quinta-feira, 28 de novembro de 2024

824 - A LADROAGEM E A SACANAGEM, SUAS DIFERENÇAS…

 


Amiúde, por um motivo ou por outro, somos confrontados com protestos, contestações e até condenações fantasiosas de ciganos, vulgo nómadas ou vice-versa.

 

Por sorte ou azar este grupo étnico, minoritário, é quase sempre o mais evocado e, tal como no velho adágio, todos os pássaros se atiram às searas mas só os pardais é que pagam… Isto para vos dizer que gatunos há muitos, ladrões há muitos, larápios há muitos, bandidos há muitos, mas só os ciganos é que pagam as favas.

 

Todo este arrazoado mais não é que intróito para uma redacção sobre a ladroagem e a sua participação quiçá positiva, valiosa mesmo para o ideal funcionamento da nossa sociedade.

 

Diária e ordinariamente vejo apodar o capitalismo com os mais sórdidos epítetos, naturalmente vindos dos lados de uma esquerdalhada de incompetentes e fracassados, ou frustrados, os quais acham que as pessoas de sucesso lhes devem alguma coisa, mas onde senão no seio do capitalismo se encontram as condições, as possibilidades e oportunidades de realização e de sucesso ? Não foi a China, possuidora de uma sabedoria milenar a última grande potência a adoptar o capitalismo e a avançar rumo ao sucesso, à riqueza e glória que só este sistema permite ? Ainda que, como sabemos, sic transit gloria mundi … *

 

O ladrão, o gatuno, o larápio, tem na nossa sociedade um importantíssimo papel que, contudo não tem sido valorizado e todos se recusam a reconhecer ainda que muitos dele beneficiem.

 

Esta “categoria profissional” é alavanca, o motor duma série de importantes fileiras da economia, fileiras que por sua vez geram ramificações sem fim e de não menor mérito ou relevância.

 

Vejamos, a nível público temos todo um conjunto de instituições civis e militarizadas dedicadas à segurança de pessoas e bens, a PSP, a GNR, a Judiciária, os Tribunais e outras derivações. A nível privado um não acabar de empresas de segurança que igualmente dão emprego a milhares de portugueses.

 

Como se isto não bastasse há ainda quem mate a cabeça a criar câmaras de vigilância e alarmes diversos, a vender, a instalar, a reparar a transportar, a manter em bom funcionamento etc etc etc

 

As próprias forças de segurança exigem uma série de veículos e outros equipamentos das armas às fardas, meios de comunicação, que, a exemplo da vigilância em vídeo e dos alarmes terão que dispor de um exército a cuidar que funcionem bem e a tempo e horas…

 

Para os mais tementes ou medrosos seguradoras experientes prometem compensações em caso de furto ou dano, movimentam como outros as fileiras da informática, mexem com a energia, com o hardware e o software, comunicações, advogados, detectives, laboratórios, custos e factores aliás transversais a todos os envolvidos e, quer queiramos quer não são largos milhares de empregos a tornar seguras as vidas de milhões de portugueses.


Será caso para dizer que, se se roubasse mais talvez o desemprego baixasse, a democracia fosse mais justa, as riquezas melhor repartidas, mais gentes satisfeitas, mais bem-estar, menor consumo de consultas e de remédios e naturalmente menos subsídios e um melhor equilíbrio das finanças da Segurança Social e da Autoridade Tributária. 

 

Claro que não estou a incluir aqui  a sacanagem, os políticos venais, esses não se limitam a roubar biciclatas, nem roubam para o bem-estar de todos nós, roubam para satisfazer ambições pessoais e estão-se nas tintas pra o povo que sugam. São vampiros, sanguessugas perigosas, ladrões não, até por políticos e certa gente de elite quando roubam roubarem milhões, triliões, já os ciganos e os larápios roubam umas roupas esquecidas no arame, uns rádios, uns catalisadores, umas jantes, uns carritos, tudo coisas que afinal têm o mérito de ajudar a fazer rodar, fazer funcionar um sistema gigantesco montado para os prevenir e às suas excentricidades …

 

Em boa verdade nunca vi em toda a vida quaisquer ladrãozecos enricar, já quanto aos políticos é o que a gente sabe… Só espero que me prometam que da próxima vez que falarem em ladrões se lembrem deste texto….

