segunda-feira, 8 de março de 2021

675 - O MEDO CONTROLAVA, E DOMINAVA ...

 

    

 

Era sábado, nuvens toldavam o dia, o futuro anunciado era de um inverno glaciar onde nem os milhafres se atreveriam a crocitar nem aos voos rasantes e às piruetas de outrora, e eu, triste, acordei ao toque da mão dela, vi ao longe a torre do castelo de Monsaraz e lamentei que o meu sonho não tivesse continuado...

Olhei displicentemente a Tv, ao fundo as galerias da AR vazias, fora isso toda aquela gente engravatada que nunca deixara de ver na televisão continuava botando discursos, assumindo compromissos e fazendo juras enquanto o país se afundava e eu, irritantemente revoltado, perdera os teus olhos cuja luz maravilhado olhava. Esses olhos sempre foram a minha perdição, toda tu te transmutavas quando eles, quais faróis, se acendiam excitados projectando uma luz calma, trazendo à penumbra do quarto uma serenidade inusual, uma matriz uterina em que nos refugiávamos, numa atitude cúmplice, alheia a tudo menos a nós mesmos, cada um sedento do outro, buscando-nos e encontrando-nos naquele ambiente de mar de coral em que flutuávamos esquecidos dos teus pais, do mundo, de tudo e de todos.

Depois, repentina e incompreensivelmente, como se tornaria teu hábito, davas tudo por terminado, abruptamente, como se aquelas horas não tivessem existido. Eu num torpor, a preguiça tomando conta de mim, exausto, cansado, sonolento, sonhando-me dormindo juntinho a ti o sono reparador dos justos e tu já de alça da mala ao ombro, tu já desviando o cabelo da testa e dos olhos antecipando a partida, pegando nas chaves e:

- Não aguento mais, vou apanhar ar, espairecer, passarei pela “Pingo Doce” de Reguengos e trarei comida e fruta. Queres que te traga tabaco, café, uma garrafa de Sharish ?

Na Tv aplausos, aplausos por quê ?

Foram momentos únicos e ignoro como irá culminar o saldo destes meses de receios infundados e imaginados em que estivemos e estaremos refugiados no Monte da Pêga fugindo ao pai dela, pelo que ainda que contrariado sorri, imaginando o resultado, o fruto da tanta preocupação, tanto choque, tanta saturação. Dias, semanas, meses, de altos e baixos, de medos e temores, de amor e de raiva reflectidos em nós que, isolados há meses neste monte, fugindo aos pais dela, desde o defeito mais insignificante à qualidade mais relevante atiráramos e havemos de atirar à cara um do outro.

Tanta verdade e crueza certamente deixariam mossa, a idolatria mútua fora-se, consumida na voragem dos dias, na impaciência, nos nervos recalcados. Difícil era descansar de todas estas apreensões sem temer o saldo final, o custo, sim apreensões, que outro nome dar-lhes ? Preocupações, apreensões, vagos receios, pressentimentos ? Durante meses o ressentimento acumulara-se na cabeça de cada um de nós, daí o receio agora sentido. Passadas tantas décadas voltaram a assaltar-me as mesmas borboletas no estômago, não, não foram paixões mal acabadas, foram borboletas mesmo, apertos, o estômago contraindo-se em si, enovelando-se. Voltavam de novo quais aves migratórias.

Por isso a dor, a desorientação, olhos que falavam, que interrogavam, que apoiavam mas já não prometiam pois conscientemente não o poderiam fazer, só Deus nos poderia julgar e submeter ou libertar. Foi a essas janelas da alma que nos debruçámos ignorantes do por quê do devir, da sina, do fado, ignorantes do fim de tal caminho, ignorando as borboletas, os apertos no estômago. Eu esquecido daquilo em que me viciara, dos seus carinhos que então não dispensava, antes procurava e alimentava como coisa natural e simultaneamente fulcral ao nosso sustento e depois os choques, as zangas, a fartura de tudo, a fartura um do outro, a impaciência, o alheamento, o ressentimento, a culpa.

Por esta é que eu não esperava, lembrando que a uma acção se opõe sempre qualquer reacção. Contudo recordo que, quando os seus pais me assustavam ela ali estava, inamovível mas acessível, indispensável e imperecível, nutrindo as minhas esperanças, diluindo-me as dores, sossegando-me, falando-me, e depois eu fugindo de ouvi-la, escondendo-me para não ter que lhe responder, embaraçado umas vezes enraivecido outras, escondendo a dor ou a raiva como escondera as precedentes, camuflando o meu lamento e incapaz de dar a volta à situação, eu em conflito com a lógica a razão e a realidade, enganando a formalidade que a minha exposição e incoerência mostravam. Tínhamos ido longe demais. A cada dia íamos longe demais para voltar atrás.

