Esses olhos sempre foram a minha perdição, toda tu te transmutavas
quando eles, quais faróis, se acendiam excitados projectando uma luz calma,
trazendo à penumbra do quarto uma serenidade inusual, uma matriz uterina em que
nos refugiávamos, numa atitude cúmplice, alheia a tudo menos a nós mesmos, cada
um sedento do outro, buscando-nos e encontrando-nos naquele ambiente de mar de
coral em que flutuávamos esquecidos dos teus pais, do mundo, de tudo e de
todos.
Depois,
repentina e incompreensivelmente, como se tornaria teu hábito, davas tudo por
terminado, abruptamente, como se aquelas horas não tivessem existido. Eu num
torpor, a preguiça tomando conta de mim, exausto, cansado, sonolento,
sonhando-me dormindo juntinho a ti o sono reparador dos justos e tu já de alça
da mala ao ombro, tu já desviando o cabelo da testa e dos olhos antecipando a
partida, pegando nas chaves e:
-
Não aguento mais, vou apanhar ar, espairecer, passarei pela “Pingo Doce” de
Reguengos e trarei comida e fruta. Queres que te traga tabaco, café, uma
garrafa de Sharish ?
Na
Tv aplausos, aplausos por quê ?
Foram
momentos únicos e ignoro como irá culminar o saldo destes meses de receios
infundados e imaginados em que estivemos e estaremos refugiados no Monte da
Pêga fugindo ao pai dela, pelo que ainda que contrariado sorri, imaginando o
resultado, o fruto da tanta preocupação, tanto choque, tanta saturação. Dias,
semanas, meses, de altos e baixos, de medos e temores, de amor e de raiva
reflectidos em nós que, isolados há meses neste monte, fugindo aos pais dela, desde
o defeito mais insignificante à qualidade mais relevante atiráramos e havemos
de atirar à cara um do outro.
Tanta
verdade e crueza certamente deixariam mossa, a idolatria mútua fora-se,
consumida na voragem dos dias, na impaciência, nos nervos recalcados. Difícil
era descansar de todas estas apreensões sem temer o saldo final, o custo, sim
apreensões, que outro nome dar-lhes ? Preocupações, apreensões, vagos receios,
pressentimentos ? Durante meses o ressentimento acumulara-se na cabeça de cada
um de nós, daí o receio agora sentido. Passadas tantas décadas voltaram a
assaltar-me as mesmas borboletas no estômago, não, não foram paixões mal
acabadas, foram borboletas mesmo, apertos, o estômago contraindo-se em si,
enovelando-se. Voltavam de novo quais aves migratórias.
Por
isso a dor, a desorientação, olhos que falavam, que interrogavam, que apoiavam
mas já não prometiam pois conscientemente não o poderiam fazer, só Deus nos
poderia julgar e submeter ou libertar. Foi a essas janelas da alma que nos
debruçámos ignorantes do por quê do devir, da sina, do fado, ignorantes do fim
de tal caminho, ignorando as borboletas, os apertos no estômago. Eu esquecido
daquilo em que me viciara, dos seus carinhos que então não dispensava, antes
procurava e alimentava como coisa natural e simultaneamente fulcral ao nosso
sustento e depois os choques, as zangas, a fartura de tudo, a fartura um do
outro, a impaciência, o alheamento, o ressentimento, a culpa.
Por
esta é que eu não esperava, lembrando que a uma acção se opõe sempre qualquer
reacção. Contudo recordo que, quando os seus pais me assustavam ela ali estava,
inamovível mas acessível, indispensável e imperecível, nutrindo as minhas
esperanças, diluindo-me as dores, sossegando-me, falando-me, e depois eu
fugindo de ouvi-la, escondendo-me para não ter que lhe responder, embaraçado
umas vezes enraivecido outras, escondendo a dor ou a raiva como escondera as
precedentes, camuflando o meu lamento e incapaz de dar a volta à situação, eu
em conflito com a lógica a razão e a realidade, enganando a formalidade que a
minha exposição e incoerência mostravam. Tínhamos ido longe demais. A cada dia
íamos longe demais para voltar atrás.
