quarta-feira, 20 de agosto de 2025

ZÉ ANTÓNIO ANTÓNIO ANTUNES, ele mesmo ...

 

Tivesse sido ou fosse este país um país normal e a mesma adjectivação poderia ser usada em relação aos seus cidadãos, se não a todos pelo menos a uma grande maioria já que, como sabemos bem não há regra sem excepção

 A mesma apreciação podemos fazer em relação ao meu amigo Zé António António Antunes que, parecendo um cidadão anormal é do mais normalzinho que eu conheço.

 Educado, formatado, inda que por vezes tenha ganas de se libertar dessa educação que o peia ou de soltar-se do formato quadrado da caixa onde o teem enfiado à força desde pequenino. Claro que soltar-se ou libertar-se é um justo desidério dele, dele e de todos que a tal aspiremos ou tal queiramos.

 - Despautério o quê ???? Que pintou ele desta vez ???? 


perguntou o Gomes, arrastando a perna, que é mouco que nem uma porta e nunca é capaz de ajustar convenientemente o som ou a configuração de uma prótese auditiva ultra moderna ligada por wi-fi ao telemóvel e que ora apita por todos os lados, ora zumbe, cortando- lhe o som não o deixando perceber bem as palavras levando-o a confundir tudo e todos.

 - Qual despautério qual carapuça, ele não mata uma mosca quanto mais armar um despautério !

- Também estranhei

 volveu o Gomes,

- Queres dizer que não foi ele ? Então quem foi ? O meu amigo Desidério ? E que fez ele desta vez então ?

 - Não houve despautério nenhum nem o Desidério é para aqui chamado, troca a pilha a essa merda porra !!!

Mas ia eu dizendo, o Zé António António Antunes é um paz d’alma, ainda puto com três anos, não mais, desenhou tão bem um cisne, que uma estagiária, do Magistério Primário, levou o boneco para mostrar às colegas. Fosse hoje e o Zé António havia de lhe mostrar um boneco que ela não largaria por nada e abalaria calada e c’a ideia numa próxima vez. Ele é mesmo assim, bom tipo, muito bom tipo. Aliás toda a gente o conhece e conhece bem, tal como toda a gente sabe as porcarias de que é capaz quando se apanha sozinho encostado a um balcão. 


Filho único, menino da mamã, de todas essas benesses abdicou para se afirmar individualmente, sei que daria a camisa a quem dela precisasse, é culto, fluente em várias línguas quando bebe uns copos, e tem uma filha talvez da idade do meu, filha que não conheço mas deve ser santa já que ele nunca a tira do altar.

 A Vera, com quem se casara em segundas núpcias e de quem não tinha filhos (por enquanto), tinha sido hospedeira da TAP e era toda “não me toques” até casar com o Zé António António Antunes, que acabou órfão de pai precisamente seis meses depois de casar e no dia em que a mulher, a Vera, apareceu ao sogro com uma carrada de piercings e umas tatuagens, uma delas, uma borboleta dois dedos acima do rabo e que, diz quem sabe, foi a culpada do enfarte do velhote.

 


Eu e a Lila chegáramos nesse momento, D. Apolónia veio logo a terreiro sem que a chamassem, que a culpa era nossa, que nunca tivéramos juízo e ao filho só fizera mal ter-nos conhecido e acompanhar-nos e p’ráqui e p’ráli.

 Eu bem quis esclarecer o caos,  avancei e;

 – Já aí quieto meu maricas de galarito ! Tu és o pior de todos ! Nem mais um passo ! Quanto mais velhos menos juízo têm !

 Ainda tentei balbuciar qualquer coisa mas D. Apolónia, que sempre me tratara por tu, fazia-o agora com indisfarçável indiferença e menos respeito, coisa que não compreendi mas aceitei, era uma mulher rude, campónia, mãe do meu amigo, nunca pensei casar com ela, pelo que tanto se me dava como se me deu, naquele dia deu.

 - D. Apolónia mas…

 - Já te disse meu maricas ! Põe-te fora daqui e já ! Paneleiros ! São todos uns paneleirões, paneleiros e putéfias, meu rico filho com quem se meteu ! Por tua causa e de outros como tu, meu merdas, é que…

 Não adiantou, não conseguimos arrancar nada de nada a D. Apolónia, mas, a julgar pela coisa o que se passara era mais grave do que imagináramos. 



