Ainda
estremunhado olhei-me no espelho e disse logo para comigo que não, que assim
não poderia ser, teria que me escanhoar sem demora nem receio da lâmina, com
esmero mesmo já que, se havia situações em que as faces ásperas sugeriam
tentação sendo alvo de extremosa atenção, outras havia que exigiam precisamente o contrário,
um barbear cuidado e faces lisas, macias, que não despoletassem nela aquela
gargalhada estridente, um encolher-se repentinamente refugiando-se no riso
solto e descontrolado que lhe era tão próprio, tão familiar, o riso de quem quer mas, vamos lá
devagar, devagarinho sim ?
Com quem quer que fosse, onde quer que fosse e quando quer que fosse esta barba máscula nem sempre assim era acolhida, por isso todo o homem deve saber, tem mesmo que saber quando e como, com quem deve ou não, quando sim e quando não, tudo dependendo das circunstâncias.
Já José Ortega y Gasset * o dizia há cem anos ou
mais, “qualquer homem é sempre ele mesmo e as suas circunstâncias”, por isso
anda lá com a coisa ó chouriço e afia a Gillette antes que as coisas
descarrilem no melhor dos momentos e quando menos se espera, isto é precisamente
quando cai mal qualquer interrupção por mais pequena que seja pois aquele
momento é sagrado, não se deve interromper quem quer que esteja bebendo da
fonte da juventude nem afastar dele aquele cálice **
Não
o cálice de cicuta, antes a taça de um delicioso encantamento e o momento dessa
maravilhosa hora em que os astros, qual prodígio divino, se alinharam para que
se cumprisse a palavra que o Senhor Deus deixara escrita “amai-vos e
multiplicai-vos” para que os amantes, cegos e embriagados, quando não
esfomeados, se dessedentassem e matassem a fome de amor que impele o mundo.
Oh !
Como tantas vezes o difícil é acordar calado, quando na calada da noite eu te relembro
e, por vezes até dormindo lanço um grito estridente, agudo, sibilino e desumano,
modo de quem quer ser escutado já que o silêncio me atordoa e, mesmo assim atordoado
eu fico atento a qualquer momento, a qualquer chamamento.
Por
tudo isso eu quero, eu desejo ardentemente esse
cálice de sabor a pêssego e que tragarei como quem bebe uma dessas bebidas energéticas
que apagam todas as dores e tormentos, que engulo sôfrego como se a minha
labuta mo exigisse incondicionalmente e tal me adoce a boca, me encha o peito
de turbilhões no silêncio da cidade para a qual sou invisível, nem me escuta,
uma cidade para quem a realidade é uma outra realidade, moralista,
fundamentalista, quantas vezes preconceituosa, urbe adorando a mentira, a força
bruta, o desamor, o desapego, tudo quanto torna o mundo pequeno e onde
quaisquer factos consumados fora dos cânones são severamente criticados, proibidos, condenados,
castigados.
Por tudo isso prefiro inventar os meus
próprios pecados e, se tiver que morrer que seja vagueando no meu próprio caminho,
nesse caminho onde me perco perdendo o juízo e a cabeça por ti, onde contudo poderão encontrar-me
embriagado, extenuado, mas feliz ...
* https://www.youtube.com/shorts/hjttxaNxZj4
https://www.youtube.com/watch?v=fFvt1mfYKoA
** https://blogs.correiobraziliense.com.br/aricunha/o-homem-e-suas-circunstancias/