De imediato pensei que tivesse periquitos, ou canários, os rouxinóis e os pintassilgos não se dão em cativeiro, nem as passarinhas, digo as pardalocas, as fêmeas do pardal.
Juro
ter sido o que me acudiu à mente mal a vi entrar de luto, quero dizer de preto,
toda de preto, primeiro pensei cá para comigo quem teria sido que lhe teria
morrido, depois, não vos confesso mas ri-me para mim mesmo pensando que podia
ter sido um periquito, reparei na casaquinha preta, muito gira, muito à
maneira, na saia preta, saia ou vestido, de qualquer modo preto também, com uns
remates mui leves em dourado, se não era dourado pareceu-me tal, mas longe como
estava e zarolho como tou ficando, a idade não perdoa e os quarenta já pesam,
não será pois de admirar que faça algumas confusões, inda por cima com um
remate tão ténue como aquele, mas que o preto lhe assentava a matar assentava,
sobretudo a casaca, a casaquinha, ninguém poderia negar, e a saia, cá estou eu
vendo mal, o vestido, digo o vestido, bom tecido, bom corte, bem passado, boa
perna, bem torneada.
Reparei
também visto estarmos perto do verão nas sandálias, não me recordo da cor mas
eram abertas, o pé sem calosidades, conforme, isto é nos conformes, sem
joanetes, não lembro as unhas mas suponho-as tratadas, como tudo o resto, a
perna firme, há ali muita marcha, ou muita marcha ou muito ginásio, estou a
rir-me para mim mesmo com os meus delírios, mas ela também não desarma, não
larga o sorriso, até o café bebe sorrindo, todos os dias fico à espera de ver
um fiozinho de café escorrendo-lhe por um dos cantos da boca, por um ou pelos
dois, aposto que nem assim largará o sorriso, fica-lhe bem o sorriso, mas cá
para mim tem um não sei quê, pour moi a
un je ne sais quoi de matreiro, é que não é só o sorriso, são também os olhos,
como duas âncoras, ou antes como uma antena de radar, olhando tudo, tudo
mirando sem saber nunca onde ancorar, ou se calhar sabe e não quer, esta coisa
das tecnologias furtivas, stealthy, tem muito que se lhe diga.
Bebe
a bica e furtivamente passa os olhos por um jornal ou revista escolhida
aleatoriamente, pelo menos é o que me parece, lê sorrindo, decerto que não a
notícia da explosão de ontem em Cabul e que despachou uma data deles, quase
cem, já deixei arrefecer o café porra, fico de antenas no ar e depois é isto, e
eu que detesto café frio, não consigo lembrar a cor do batom dela, será
daqueles mui vermelhos que ficam marcados na chávena ?
Uma vez num daqueles filmes do inspector ou
detective Poirot desvendaram o crime pelo batom na chávena, já vi que não tenho
merda de jeito para inspector, o que interessaria ver não vi, nem lembro,
lembro o conjunto preto, saia e casaco, casaquinho, ou jaqueta, saia ou
vestido, deixei-a abalar antes de confirmar, fiquei preso nas pernas e na
bainha curta da saia, da saia ou do vestido, de qualquer modo permitindo que se
vissem umas coxas fortes, fortes mas não musculadas, o que é demais não presta,
vive a correr, tomou a bica em pé, muitas vezes a toma assim, mas nem sempre,
se calhar será só quando está com pressa, fá-lo em pé e lendo, em pé e
sorrindo, sempre à pressa, deve ter que ir apanhar a equipa, a malta das
enciclopédias ou da herbalife, quantas mais vendas fizerem pela manhã menos
calor apanham.
O
sol já vai ficando uma fornalha e ainda mal começou Junho, pagou e desandou à
pressa, vejo-a pela montra, vai buscar a carrinha, passa acelerada frente ao
café, gosto de a ver ao volante, quando era rapaz também eu sonhei ser motorista,
via-me em sonhos abraçado a um volante enorme e dominando o bicho, um camião de
dez rodados com atrelado, eu usava ténis e era sempre a acelerar, Espanha,
França, Alemanha, não recordo já onde fui parar mas uma vez na passagem para a
Itália embora não usasse sandálias, estava de pijama nesse dia e num cruzamento
ali mesmo na fronteira um tipo faz uma daquelas manobras de merda, perigosa,
escapou-me o ténis do pedal, apanhei um susto e mijei-me.
A
minha mãe afinou e com razão, eu já devia ter uns dezasseis ou dezassete
aninhos, mijar na cama com essa idade nunca em pequenino me fizeste uma dessas
que vergonha, parece que a estou ouvindo ainda, ela que tenha cuidado com as
sandálias, e com sapatilhas nem pense, quando mal esperar poderá escorregar-lhe
o pé do pedal e truz, mijar-se toda, seria uma pena não ?
Nem
imaginam enquanto o tempo passou, fiquei para aqui a olhar para os sapatos mas
tenho que lhe dar corda e ir ao pão antes que se esgote, senão depois quem ouve
a Luisinha sou eu, cabeça no ar, quanto mais velho mais parvo, e não seria eu a
tirar-lhe a razão da boca.
Texto já publicado em 2 de Junho de 2017 sob o
nº 437