 Obrigado, se assim for não darei o meu tempo por perdido.



* “Toda a glória do mundo é transitória” possivelmente uma adaptação de uma frase na obra “Imitação de Cristo” do monge agostiniano Tomás de Kempis e datada de 1418, em que ele escreve: "O quam cito transit gloria mundi" frase que foi utilizada no ritual das cerimónias da coroação papal até 1963. Esta frase tem igualmente e por vezes sido traduzida ou interpretada como "as coisas mundanas são passageiras".

 

terça-feira, 26 de novembro de 2024

823 - A VIDA É UM PALCO ... by Maria Luísa Baião, inédito, escrito em 02-09-2002 e nunca publicado.


Passadas foram as férias, e com gosto regresso a velhas  amigas e amigos, até porque algumas e alguns, me fizeram já sentir estar a faltar às minhas obrigações.

 

 Entre eles um que há muito conheço e por quem tenho grande apreço, a quem os deuses por razões que ninguém sabe deram o castigo de Tântalo, vê a vida escapar-se-lhe entre grades que o não cercam, mas que vorazes lhe tolhem os passos do desejo, do sonho, da liberdade que a alma em chama clama, surda, muda e moribunda, cega ao passar das horas, dos dias, da vida.

 

Outro, que conheço menos bem e nem me lembra desde quando nem porquê, não mais felizardo que o primeiro, padece do tormento de Sísifo, tendo penado toda uma vida, carregando pesado fardo, numa gruta em que passou a vida desfiando uma roca a que os fios do destino nunca permitiram compor mais obra que a um artesão, ainda que suas mãos sejam capazes de milagres sem os quais a técnica que tantas vezes nos deslumbra, pararia.

  

Boas almas a quem a vida enganou sempre, engana ainda e enganará mais, mesmo que o não creiam, enredados em coisas tais como um dedal de linhas amarelas ou num engenho capaz de tornear as peças mais singelas.

 

Não sou diferente, quem me dera, também eu carrego a minha cruz. Quantas crónicas não compus eu já, que por pudor não coloquei nesta janela semanal, tão só para que não me julguem mal.

 

 Tântalo reparou na máscara que eu levava afivelada nesse dia, é verdade, não era realmente eu mas era eu só, a quem os deuses forçam a tantos papéis desempenhar que me vejo grega para os desembrulhar.

 

 Sou mulher, sou filha, esposa, mãe, terapeuta, voluntária, autarca, cronista e... É tão vasta a lista... Que de assistente social a psicóloga, não há maleita que me não bata à porta. 



Não são máscaras que empunho no dia-a-dia, são diferentes papéis a que o teatro da vida obriga, e vos garanto que entre o riso e o pranto, busco metodicamente que a comédia o drama e o trágico que em mim vivem não vos arrastem no momento ou no lamento que calada sofro.

  

A vida é um palco, procuro dar o meu melhor mas por vezes interrogo-me se valerá a pena, se conseguirei, mas nunca se me esforço. Sempre dei o melhor de mim, será que serei mais feliz assim ? serei mais feliz no fim ?

 

 A Personalidade é tão de cada um de nós como uma impressão digital, é fruto de contactos e experiências pessoais, é feita também de desilusões e ais, de frustrações, traumatismos e algumas doses de contentamento por vezes tão banais que, melhor seria dar outro rumo à vida, sair do palco, de cena, buscar noutras paragens suspiros e futuros que aqui de reais têm somente difusos estigmas virtuais.

  


 Nem só os amanhãs que cantam se ouvirão jamais, a dignidade, a solidariedade, a igualdade, a competência, o mérito, o esforço, a recompensa, onde param ? Quem os viu passar ? Onde ? Quando ? Não foi para ver assim este país e dez milhões de almas que chorei de alegria em 74 

  

Que pensaram nesse dia Tântalo e Sísifo ? Que pensam hoje, agora ? Valeu a pena ? Por que não se encerraram as portas do Teatro ? Por que se arrasta a peça ? Por que há cada vez mais quem peça ? Quem nesta peça corre tão depressa que ultrapassa os demais sem que repare no seu atraso ? Quem cava as distâncias ? 

