segunda-feira, 2 de maio de 2022

767 - O AMIGO QUE SE FOI DEMASIADO CEDO ...




Nem sei por que carga de água o lembrei. Não sonhei, lembrei-o amiúde todo santo dia. Sonhar não que raramente ou nunca sonho, embora quando o faço, o faça quase sempre a cores.

 

Talvez por ter reparado numa velha fotografia onde ele nem estava. Lá surge o Freire, o Fadista, o Espanhol, o Coelho, o Mariano, o Manel, eu próprio, a Luisinha, a Clara, a loirinha das tranças que andava com o Quintino, a Nani e até a Fany do Barnabé, e a Dora, todos num preto e branco a desmaiar para sépia nessa foto com cinquenta anos ou mais. Todos menos ele, o Salpico, que ali estava sempre e ali parecia morar.

 

Não morava ali mas morava perto, num monte estranho por ter no entretanto ficado no meio de um bairro que parecia ter crescido à sua volta, monte que nunca fechava a não ser no trinco e cuja ombreira depois do ultrapassada confirmava os seu estoicismo e vida de espartano, coisas que nesse tempo nem conhecíamos pelo nome mas lá estavam, atestando desde que resolvera viver sozinho o seu carácter, e uma personalidade em formação, em ascensão. Recta, rectíssima.

 

Motard, como todos nós, lembrei-me uma vez ante os apelos dos indianos em Mem Martins, de lhe levar um candeeiro propagandeado como miraculoso, moda na ocasião e que, depois de armado deu uma enorme Dália pompom amarela, por sinal a única nota dissonante mas positiva, colorindo de alegria o casebre que o monte parecia.

 

Lembro bem falávamos muito, falávamos demais e eu devia ser um bom ouvinte, coisa que já não sou, falta-me paciência para tolos, mas tinha-a na época e em especial para ele, que de soldaduras se erguera a administrativo, mercê de estudar, estudar tornara-se para ele o alfa e ómega da vida, diariamente deslumbrado com as peculiaridades de física, da química, da biologia, da matemática, da geometria, da história, e que comigo se abria numa admiração tardia e natural pelo trabalho dos Engenheiros para quem soldava, vãos de pontes e o que calhava.

 

Não sei o que teria sido dele se tem continuado apaixonado pela vida, pelo saber, pelo estudar, pelo mundo que se lhe abria e o deixava estupefacto.

 

Meses sem vir a Évora e num torna-viagem encontrei-o casado com uma Mariana, para no torna viagem seguinte a encontrar internada no hospital do Espírito Santo, onde escassos dias depois viria a falecer, não sem antes lhe deixar um rebento, uma nova razão para a sua vida atribulada. No torna viagem seguinte soube ter chegado a vez dele, e nem tal prevíramos não tão pouco nos despedíramos.

 




A vez dele chegara. Chegara como chegara ao longo da meia dúzia dos últimos anos ou pouco mais a morte do Zé Pica, do Neves, do Piteira, adorador de bólides e se apresentara cá com um Alfa Romeo 2500 V6, uma bomba, adorava conduzir, era condutor de um autocarro escolar em Andorra. Mas este Piteira acho que se suicidou, não morreu, matou-se, por quê nunca vim a saber, morreu pronto, um amigo a menos. Morreu como morreu depois do seu amor, a Fany, o seu primeiro amor. Não há amor como primeiro, dizem. Ver desaparecer os amigos è das coisas mais difíceis para mim, assim foi também com o Palmeiro Palma, o Torrinhas Lopes, o Xico Inácio, a Sónia, o Alberto Ferreira, o Jimy (Figueira), o Cebolinha, o Fernando, e tantas e tantos, cada um uma mágoa no coração.  

 

Com a idade compreendi melhor o Salpico, o estoicismo e a sua ou qualquer outra razão para ser espartano. Com o tempo descobri que também eu o era, e talvez tivessem sido essas particularidades em nós que então nos aproximaram. Eu descobri-me aos poucos, e aos poucos descobri ser a vida é como quaisquer anos lectivos não é ? Primeiro período, segundo período, terceiro período, ano pedagógico, anos complementares, 11º ano 12º e por aí acima ou adiante, não será ?

 

Ainda vou no tirocínio desta vida, como soa dizer-se. Estamos sempre aprendendo né ? Nós todos, e não somente quantos se encontram naquela foto com cinquenta anos ou mais, num preto e branco a desmaiar para o sépia.  Só não sei porque de forma recorrente e ultimamente me venho lembrando tanto do Salpico, talvez por o saber completamente desiludido com tudo isto se fosse vivo.

 

 Deus o tenha em paz e na sua companhia.

 

 R. I P.