quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

4 - NÃO, NÃO ME VISTE...



Não me viste.

Cruzaste-te comigo e não me viste, passaste rápida, como sempre foste, rápida, impetuosa, dinâmica, sem tempo sequer para ti, sem tempo para os outros... 

Não te teria visto não tivesse sido o brilho radiante dos teus olhos, grandes, pestanudos, belos. Lembras-te ?

Lembras-te de quando brincava com a beleza deles, a que meigamente chamava as minhas contas de vidro? Não lembras. Se calhar mais ninguém, alguma vez te lembrou esses olhos como lindas contas de vidro, com as quais eu brincava enquanto tu nada, tu alheia, como se essa beleza te fosse um direito adquirido, tornado hábito, vulgaridade.

Recordo-te indiferente quando chamados á baila, eles brilhando, e tu nada, numa exuberância desinteressada que me exasperava, a mim, então um homem imaturo, inseguro, tímido, diria que ingénuo ainda, inocente mesmo.

Eu sempre hesitante, sempre temendo assanhar-te no receio de um dos teus repentes, no receio que, numa das tuas tão frequentes quanto habituais birras e explosões de orgulho, momentâneas mas consequentes, te fosses, airosa, atirando a asa da mala sobre o ombro, a mão afastando o cabelo da testa e dos olhos e estes lançando-me um olhar vago de indolência fingida mas alheia a tudo, a mim, a ti, ao desfecho, para meia hora depois estares telefonando;

- Não sei o que me passou pela cabeça, passei-me, devia estar doida de todo, perdoa-me querido, quando podemos ver-nos de novo ?

 E eu aparentando uma calma que não tinha, eu numa atitude meiga, terna, paternal quase, perdoando, perdoando-lhe mas na realidade com uma vontade vera de a esganar, frustrado, sabendo quão difícil era estarmos juntos, vermo-nos.

A leviandade dela quebrava-me a paciência, mas pelos olhos, aquele lago onde me perdia e afogava, perdoava-lhe tudo na esperança de jamais se acabar aquele jogo em que os olhos, quais contas de vidro fulgurantes, me tornavam irreal o tempo, aparente a rua, o mundo reduzido á contemplação deles, vogando naquele mar de cabelos aveludados em que eu era um marinheiro encantado pelo seu cântico de sereia.

Ela pujante, mulher feita, no auge da beleza e, diria eu, de uma leviandade e vaidade sem igual, que simultaneamente adorava e detestava, num conflito interior a que me mostrava incapaz de dar solução, eu, homem feito de uma imaturidade não assumida, primando por toda a inconstância que a incapacidade para lidar com o imprevisto me provocava, e ela isso mesmo, o imprevisto, e toda ela inconsequência e ligeireza, e eu nada, incapaz de tudo, sorrindo para fora e rangendo os dentes por dentro.

Pouco mais recordo hoje que o flash radiante dos seus olhos, ah ! 

E vagamente a Tv ligada, para que o quarto não escuro, para que uma meia-luz coada nos iluminasse e, nos Jerónimos, homens engravatados sucedendo-se assinando um qualquer tratado de uma vaga comunidade, ou clube de ricos, dizia ela, e eu atrapalhado com o colchete do sutiã, ainda hoje atrapalhado com esses colchetes, devia treinar, mas treinando as mãos não me tremem, e nesse momento sempre, porque sôfrego do gozo depois do colchete, louco por me dar e ávido da entrega pela qual anseio, envolto em sonhos e névoas exaladas daquele olhar, desesperado pelo instante que nos junta, nos une, nos irmana na fruição dos raros momentos partilhados...

E toda tu te transmutavas quando eles, quais faróis, se acendiam excitados projectando essa luz calma, trazendo à penumbra do quarto uma serenidade inusual, uma matriz uterina em que nos refugiávamos, numa atitude cúmplice, alheia a tudo menos a nós, cada um sedento do outro, buscando-nos e encontrando-nos naquele ambiente de mar de coral em que flutuávamos esquecidos de nós, do mundo, de tudo e de todos.

Depois, repentinamente, como era teu hábito, davas tudo por terminado, abruptamente, como se aquelas horas não tivessem sido, eu num torpor, a preguiça tomando conta de mim, exausto, cansado, sonolento, sonhando-me dormindo juntinho a ti o sono reparador dos justos, e tu já de alça da mala ao ombro, tu já desviando o cabelo da testa e dos olhos antecipando a partida, na Tv aplausos, aplausos porquê ?

Pela tua partida ?

Ah ! O Primeiro-Ministro assinando o Tratado com caneta de ouro !

Ao fundo os Jerónimos e toda aquela gente que jamais até hoje deixei de ver na televisão, botando discursos, assinando compromissos, enquanto o país se afundava e eu perdia os teus olhos cuja luz maravilhado olhava.

Não, não me viste, cruzaste-te comigo e não me viste, uma passagem rápida, um instante, e na minha mente repentinamente acendido o brilho radioso dos dias passados sob a luz quente e calma do farol dos teus olhos, essas contas de vidro ainda com o mesmo brilho fulgurante de outrora, e tu nada, tu alheia a mim, como dantes, eu um agora outro homem, crestado pelas experiências vívidas das dores da vida, agora seguro, agora extrovertido, agora perdida a inocente ingenuidade dos puros, agora cheio de certezas, firme de convicções, agora a calma em pessoa, tornado ternura e meiguice, e já não em mim frustrações ou traumas, antes valorando o tempo que dantes me parecia infindo, seleccionando momentos, amizades, olhos, eu já de carácter e mãos firmes, contudo, hoje como ontem, a mesma hesitação, a mesma inexperiência, a mesma atrapalhação, os mesmos colchetes que nunca aprendi a manejar.

Não me viste, talvez melhor assim, talvez já nem lembres, talvez nem uma recordação, não eu, não eu que jamais esqueci esse amor pródigo, fogoso e inconstante, que me tornou homem, o homem completo que agora me julgo, mau grado os colchetes…