Meu
querido amigo Fernando, mais um Natal e mais uma vez te estou lembrando. Em
cinquenta anos poucas vezes nos vimos, mas jamais deixei de te recordar.
Não
deixa de ser uma época de aleluia este tempo que dedico especialmente aos não presentes,
um tempo de meditação e introspecção, um tempo para deixar a todos os amigos de
perto ou de longe votos de Boas Festas e de boa vontade entre os homens.
Desta
vez sei-te mais perto, voltaste para donde fugiste, voltaste do lugar para onde
eu fugiria agora se pudesse, se a idade e a saúde mo permitissem ou
aconselhassem.
E
agora que voltaste, que estás por cá, sinto fazer parte do que penso ser a tua
desilusão. Vieste dum mundo justo e certamente ficarás constrangido e
confrangido com o que, volvidos mais de cinquenta anos te deparaste.
Fugiste
do atraso para vires chocar passado meio século com um atraso mais aflitivo e
que nos angústia a todos, nos perturba, inda que não nos espante, somos homens
de boa vontade.
Quero
pedir-te desculpa, quero assumir perante ti a minha cota parte no estado a que
as coisas chegaram, tu abriste os olhos cedo e abalaste, eu acreditei na
democracia prometida e fiquei. Eu com o passar do tempo desiludi-me, tu
certamente terás sofrido uma desilusão no regresso, à chegada.
Culpa
minha que, como muitos outros, também votei e acreditei algumas vezes nos
políticos venais que temos. Também eu tenho culpa que a tua cidade, a nossa
cidade seja a mais pobre e atrasada deste atrasado país, mea culpa, mea culpa,
mea culpa… espero sinceramente que me compreendas e me perdoes.
Também
eu em 79 podia ter ficado na Suíça e não o fiz por acreditar nas promessas de
Abril, mais tarde viria a dar completamente razão a José Mário Branco no seu
celebérrimo Lp FMI *
Uma
porra pá, um autêntico desastre o 25 de Abril
Esta confusão pá, a malta estava sossegadinha.
Estás
desiludido com as promessas de Abril, né ?
Com
as conquistas de Abril !
Eram
só paleio a partir do momento que t'as começaram a tirar e tu ficaste
quietinho, n'é filho ? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na
areia, não é nada comigo, não é nada comigo, não é ? E os da frente que se
lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer
ver, é não querer entender nada, precisas de paz de consciência, não andas aqui
a brincar, n'é filho ? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para
cima de alguém e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril,
para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro,
para os do... que dia é hoje, hã ?
Extracto
da letra de "FMI" por José Mário Branco
Claro
que me lixei, este país nunca foi nem é para novos, nem para velhos, neste país
as oportunidades são para queimar, para perder, por isso se dantes estávamos
trinta anos atrasados em relação à Europa agora estaremos cinquenta, talvez
mais, há peculiaridades aqui que ninguém já estranha, por exemplo sermos o
único país do mundo onde os ladrões não assaltam bancos, aqui são os donos, os
banqueiros que os roubam, nós somente somos chamados para pagar os prejuízos, é
isto ter juízo ?
Talvez
até sejamos das poucas cidades e dos poucos países do mundo onde em cinquenta
anos não resolvemos um único dos problemas que nos afligiam mas cuidámos de
arranjar outros, de arranjar mais, muitos mais. Que desiderato é este que em
simultâneo nos cala e anima como se vivêssemos no melhor dos mundos ?
Nem
sei nem consigo imaginar quantas oportunidades terão sido perdidas nesta cidade
e neste país por incúria, cegueira, incompetência, ignorância, arrogância e
estupidez das autoridades instituídas e, por que não dizê-lo, dos cidadãos, dos
intelectuais, dos sábios, dos académicos, dos eleitores e tutti quanti preenche
a fauna da urbe e do rectângulo…
Quanta
gente pessoalmente irrealizada ? Frustrada nos seus sonhos ? Travada nas suas
aspirações ? Quantos caminhos barrados ? Quanta pesporrência ? Prepotência ? Partidarismo
? Seguidismo ? Sectarismo ? Nem Estaline alguma vez terá ido tão longe quanto
por aqui, por cá, e é esta a democracia que nos querem impor ?
Lamento
Fernando, lamento que te tenhas vindo meter na caverna de Ali Babá. Por aqui só
há ladrões, tratantes, patifes, agiotas, facínoras, gatunos, biltres, sicários,
salafrários, especuladores, usurários e, nem o facto de te teres recolhido e
isolado te safará desta cáfila que de há cinquenta anos para cá tomou conta da
nação. Quantas vezes não me interroguei já se terá valido a pena aquela
madrugada **
… que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
…
Lamento
que o padre Alegria não me tenha dado mais e com mais força, pois decerto te
teria seguido as pisadas no ir, não no voltar. Ele bem tentou descobrir
vocações para a música entre todos nós, hoje se alguém as tiver o mais certo é
que lhas abafem, se não essas, muitas outras.
Adeus caro amigo até que nos vejamos de novo, grande abraço e votos sinceros de Boas Festas.
** Sophia de Mello Breyner Andresen