Pressenti aproximar-se o momento nunca pensado e sempre temido do fim da história a dois que anos a fio nos tinha animado e fundido num só espírito, num só desejo, numa só vontade. Pressentira-o quando a notava acordada rebobinando o passado recente, senti-o porque voltou a não aceitar o meu abraço e porque quando se cruzou comigo não me viu, não, não me viu ou fingira não ver, todavia fora uma passagem rápida, um instante, e ao vê-la tão perto a minha mente automática e repentinamente accionou velhas recordações e num segundo regressou o brilho radioso dos dias passados sob a luz quente e calma do farol dos seus olhos, contas de vidro mantendo ainda o mesmo brilho fulgurante de outrora, quando almoçávamos numa qualquer esplanada de Monsaraz. Mas agora ela nada, ela alheada de mim, eu outro homem, crestado pelas experiências vívidas das dores da vida, agora maduro, seguro, extrovertido, perdida que fora a inocente ingenuidade dos puros, e já cheio de certezas, firme de convicções, eu a calma em pessoa, tornado ternura e meiguice, e já não em mim frustrações ou traumas, contudo ainda desvalorizando o tempo que dantes me parecera infindo e hoje seleccionando os momentos, as amizades, os olhos.

Eu já de carácter e mãos firmes contudo, hoje como ontem, a mesma hesitação, a mesma inexperiência, a mesma atrapalhação ante os mesmos colchetes que nunca aprendera a manejar agora que tão necessária se mostraria essa experiência, agora que tudo devia concorrer para te agradar e impressionar, jamais para te irritar, agora que dava tudo para que o passado se fizesse presente é o presente que atrapalho com a mesma falta de jeito de sempre.

Mas não, parece que não me viras mesmo, talvez melhor assim, melhor não reparares no meu hálito, e certamente não me atirares à cara com alguma garrafa de Sharish, não a mim não, não a mim em cujo desnorte redescobri o prazer encerrado numa botelha de Sharish. A coisa, isto, está a tornar-se insuportável e tudo é lícito para lhe fazer frente, contudo jamais esqueci o teu amor pródigo, esse amor fogoso e inconstante que me tornou homem, o homem completo que agora me julgo, mau grado os colchetes… mau grado o Sharish.

Verdade que nunca lhe prestara tanta atenção como agora, será do convívio forçado, é uma reacção natural digo eu que para além dos livros, da Tv e da música nada mais tenho com que me distrair, me entreter, com que engraçar ou embirrar. Tu vives e falas monopolizando tudo, tudo e todos, podendo tentarás condicionar nos outros discursos e vontades. Por vezes nem te ouço, és mestra a invocar o encanto das sereias e, como por magia, manipular-me, manipular-nos. Estava pensando nisto e o quanto isso me irrita quando ao preparar a mesa para o pequeno-almoço dei por ti, cedo nessa manhã, estendendo a roupa no arame apesar de, e estando tu farta de ser avisada de quão adoro olhar o largo e tutti quanti se alcança dessa janela.

- Um dia esventro-te e nunca mais me tapas as vistas.

Alto lá, desta vez excedi-me. Este pensamento tem que ser dominado, verdade que a mais pequena coisa me irrita mas um pensamento destes pode ter-se mas não concretizar-se, tê-lo é já um exagero e um mau sinal. Acredito que esventrando-a nunca mais se atreveria a tapar-me a paisagem, coisa em que ela aparentemente teima por saber que amo Monsaraz mas sim, creio conscientemente que este subconsciente me levou longe demais.

Quinquagésimo dia de fuga aos pais dela, na sala o relógio da passadeira marca quase 9 horas da manhã e diz-me que já palmilhei em meia hora, o equivalente a quase três mil metros suados. A manhã está desagradável e coloca um ligeiro embaciamento nas janelas em frente e à direita, através das quais diviso para me distrair do esforço despendido, uma jovem mulher passeando um cão branco e preto muito feio, ela linda e, passado algum tempo uma outra vizinha num monte em frente, aflita, de colher na mão, fato de treino e gorro vermelho sangue que, agitada e de colher na mão tão depressa corre pra a direita como para a esquerda ou marcha em frente para logo virar para trás, até se sumir de novo pela entrada do monte.

