POEIRA CÓSMICA
Somos pó,
Disse
eu para ela,
poeira cósmica que o Big-Bang espalhou,
disseminou p’lo universo,
disseminou-se…
Como as ventoinhas espalham a merda pelas paredes,
a poeira assentou,
“assentou-se”,
aglutinou, juntou,
anexou-se,
compactou-se,
terraformou-se,
transformou-se,
concentrou-se,
núcleo pesado, crosta leve,
flutuante,
as forças, as forças,
a pressão, a pressão,
o caos, a causa,
a casualidade, a causalidade,
as moléculas, os átomos, os núcleos,
o mistério, o milagre, a vida,
unicelular, bicelular, tricelular, quadri, quintup,
sextup, octo…
A conquista da terra, a evolução,
a origem das espécies, a selecção natural,
África naturalmente,
Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens,
a Eurásia primeiro,
a Europa depois,
o Magnon, o Cro-magnon, o Neandertal, o Sapiens Sapiens,
hominídeos…
A Magna Carta,
o recolhimento, as trevas,
os bretões, os normandos, os gauleses, germânicos,
vikings, romanos, celtas, iberos,
a vida secular,
a conquista do Paraíso,
o Gama, Colombo, Magalhães,
Garcia da Horta, Camões,
Lamarck, Darwin, Mendel,
o iluminismo, o racionalismo,
os genes,
um passinho, o ADN,
estão explicadinhos o lado lunar,
o lado estelar, os átomos, os isótopos os biótipos,
os periódicos, as enciclopédias,
os enciclopedistas, os cientistas,
virando-me do verso e reverso,
mirando-me e remirando-me,
análise, biópsia, exame, água, sal, lágrimas,
de brancos e pretos, de brancas e pretas,
não passamos de água e sais minerais,
orgânica e não orgânica,
origamis vivos, alforrecas,
velas portuguesas em mar celestial,
não passamos de mão cheia de átomos,
matéria poeirenta, restos de poeira,
duramos um lapso e depois…
Pum !!
a morte, pim pam pum !!
como ao Dantas, que cheirava mal da boca,
foi um ar que lhe deu, um ar que nos deu,
o vento nos levará vogando p’la brisa da tarde,
e nos depositará, qual poeira maldita,
numa qualquer charneca,
já agora em flor,
CHARNECA EM FLOR *
Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
E nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
* Florbela Espanca, in "Charneca em
Flor"
ou um campo viçoso de papoilas,
onde um ramalhete possamos abraçar,
O RAMALHETE RUBRO DAS PAPOULAS *
Naquele
pic-nic de burguesas,
Houve
uma coisa simplesmente bela,
E
que, sem ter história nem grandezas,
Em
todo o caso dava uma aguarela.
Foi
quando tu, descendo do burrico,
Foste
colher, sem imposturas tolas,
A
um granzoal azul de grão-de-bico,
um
ramalhete rubro de papoulas.
Pouco
depois, em cima duns penhascos,
Nós
acampámos, inda o Sol se via;
E
houve talhadas de melão, damascos,
E
pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas,
todo púrpuro a sair da renda
Dos
teus dois seios como duas rolas,
Era
o supremo encanto da merenda
O
ramalhete rubro das papoulas!
* by Cesário Verde
poeira assentando camada a camada e depois,
milhões de anos depois,
compactada, transformada,
entalada, emparedada,
pressionada, apertada,
aquecida, arrefecida, submetida,
submergida, permafrostada,
terra,
pedra, pedregulho, penedo,
montanha, deserto, mar, floresta,
e aí estou eu, poeira cósmica,
da
terra vens à terra voltas,
espalhado, disseminado, decomposto,
por campos floridos, montes, vales, rios, mares e oceanos,
estou em todas,
na relva dos prados, no rúmen das vacas,
nas bostas que largam e aquecem o passarinho da história,
o passarinho gelado lembram-se ?
o tal que sentindo-se quentinho cantou ?
nem
todos que nos cagam em cima nos querem mal,
depois veio um gato, tirou-o da bosta,
deu-lhe banho e papou-o,
nem
todos que nos tiram da merda nos querem bem.
se estás quente e
confortável,
mesmo que seja na merda,
mantem o bico fechado,
até porque
quem está na merda não
canta…
adiante, dizia eu que,
as bostas que largam e adubam os prados,
uma vez desfeitas são levadas p’los ventos,
os nossos ventos
arrastam toneladas,
do Saara para as Pampas Argentinas,
nem sei de mais onde para onde mais,
só sei que,
para ser franco nunca viajei tanto como agora,
que cavalgo os mares e as nuvens,
monto o Jet Stream ou me rebolo,
arrastado pelas correntes oceânicas
que circulam e percorrem o globo.
Foi um engano, é tudo um engano,
a cremação não é o fim,
a urna traz as cinzas,
traz-me a mim, e tudo e todos de volta ao início,
pó eras
e pó serás...
E aí estou eu de novo na berlinda,
pó lançado aos quatro ventos,
poeira cósmica,
cavalgando o Sirocco, o Mistral,
o Bora, o Suão, o de levante,
poeira celestial retomando o ciclo de vida habitual,
absorvido p’las plantas, peixes, aves, animais,
e comido por ti, absorvido,
transformado em sangue novo,
agora sou tu, faço
parte de ti,
eu que já fui galáxia, universo ...
Não é perverso ??
Nós dois de mãos dadas, nós e mais quem ??
Nós agora uma família, somos todos irmãos,
e uns cães uns para os outros, uns figurões,
uns zés ninguém,
somos poeira, somos asneira,
insignificantes, petulantes, soberbos, prepotentes, impantes,
intolerantes,
amorosos, fascinantes,
e
quando olhamos o cemitério
ou uma estação de tratamento de esgotos,
ou de lixo,
somos nós que nos olhamos, somos nós que nos olhamos,
nos vemos a nós mesmos,
e esta é a história verdadeira,
a nossa história verdadeira, a tua e a minha,
é esta a verdadeira história da tal poeira de que somos
feitos,
amém…