Pendurado
da árvore despida, uma grande e velha oliveira, o morto parecia um gato-pingado oscilando ligeiramente sobre os arbustos do chão, o
corpo suspenso empurrado pela brisa da manhã, fácies de cor amarelada, colarinho da
camisa sujo, sujíssimo, a carne viva sob a pele do pescoço arrepanhada e que um
arame arrepiava ameaçando degolá-lo, pouco sangue, os atacadores desatados num
dos sapatos, a fralda da camisa solta, pendentes as calças devido à magreza que
nem um cinto no último furo segurava.
Ao
principio todos nós o julgámos mijado e nos interrogámos se se teria urinado de
medo ou de arrependimento no último minuto, não sei se foi o Abel ou o Rosado
que me deu uma cotovelada a fim de escutar os crescidos à nossa volta, afinal
parece que não era mijadela, seria o efeito molhado do estertor da morte, o reflexo
do prazer do último instante, ouvimos e entreolhámo-nos, prazer, prazer final, êxtase,
clímax, parece que era coisa comum aos enforcados, mas como aceitar aquele paradoxo
que se nos oferecia ? Morte e prazer ? Nem poucos anos mais tarde, vendo
expectante o “Império dos Sentidos” * consegui entender o prazer da morte.
Prazer macabro, masoquismo, egoísmo, sadismo, sinal do perdão de Deus ?
Àquela
hora não seria de estranhar cada vez mais gente em redor dum morto que ninguém
podia “despendurar” sem a chegada da polícia, dos bombeiros, do médico legista,
das autoridades habituais em casos tais e se já havia grupos debandando,
satisfeitos ou saturados do espectáculo, outros iam chegando, ávidos de
satisfazer uma curiosidade mórbida e ruidosa, nunca me apercebera de tanto
sururu em volta de um morto, tivesse ele adivinhado e provavelmente não se
teria matado ou teria procurado lugar mais recatado, embora este, convenhamos,
estava ali mesmo à mão, a três passinhos da saída da cidade, um percurso longo
poderia conduzir a mudança de opinião, o pior é quando um homem se põe a pensar,
ali não, foi decidir e pendurar, ninguém muda de opinião em três passinhos e no
sitio ideal, espaçoso, largo, grandes intervalos entre as árvores onde bolsar
todo o ódio à vida, aos vivos.
A
gaiatagem da escola vinha aos magotes ver o sacrifício, ou a redenção, nem
Cristo tivera decerto tanto espectador, sim também era Páscoa, ou ainda era Páscoa,
o Abel alegou ir comprar amêndoas e pirou-se, eu fiquei ali especado,
meditabundo, o Rosado puxou duma maçã verde e deitou-lhe o dente, era
sumarenta, ouvi-o falar com uma miúda da escola mas não percebi o que dissera
no meio de todo aquele chinfrim, só ouvi a resposta dela:
- Ó
Rosado, tás parvo ou quê, que conversa mais esquisita para uma ocasião destas.
Ouvi
mas não entendi, acabei por desandar, aliás desandámos todos enxotados pela polícia,
bombeiros e maqueiros, o formigueiro desmanchou-se, havia que dar paz ao morto
e desde aí até hoje passaram-se quarenta anos, mais, decerto mais, eu acabava
de almoçar e ao trincar uma maçã verdinha, sumarenta, digo para a Luisinha:
-
Uma vez olhava um morto, um desgraçado que se enforcara e a meu lado um tipo
comia uma maçã destas com toda a descontracção.
- O
Rosado ! Atalhou-me ela num repente.
-
Sim ! Como sabias ? Como sabes ?
-
Pediu-me namoro nesse dia enquanto víamos um enforcado.
- E
tu ?! Estavas lá ???!!!
-
Disse-lhe que tivesse juízo, que respeitasse o morto, que acabasse de comer a
maçã e que não se babasse. Claro que estava, estava eu e a cidade inteira, se
não estava parecia.
Não
me recordo tê-la visto, nem a conhecia, viria a conhecê-la somente passados uns
seis meses nas festas do Bairro Entre as Vinhas, hoje Senhora da Saúde, uma alegria.
* " Império dos Sentidos " https://www.youtube.com/watch?v=2N_au-bKCTU