 


 As páginas da nossa vida teimam não correr mas simplesmente passar… Não no palco mas nos bastidores, melífluos deuses nos cortam cerce legitimas ambições, quantas vezes manobrando com arte o silêncio, vendendo cara a esperança...

  

Cada vez mais a natureza humana me decepciona.


 Como marionetes nas mãos de redutores maniqueístas nos sentimos, alvo de crueldades, intolerâncias, complexos, provincianismos, à mercê dos quais nos sentimos pequeninos, sentimos não ser nada, não valer nada. Valerá a pena a vida assim? 

  


Acho que não, vão por mim...

 



 




segunda-feira, 25 de novembro de 2024

822 - CAMÕES, O ADAMASTOR, CANTO V *



Promessas, promessas era o que me vinha atirando acima há algum tempo sem que eu acreditasse minimamente no que quer que ela dissesse. Era uma questão de confiança e eu não conseguia crer numa única palavra por ela proferida.

 

Tudo me cheirava a esturro, a falso, a fingido, daí que me controlasse e não proferisse sob nenhum pretexto, rasteira, tentação ou descuido a promessa que ela por certo teimava arrancar-me.

 

E, enquanto ela vomitava promessa atrás de promessa sabendo eu que nunca se preocuparia em cumpri-las, sustinha-me, aguentava quanto possível cedendo parcimoniosamente a tanta tentação que me rodeava porém jamais no essencial. Desistir ou fraquejar não é a minha onda nem tão pouco a minha praia.

 

A questão não era despicienda, e já se colocara a Shakespeare em “Ser Ou Não Ser” ** pois é mesmo duma questão de caracter que se trata, de formação, de educação, de personalidade, de honra.

 

A minha solidão é a minha liberdade. É verdade que a nossa civilização parece ter desbaratado ou perdido, todos os seus valores, mas ainda não comecei a penhorar os meus, nem penso vir a fazê-lo, talvez por isso por vezes pasme com o que vejo.

 

Quando acabou soergueu-se, limpou os cantos da boca com os dedos, esboçou um sorriso e sussurrou-me:

 

- Tão bom !!!!!!!

 

Depois acertou o pijama que lhe caía dos ombros, ajeitou a toalha descambada no suporte, colocou a escova dos dentes no copo e ficou minutos como que hipnotizada olhando a bisnaga ainda apertada na mão, quiçá imaginando a promessa que dela espremera e inscrita a dourado sob a marca, velha de décadas…

 

A realidade é hoje fantasiosa, irreal, virtual, desvirtuada, por isso metade do meu tempo é ocupado a interpretá-la, a descodificá-la, a traduzi-la, a desmontá-la. E é isso que faço, se a monto também, a desmonto, observo-a e reconstruo-a, com base não no que vi mas no que pensei e penso quando vi, ouvi, vejo ou oiço.

 

As coisas não são portanto como são, são como eu as vejo, as ouço ou penso, são como eu sou e, nesse item a tosca subtileza por ela usada comigo não pegou, perdeu, já que a lia, a despia, desvendando-lhe as intenções e segredos, considerando-me cada vez mais intérprete da sua manha, teia, malicia, perfídia, naturalmente defendo-me, fazendo-me de mouquinho umas vezes e de parvinho outras. Ninguém sequer imagina quão poderemos ganhar fingindo-nos de parvos, ou de moucos…  

 

Mas até a parvoíce tem limites, ela fartou-se de me aturar e, num repente, passou das promessas a torto e a direito, minuto a minuto para, numa reviravolta surpreendente dar o dito e feito por não dito, nem feito, e mandar-me à fava, cortar todas as ligações esquecendo ser nas atitudes ou actos, mais que nas palavras que encontramos a virtude e a verdade verdadeira, real.

 

Rejubilei claro, sofrera mas nunca lhe prometera guarida, os meus trabalhos tinham chegado ao fim sem descrédito ou desprestígio p'ra mim e, fosse eu Camões e teria mesmo cantado;

 

          *  Da mágoa e da desonra ali passada,

              A buscar outro mundo, onde não visse

             Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

 

 *  "Da mágoa e da desonra ali passada, / A buscar outro mundo, onde não visse/ Quem de meu pranto e de meu mal se risse." (c. V, est.57,vv.6-8)

 

              **  Hamlet, príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, Acto III, Cena I