Pressenti
aproximar-se o momento nunca pensado e sempre temido do fim da história a dois
que anos a fio nos tinha animado e fundido num só espírito, num só desejo, numa
só vontade. Pressentira-o quando a notava acordada rebobinando o passado
recente, senti-o porque voltou a não aceitar o meu abraço e porque quando se
cruzou comigo não me viu, não, não me viu ou fingira não ver, todavia fora uma
passagem rápida, um instante, e ao vê-la tão perto a minha mente automática e
repentinamente accionou velhas recordações e num segundo regressou o brilho
radioso dos dias passados sob a luz quente e calma do farol dos seus olhos,
contas de vidro mantendo ainda o mesmo brilho fulgurante de outrora, quando
almoçávamos numa qualquer esplanada de Monsaraz. Mas agora ela nada, ela alheada
de mim, eu outro homem, crestado pelas experiências vívidas das dores da vida, agora
maduro, seguro, extrovertido, perdida que fora a inocente ingenuidade dos
puros, e já cheio de certezas, firme de convicções, eu a calma em pessoa,
tornado ternura e meiguice, e já não em mim frustrações ou traumas, contudo
ainda desvalorizando o tempo que dantes me parecera infindo e hoje
seleccionando os momentos, as amizades, os olhos.
Eu
já de carácter e mãos firmes contudo, hoje como ontem, a mesma hesitação, a
mesma inexperiência, a mesma atrapalhação ante os mesmos colchetes que nunca
aprendera a manejar agora que tão necessária se mostraria essa experiência,
agora que tudo devia concorrer para te agradar e impressionar, jamais para te
irritar, agora que dava tudo para que o passado se fizesse presente é o
presente que atrapalho com a mesma falta de jeito de sempre.
Mas
não, parece que não me viras mesmo, talvez melhor assim, melhor não reparares
no meu hálito, e certamente não me atirares à cara com alguma garrafa de
Sharish, não a mim não, não a mim em cujo desnorte redescobri o prazer
encerrado numa botelha de Sharish. A coisa, isto, está a tornar-se insuportável
e tudo é lícito para lhe fazer frente, contudo jamais esqueci o teu amor
pródigo, esse amor fogoso e inconstante que me tornou homem, o homem completo
que agora me julgo, mau grado os colchetes… mau grado o Sharish.
Verdade
que nunca lhe prestara tanta atenção como agora, será do convívio forçado, é
uma reacção natural digo eu que para além dos livros, da Tv e da música nada
mais tenho com que me distrair, me entreter, com que engraçar ou embirrar. Tu
vives e falas monopolizando tudo, tudo e todos, podendo tentarás condicionar
nos outros discursos e vontades. Por vezes nem te ouço, és mestra a invocar o
encanto das sereias e, como por magia, manipular-me, manipular-nos. Estava
pensando nisto e o quanto isso me irrita quando ao preparar a mesa para o
pequeno-almoço dei por ti, cedo nessa manhã, estendendo a roupa no arame apesar
de, e estando tu farta de ser avisada de quão adoro olhar o largo e tutti
quanti se alcança dessa janela.
- Um
dia esventro-te e nunca mais me tapas as vistas.
Alto
lá, desta vez excedi-me. Este pensamento tem que ser dominado, verdade que a
mais pequena coisa me irrita mas um pensamento destes pode ter-se mas não
concretizar-se, tê-lo é já um exagero e um mau sinal. Acredito que
esventrando-a nunca mais se atreveria a tapar-me a paisagem, coisa em que ela
aparentemente teima por saber que amo Monsaraz mas sim, creio conscientemente
que este subconsciente me levou longe demais.
Quinquagésimo
dia de fuga aos pais dela, na sala o relógio da passadeira marca quase 9 horas
da manhã e diz-me que já palmilhei em meia hora, o equivalente a quase três mil
metros suados. A manhã está desagradável e coloca um ligeiro embaciamento nas
janelas em frente e à direita, através das quais diviso para me distrair do
esforço despendido, uma jovem mulher passeando um cão branco e preto muito
feio, ela linda e, passado algum tempo uma outra vizinha num monte em frente,
aflita, de colher na mão, fato de treino e gorro vermelho sangue que, agitada e
de colher na mão tão depressa corre pra a direita como para a esquerda ou
marcha em frente para logo virar para trás, até se sumir de novo pela entrada
do monte.
O
meu monte está um pouco elevado, tem uma vista esplêndida, estive para
perguntar à vizinha de vermelho se por acaso andaria passeando a colher ou
somente expelindo a pressão acumulada por estar encerrada em casa…
Ultimamente
passo a maior parte dos dias estirado, pés fora do sofá inalando indolentemente
um cigarro, eu que tinha abandonado o vício estou a voltar a ele com redobrado
vigor. Os dias ficaram frios e sumo-me por debaixo duma manta, ora destapando
os pés ora os ombros.