O meu monte está um pouco elevado, tem uma vista esplêndida, estive para perguntar à vizinha de vermelho se por acaso andaria passeando a colher ou somente expelindo a pressão acumulada por estar encerrada em casa…

Ultimamente passo a maior parte dos dias estirado, pés fora do sofá inalando indolentemente um cigarro, eu que tinha abandonado o vício estou a voltar a ele com redobrado vigor. Os dias ficaram frios e sumo-me por debaixo duma manta, ora destapando os pés ora os ombros.

Ambos sabemos e temos consciência de terem sido os últimos tempos, dias, semanas e meses que nos puseram extraordinariamente à prova, foram eles sem a menor dúvida os culpados das borboletas, das paixões incontroladas, até mesmo dos apertos do estômago, das dores de barriga, do enrolamento das tripas, das birras, tricas, quezílias, zangas, brigas, pazes, explosões de amor, beijos e abraços.

Sabes querida, também o mesmo medo aos teus pais que nos desuniu e assustou nos uniu, no fundo falou mais alto o medo de fazer as malas e arrumar a vida sem que os esperássemos e, como bem dizias não seria assim tão simples, não seria somente fechar os olhos e abalar, o medo protegeu-nos, o medo foi apesar de tudo a nossa defesa quando eles pareciam correr à nossa volta. Começo a perceber o mecanismo do medo sabes ? Primeiro alheamo-nos de tudo como se fossemos imortais, alheamo-nos de tudo, tudo se passa lá longe e nada é assumido por nós que seja pensado e ponderado ao pormenor. Continuámos a nossa vidinha, continuámos a nossa vidinha de faz de conta e de improviso e só começámos a acautelar cenários quando a coisa começou a chiar mais fino e a sentir os teus velhotes mais próximo ou seja quando finalmente aceitámos como possíveis as ameaças que nos pudessem chamuscar.

Infantil e inconscientemente deixámo-nos levar pelas circunstâncias sem ao menos buscarmos soluções para os choques que nos opuseram, nem pedimos conselhos ou recomendações a quem quer que fosse, mas quem estava próximo ? A idiota da Cassilda ? A esparvoeirada da Guilhermina ? Falo por mim, reconheço tudo ter feito de bom e de mau, subtraí-me inicialmente à alçada da razão e somente agora as asneiradas a que dei azo me retinem na consciência, qual alarme avisando-me para uma ameaça pairando sobre a nossa relação, seria pior que nunca se tal acontecesse.

Nesse momento, nós que julgáramos esta união na esfera da imortalidade afinal tivemos que lhe acudir de emergência pois receámos, tememos, que despudoradamente tivéssemos ido longe demais e a coisa pudesse não ter conserto.

Em boa hora passei a vigiar atentamente os teus pais e as nossas vidas, apostado em salvar esta relação que, por mais paradoxal que possa parecer-vos desta vez exigiu que a aposta recaísse na separação, digo no afastamento deles. E nada de irmos às compras juntos, apostei em mantermo-nos juntos o mínimo de tempo e separados o máximo, há que evitar a saturação, a confrontação, os nervos, os choques e os conflitos, passámos a privilegiar o debate e a admitir e a incentivar o contraditório de modo metódico, a fim de evitar que chegássemos de novo aos extremos a que chegáramos e antes que as coisas se tornem irreversíveis.

Tive medo, confesso que senti medo, confesso que as noticias sobre os teus pais eram cada vez menos animadoras, para não dizer desencorajadoras, ou ameaçadoras. Não me queixei, nada de lamúrias, nunca fizeram parte do meu feitio mas fizeram então, sobretudo tendo em conta que televisões e jornais apontavam que a soldo dos teus pais todos nos procuravam e todos nos mentiam, a proximidade deles devia ser muito pior que qualquer outro dos medos que vivemos.

Logicamente interroguei-me, quando teria a coisa fim ? Estaria sendo egoísta ? Pela primeira vez na vida forcei-me a reconhecer a verdade e a verdade é que me senti ameaçado. Senti-me abafado e efectivamente querida só a ideia de perder-te me provocou uma insegurança e uma falta de humor inusuais em mim mas que não consegui disfarçar nem esconder por mais que tivesse tentado. Na verdade aquilo buliu comigo, alterou-me os ritmos biológicos e quem sabe o quê mais. Nunca acreditei nessas balelas da sina, da aura, do karma e dos chacras mas desde então tive motivos para pensar nisto tudo. É certo que acabei rindo-me da coisa, mas rio-me agora pois na altura tudo senti, desde suores frios a tremores, tudo menos vontade de rir. Esta merda do medo dos teus velhos ou do caraças mexeu comigo, connosco, e quem disser o contrário estará a mentir…