Segundo a Verónica confidenciou mais tarde à Filipa, a exaltação de D. Apolónia adviera da estreia, umas noites atrás, duma fantasia de enfermeira, coisa que sabia agradar ao marido e pai do Zé António António Antunes, velhote que se queixaria das máscaras, das capas e dos chicotes e algemas, de que andaria a ficar mesmo farto.

 Estou mesmo a ver que mais dia menos dia o Zé António António Antunes depois de umas cervejolas, vai chorar junto Vera, cagar calças e blusa de baba e ranho e aproveitar as fantasias abandonadas em que a mãe era mestra, quebrando violentamente a rotina e aproveitando para fazer o que não lhes faria mal, pois já são crescidinhos e a Vera é moça p’ra lhe fazer as vontades a qualquer hora e em qualquer sitio. Entendam lá de uma vez por todas que não há anormais nosso grupo, nem bipolares ou gente com dupla personalidade.

 Concedo que determinados comportamentos poderão ser considerados extravagantes, eventualmente criticáveis, impróprios até, mas não esqueçam que os meus amigos são um exemplo do mundo, exemplo de tendências e atitudes, doutrinas, credos e comportamentos, não um grupo de santos e santas, de castas virgens, abnegados celibatários ou promíscuos e infiéis. 


Há aqui de tudo como na farmácia, e acreditem-me, apesar de vos ter relatado um ou outro pormenor menos claro, são de resto gente digna, trabalhadora, respeitável, aliás como qualquer de vós, ou não fariam parte das minhas amizades.

 O Zé António António Antunes cursou com sucesso uma prestigiada universidade portuguesa, construiu uma carreira profissional invejável na área da odontologia, trabalhou até tarde muitas noites, fins-de-semana e feriados, alcançou o pícaro e êxito, gastou quanto ganhou, comprou casa, bons carros, é tarado por BMW’s, gozou boas férias, está casado com uma mulher que elegeu e por quem se apaixonou numa dessas viagem de avião em grupos de turistas. Porém a nossa adesão à CEE traíu-o, a empresa onde exercia funções deslocalizou-se como agora se diz, e aos quarenta e cinco anos está desempregado, ninguém o quer, é velho, começou a beber, ninguém consegue travá-lo. Compreendo-o, não o desculpo.

 Vera, a esposa, é Engenheira de Recursos Hídricos, todavia depois de suar as estopinhas para ser hospedeira da TAP e acabar o curso, o casamento com o Zé António António Antunes foi uma libertação. Esta menina bem comportada quase fora freira por iniciativa própria, quando adolescente, presentemente, por tédio ou por contestação, tatuou-se, aplicou piercings e quando encostada a um balcão cai frequentemente no exagero. Não prejudica ninguém, mas dizem as más-línguas que o sogro, o velhote, morrera de enfarte quando a viu aparecer com as tatuagens e os adereços bárbaros como amorosamente o marido se lhes refere. Acredito que se casou por amor, muita gente não. Problema dessa gente, não nosso, não meu nem deles dos pombinhos. 


D. Apolónia é uma daquelas mulheres com o cu debaixo dos braços, viúva, doméstica, proprietária, nunca fez nada na vida, tem a quarta classe antiga inacabada, não entende porque não se obrigam as criancinhas à catequese e tem dois ódios de estimação, a Vera, que lhe roubou o filho e matou o marido e a Direcção geral de Contribuições e Impostos, um bando de gatunos que só querem o que os outros conseguiram com muito suor. Nunca eu soube a quem terá pertencido o suor a que ela se refere, uma vez que trabalhar jamais, criadas usa e abusa a uma média de duas por ano, no mínimo, e o marido idem enquanto foi vivo. Analfabeto, sempre viveu da especulação imobiliária, influências, compadrios, negócios, e, dizem os maldizentes, financiando as campanhas de um determinado partido. Deixou a viúva inconsolável, cheia de propriedades, contas bancárias, cadernetas de aforro e acções do BES e do BCP. Como a mulher, nunca terá vertido uma gota de suor ainda que soubesse do que se tratava, tanto que era coisa que evitava com a maior precaução.

 Compreenderão agora os pruridos do Zé António António Antunes em ter querido vingar sozinho ou em viver da herança paterna, uma vez que nem a falta de emprego o força a engolir o orgulho. Ninguém é habitualmente visto na companhia dele, sabemo-lo todos, é que apesar de não tratar nenhum mal, talvez por ser um revoltado ou insubmisso acha que os amigos atraem o azar como a merda atrai as moscas. Nas horas vagas curte, uísque, o que o inspira dando-lhe p’ra desenhar cavalos, cavaleiros, andarilhos, veleiros e falcões para disfarçar e calar as más-línguas.

