Quando
calha, vulgo inesperadamente, sempre, gosto de os ver, não que se esconderam, ou
que se furtem às vistas. Não, nada disso, somente procuram o abrigo de uma
sombra, a invisibilidade de uma esquina, a cumplicidade de uma multidão.
Ela, alheia aos compridos cabelos que a toldam de sereia, sorri, sorri sempre, nunca dei por ela que não sorrindo, de olhos brilhantes e vivos, a boca ingénua de quem ainda sonha, ou mais não tem ainda que sonhos, e sempre linda.
Ele
de ar limpo, cabelo aparado, barba por nascer, porte atlético, humano, sério,
brioso, confiante, quase um homem já, riso comedido, sorriso franco, alto, esbelto,
um Adónis em potência, a coisa promete.
Pelo
menos comigo prometeu, Prometeu abençoou-me, promessa que durou anos e anos,
décadas. Desde imberbe e quando eu na minha mota azul, cabelo comprido, barba despontando,
sério e brioso, confiante, quase homem, me entreguei num compromisso para a
vida confiante, ainda sonhando com muitos, muitos sonhos nesse momento alinhavados,
e cumpridos.
Ele acciona
o start da mota dourada (dourada como os sonhos ?), ela sorri cúmplice, e monta
ligeira e álacre rumo a uma qualquer “Lagoa Azul”. Eu fico, vendo-os partir, e
volto a sonhar com o teu rir o teu gargalhar feliz, com o brilho dos teus olhos,
e tu ágil como uma sereia e enquanto viva, um sonho lindo.
Gosto
de os ver sim, porque neles me revejo, e com eles rememoro, e me iludo de um
tempo que não volta mais e jaz na minha mente como se 1 de Novembro todos os
dias e eu, depositando flores numa lápide imaginária, imagino o passado remoto
como estando presente e tendo ainda futuro, pois muitas vezes o melhor que
conseguimos da vida são os enganos a que nos entregamos, que prolongamos e revivemos,
como se não houvesse hoje nem amanhã, apenas um passado que ao mínimo pretexto
nos convoca, trai e ludibria, sabendo ser precisamente isso que dele esperamos
e nada mais que isso.
Astuta,
ela apeia-se da mota, tira o capacete, sacode os cabelos com um gesto airoso,
estudado, tal qual tu, estudante ainda, dona de casa cedo e por obrigação,
leviana nos tempos livres como libertação da mulher democrática que já eras,
que sempre foras e continuaste sendo.
Foram
tempos engraçados, o bambúrrio da revolução, a libertação dos tabus, a afirmação
do ser, do sermos, o princípio do fim. Tempos lindos, com os quais passados
pouco mais de quarenta anos havíamos de rebentar, por laxismo. Ainda bem que
partiste e não viste, não vês, não presencias o suicídio destas democracias
pelas quais tanto lutámos, lutaste.
Ele, com um toque do pé coloca mota no
descanso, acredita ainda que haverá um tempo para ele, para eles, oportunidades
para eles, para todos, engana-se mas não sabe, como eu me enganei sem o saber e
só acordei passados tantos anos, e quando era ineludível que não avançávamos,
mas recuávamos, um passo por cada dois dados em frente.
Eu era
jovem e acreditei, como não acreditarão eles que vivem um sonho que eu próprio
já vivi ? Que calcorreiam os mesmos caminhos e as mesmas ruas que já percorri ?
Juntos contra o mundo acreditam ter forças para tudo enfrentar, deixai-os sonhar
como eu sonhei, não sabia nada, não sabem nada, será melhor assim…
Ainda
hoje não sei nada, e saberei cada vez menos, sei, lembro-me bem, que ela me
tirava o sono, me tirava o sono e me tirava do sério, a terra parecendo o céu,
os minutos horas, o presente algodão doce e o futuro cor-de-rosa, lilás, fúcsia,
polvilhado de estrelas e promessas, num imenso tapete alcatifado que se sumiu
repentinamente debaixo dos pés e ficámos sem chão, fiquei sem chão.
Piso
com cautela a estrada que percorro agora, vendo criteriosamente onde ponho os
pés por não ter onde me agarrar, me segurar, avanço tacteando, apalpando, tal
qual um cego, vivendo de lembranças e memórias inda vívidas em mim, contudo
cada dia mais difusas, apagando-se aos poucos, por isso gosto de vos ver, lembram-me
eu, lembram-me nós, são um espelho cujos reflexos recebo como um negativo que
na tina os cristais, óxidos, soluções alcalinas, metol, hidroquinona e haletos revelam,
libertando sonhos e recordações, fecho os olhos, respiro fundo e então visões,
Absorvo
essas emanações e tantas outras, de tiossulfato de sódio, de ácido acético
glacial, d’ácido cítrico, de tiossulfato de sódio e de sulfito de sódio, não
mais que eflúvios capazes de projectar na minha mente um diáfano holograma, monocromático
ou colorido do melhor que em mim fixei.
Embora
os jornais pintem os dias futuros de um escuro indizível, a esperança sobrepõe-se
á mais ténue crença e, dois passos em frente um passo atrás, avançamos tão
confiantes quanto o equilibrista no arame que os astros seguram e o destino
estica, dando tensão á vida e ao viver que com alegres cores pintamos na tela
do futuro, alheados da firmeza, ou
falta dela, em que o cavalete assenta os pés na terra.
“CARPE
DIEM”
A LAGOA AZUL https://www.youtube.com/watch?v=eq7M89rpSCA
MELODY https://www.youtube.com/watch?v=1B8a99J0bMU
VERÃO 42 https://www.youtube.com/watch?v=oYu6HtUxRJs