Ambos
sabemos e temos consciência de terem sido os últimos tempos, dias, semanas e
meses que nos puseram extraordinariamente à prova, foram eles sem a menor
dúvida os culpados das borboletas, das paixões incontroladas, até mesmo dos
apertos do estômago, das dores de barriga, do enrolamento das tripas, das
birras, tricas, quezílias, zangas, brigas, pazes, explosões de amor, beijos e
abraços.
Sabes
querida, também o mesmo medo aos teus pais que nos desuniu e assustou nos uniu,
no fundo falou mais alto o medo de fazer as malas e arrumar a vida sem que os
esperássemos e, como bem dizias não seria assim tão simples, não seria somente
fechar os olhos e abalar, o medo protegeu-nos, o medo foi apesar de tudo a
nossa defesa quando eles pareciam correr à nossa volta. Começo a perceber o
mecanismo do medo sabes ? Primeiro alheamo-nos de tudo como se fossemos
imortais, alheamo-nos de tudo, tudo se passa lá longe e nada é assumido por nós
que seja pensado e ponderado ao pormenor. Continuámos a nossa vidinha,
continuámos a nossa vidinha de faz de conta e de improviso e só começámos a
acautelar cenários quando a coisa começou a chiar mais fino e a sentir os teus
velhotes mais próximo ou seja quando finalmente aceitámos como possíveis as
ameaças que nos pudessem chamuscar.
Infantil
e inconscientemente deixámo-nos levar pelas circunstâncias sem ao menos
buscarmos soluções para os choques que nos opuseram, nem pedimos conselhos ou
recomendações a quem quer que fosse, mas quem estava próximo ? A idiota da Cassilda
? A esparvoeirada da Guilhermina ? Falo por mim, reconheço tudo ter feito de
bom e de mau, subtraí-me inicialmente à alçada da razão e somente agora as
asneiradas a que dei azo me retinem na consciência, qual alarme avisando-me
para uma ameaça pairando sobre a nossa relação, seria pior que nunca se tal acontecesse.
Nesse
momento, nós que julgáramos esta união na esfera da imortalidade afinal tivemos
que lhe acudir de emergência pois receámos, tememos, que despudoradamente
tivéssemos ido longe demais e a coisa pudesse não ter conserto.
Em
boa hora passei a vigiar atentamente os teus pais e as nossas vidas, apostado
em salvar esta relação que, por mais paradoxal que possa parecer-vos desta vez
exigiu que a aposta recaísse na separação, digo no afastamento deles. E nada de
irmos às compras juntos, apostei em mantermo-nos juntos o mínimo de tempo e
separados o máximo, há que evitar a saturação, a confrontação, os nervos, os
choques e os conflitos, passámos a privilegiar o debate e a admitir e a
incentivar o contraditório de modo metódico, a fim de evitar que chegássemos de
novo aos extremos a que chegáramos e antes que as coisas se tornem
irreversíveis.
Tive
medo, confesso que senti medo, confesso que as noticias sobre os teus pais eram
cada vez menos animadoras, para não dizer desencorajadoras, ou ameaçadoras. Não
me queixei, nada de lamúrias, nunca fizeram parte do meu feitio mas fizeram
então, sobretudo tendo em conta que televisões e jornais apontavam que a soldo
dos teus pais todos nos procuravam e todos nos mentiam, a proximidade deles
devia ser muito pior que qualquer outro dos medos que vivemos.
Logicamente
interroguei-me, quando teria a coisa fim ? Estaria sendo egoísta ? Pela
primeira vez na vida forcei-me a reconhecer a verdade e a verdade é que me
senti ameaçado. Senti-me abafado e efectivamente querida só a ideia de
perder-te me provocou uma insegurança e uma falta de humor inusuais em mim mas
que não consegui disfarçar nem esconder por mais que tivesse tentado. Na verdade
aquilo buliu comigo, alterou-me os ritmos biológicos e quem sabe o quê mais.
Nunca acreditei nessas balelas da sina, da aura, do karma e dos chacras mas
desde então tive motivos para pensar nisto tudo. É certo que acabei rindo-me da
coisa, mas rio-me agora pois na altura tudo senti, desde suores frios a
tremores, tudo menos vontade de rir. Esta merda do medo dos teus velhos ou do
caraças mexeu comigo, connosco, e quem disser o contrário estará a mentir…