 Talvez não me venha a perdoar nunca estas linhas o Zé António António Antunes, mas posso bem com ele, o máximo que me poderá acontecer é levar com uma garrafa de uísque na cabeça e ficar um ano ou mais sem que me fale, é assim que ele procede, é muito opinioso e tanto adora acompanhar connosco como dar-nos no toutiço. 


É melhor ficar calado. (não contem a ninguém), mas certa noite, à beira mar em Puerto de Santa Maria, todos com uma piela de caixão à cova, o Zé António António Antunes e uma tal Pilar ou coisa parecida, enroscados por causa do frio, ela procurara-o por causa de um aparelho nos dentes cheio de efeitos multicores brilhando no escuro como pirilampos… Era bonito o aparelho, ou a prótese mas a verdade é que depois de um par de garrafas VAT69 mandadas abaixo o Zé António António Antunes andou a tratar-se mais de um mês, ficou todo escalavrado !... O Amor é Fodido mas ninguém desiste dele ! Um verdadeiro Adónis, cultor do corpo, do carácter e mais homem que muitos homens, o Zé António António Antunes não ligara muito à mirifica prótese mas dera a volta à cabeça da Pilar.

 Finalmente vou dar este meu testemunho por terminado, chega de conversa, até por ela não se calar um minuto e a ele ser raro ouvir-se-lhe algo. Um casal deveras curioso este, um bom par de jarras ! mas não é por isso que merecem uma atenção particular, eu sim, não posso ignorar um facto importante, saber até onde poderei ou deverei ir.



Afinal convenhamos, somos tudo gente normal, ou não ?

 Devo explicar-vos que (nos conhecemos desde que nos encontrámos, gaiatos, roubando pistolas do Zorro das montras dos feirantes durante o S. João ! Contudo há que reconhecê-lo, o Zé António António Antunes foi um dos primeiros ganzas existentes nesta cidade, (quando ainda nem na droga se falava já ele andava sempre “apanhado”), mas também foi um dos primeiros que, nas então recém inauguradas Piscinas Municipais, ousava ou aventurava-se a mergulhar da prancha olímpica dos dez metros para o poço respectivo, com a arte, harmonia, beleza, e sedução tão próprias aos mergulhadores das falésias de Acapulco ! 

 Vera fora seduzida em primeiro lugar pelo porte altivo do Zé António António Antunes, pelo garbo com que mergulhava, e, dizem as más-línguas que, numa fase posterior, pelo modo como ele lhe chupava os dedinhos dos pés e o resto. A verdade é que se enlearam e não havia dia em que não fossem vistos tomando a bica juntos, ou se embrulhassem, por vezes em plena piscina, onde não havia quem não reparasse tal o escarcéu que faziam, mas, continuemos, bica que o Zé António António Antunes já então remexia com um pau de canela, dizia ele que para disfarçar o hálito de odores do tabaco e da erva. Tal foi o tempo que a brincadeira de se enrolarem durou que ainda hoje basta ao Zé António António Antunes o cheiro da canela para ficar com pica, tal o poder da sugestão numa mente tão desbragada e voraz quanto a dele.

 Consta que um dia em casa dele ou dela teve lugar uma enorme discussão que durou pouco e redundou em amor pelas cadeiras, mesas, balcões de cozinha, carpetes, sofás, ainda recordo como se fosse hoje, o facto do Euletério se me ter queixado

 


- Ai sim ? O despautério foi com o Euletério ? Eu sabia que dali não podia vir coisa boa !

gritou o Gomes quando acordou, mas dizia eu ter-se  o outro queixado depois de ter ido lá a casa reparar um candelabro que nem sabe como teria sido arrancado do tecto, mais parecendo, palavras dele, alguém no mesmo se ter pendurado propositadamente !

 São contudo dois dos meus melhores amigos pelo que se vos cruzardes com eles na rua não hesiteis num caloroso cumprimento, são cidadãos de primeira apanha, apenas ela detesta o cheiro a erva que por vezes paira no ar, coisas de somenos se em conta tivermos o facto de santos naquele grupo só eu, mas já sabem, de mim não falo, não vale a pena e já me vão conhecendo de ginjeira.

 Afinal, somos mesmo todos gente normal ou não ?