Nem
sei por que carga de água o lembrei. Não sonhei, lembrei-o amiúde todo santo
dia. Sonhar não que raramente ou nunca sonho, embora quando o faço, o faça quase sempre a cores.
Talvez
por ter reparado numa velha fotografia onde ele nem estava. Lá surge o Freire,
o Fadista, o Espanhol, o Coelho, o Mariano, o Manel, eu próprio, a Luisinha, a
Clara, a loirinha das tranças que andava com o Quintino, a Nani e até a Fany do
Barnabé, e a Dora, todos num preto e branco a desmaiar para sépia nessa foto
com cinquenta anos ou mais. Todos menos ele, o Salpico, que ali estava sempre e
ali parecia morar.
Não morava
ali mas morava perto, num monte estranho por ter no entretanto ficado no meio
de um bairro que parecia ter crescido à sua volta, monte que nunca fechava a
não ser no trinco e cuja ombreira depois do ultrapassada confirmava os seu
estoicismo e vida de espartano, coisas que nesse tempo nem conhecíamos pelo
nome mas lá estavam, atestando desde que resolvera viver sozinho o seu carácter,
e uma personalidade em formação, em ascensão. Recta, rectíssima.
Motard,
como todos nós, lembrei-me uma vez ante os apelos dos indianos em Mem Martins,
de lhe levar um candeeiro propagandeado como miraculoso, moda na ocasião e que,
depois de armado deu uma enorme Dália pompom amarela, por sinal a única nota dissonante
mas positiva, colorindo de alegria o casebre que o monte parecia.
Lembro
bem falávamos muito, falávamos demais e eu devia ser um bom ouvinte, coisa que
já não sou, falta-me paciência para tolos, mas tinha-a na época e em especial
para ele, que de soldaduras se erguera a administrativo, mercê de estudar, estudar
tornara-se para ele o alfa e ómega da vida, diariamente deslumbrado com as
peculiaridades de física, da química, da biologia, da matemática, da geometria,
da história, e que comigo se abria numa admiração tardia e natural pelo
trabalho dos Engenheiros para quem soldava, vãos de pontes e o que calhava.
Não
sei o que teria sido dele se tem continuado apaixonado pela vida, pelo saber,
pelo estudar, pelo mundo que se lhe abria e o deixava estupefacto.
Meses
sem vir a Évora e num torna-viagem encontrei-o casado com uma Mariana, para no
torna viagem seguinte a encontrar internada no hospital do Espírito Santo, onde
escassos dias depois viria a falecer, não sem antes lhe deixar um rebento, uma
nova razão para a sua vida atribulada. No torna viagem seguinte soube ter chegado
a vez dele, e nem tal prevíramos não tão pouco nos despedíramos.
A vez dele chegara. Chegara como chegara ao longo da meia dúzia dos últimos anos ou pouco mais a morte do Zé Pica, do Neves, do Piteira, adorador de bólides e se apresentara cá com um Alfa Romeo 2500 V6, uma bomba, adorava conduzir, era condutor de um autocarro escolar em Andorra. Mas este Piteira acho que se suicidou, não morreu, matou-se, por quê nunca vim a saber, morreu pronto, um amigo a menos. Morreu como morreu depois do seu amor, a Fany, o seu primeiro amor. Não há amor como primeiro, dizem. Ver desaparecer os amigos è das coisas mais difíceis para mim, assim foi também com o Palmeiro Palma, o Torrinhas Lopes, o Xico Inácio, a Sónia, o Alberto Ferreira, o Jimy (Figueira), o Cebolinha, o Fernando, e tantas e tantos, cada um uma mágoa no coração.
Com
a idade compreendi melhor o Salpico, o estoicismo e a sua ou qualquer outra razão
para ser espartano. Com o tempo descobri que também eu o era, e talvez tivessem
sido essas particularidades em nós que então nos aproximaram. Eu descobri-me aos
poucos, e aos poucos descobri ser a vida é como quaisquer anos lectivos não é ?
Primeiro período, segundo período, terceiro período, ano pedagógico, anos
complementares, 11º ano 12º e por aí acima ou adiante, não será ?
Ainda
vou no tirocínio desta vida, como soa dizer-se. Estamos sempre aprendendo né ? Nós todos, e não somente quantos se encontram naquela foto com cinquenta anos ou mais, num preto e branco a desmaiar para o sépia. Só não sei porque de forma recorrente e ultimamente me venho lembrando tanto
do Salpico, talvez por o saber completamente desiludido com tudo isto se fosse
vivo.
Deus o tenha em paz e na sua companhia.
R. I P.