Não me viste.
Cruzaste-te comigo e não me viste, passaste
rápida, como sempre foste, rápida, impetuosa, dinâmica, sem tempo sequer para
ti, sem tempo para os outros...
Não te teria visto não tivesse sido o brilho
radiante dos teus olhos, grandes, pestanudos, belos. Lembras-te ?
Lembras-te de quando brincava com a beleza
deles, a que meigamente chamava as minhas contas de vidro? Não lembras. Se
calhar mais ninguém, alguma vez te lembrou esses olhos como lindas contas de
vidro, com as quais eu brincava enquanto tu nada, tu alheia, como se essa
beleza te fosse um direito adquirido, tornado hábito, vulgaridade.
Recordo-te indiferente quando chamados á
baila, eles brilhando, e tu nada, numa exuberância desinteressada que me
exasperava, a mim, então um homem imaturo, inseguro, tímido, diria que ingénuo
ainda, inocente mesmo.
Eu sempre hesitante, sempre temendo
assanhar-te no receio de um dos teus repentes, no receio que, numa das tuas tão
frequentes quanto habituais birras e explosões de orgulho, momentâneas mas
consequentes, te fosses, airosa, atirando a asa da mala sobre o ombro, a mão
afastando o cabelo da testa e dos olhos e estes lançando-me um olhar vago de
indolência fingida mas alheia a tudo, a mim, a ti, ao desfecho, para meia hora
depois estares telefonando;
- Não sei o que me passou pela cabeça,
passei-me, devia estar doida de todo, perdoa-me querido, quando podemos ver-nos
de novo ?
E
eu aparentando uma calma que não tinha, eu numa atitude meiga, terna, paternal
quase, perdoando, perdoando-lhe mas na realidade com uma vontade vera de a
esganar, frustrado, sabendo quão difícil era estarmos juntos, vermo-nos.
A leviandade dela quebrava-me a paciência,
mas pelos olhos, aquele lago onde me perdia e afogava, perdoava-lhe tudo na
esperança de jamais se acabar aquele jogo em que os olhos, quais contas de
vidro fulgurantes, me tornavam irreal o tempo, aparente a rua, o mundo reduzido
á contemplação deles, vogando naquele mar de cabelos aveludados em que eu era
um marinheiro encantado pelo seu cântico de sereia.
Ela pujante, mulher feita, no auge da
beleza e, diria eu, de uma leviandade e vaidade sem igual, que simultaneamente
adorava e detestava, num conflito interior a que me mostrava incapaz de dar
solução, eu, homem feito de uma imaturidade não assumida, primando por toda a
inconstância que a incapacidade para lidar com o imprevisto me provocava, e ela
isso mesmo, o imprevisto, e toda ela inconsequência e ligeireza, e eu nada,
incapaz de tudo, sorrindo para fora e rangendo os dentes por dentro.
Pouco mais recordo hoje que o flash
radiante dos seus olhos, ah !
E vagamente a Tv ligada, para que o quarto não
escuro, para que uma meia-luz coada nos iluminasse e, nos Jerónimos, homens
engravatados sucedendo-se assinando um qualquer tratado de uma vaga comunidade,
ou clube de ricos, dizia ela, e eu atrapalhado com o colchete do sutiã, ainda
hoje atrapalhado com esses colchetes, devia treinar, mas treinando as mãos não
me tremem, e nesse momento sempre, porque sôfrego do gozo depois do colchete,
louco por me dar e ávido da entrega pela qual anseio, envolto em sonhos e
névoas exaladas daquele olhar, desesperado pelo instante que nos junta, nos
une, nos irmana na fruição dos raros momentos partilhados...
E toda tu te transmutavas quando eles,
quais faróis, se acendiam excitados projectando essa luz calma, trazendo à
penumbra do quarto uma serenidade inusual, uma matriz uterina em que nos
refugiávamos, numa atitude cúmplice, alheia a tudo menos a nós, cada um sedento
do outro, buscando-nos e encontrando-nos naquele ambiente de mar de coral em
que flutuávamos esquecidos de nós, do mundo, de tudo e de todos.
Depois, repentinamente, como era teu
hábito, davas tudo por terminado, abruptamente, como se aquelas horas não
tivessem sido, eu num torpor, a preguiça tomando conta de mim, exausto,
cansado, sonolento, sonhando-me dormindo juntinho a ti o sono reparador dos
justos, e tu já de alça da mala ao ombro, tu já desviando o cabelo da testa e
dos olhos antecipando a partida, na Tv aplausos, aplausos porquê ?
Pela tua partida ?
Ah ! O Primeiro-Ministro assinando o
Tratado com caneta de ouro !
Ao fundo os Jerónimos e toda aquela gente
que jamais até hoje deixei de ver na televisão, botando discursos, assinando
compromissos, enquanto o país se afundava e eu perdia os teus olhos cuja luz
maravilhado olhava.
Não, não me viste, cruzaste-te comigo e não
me viste, uma passagem rápida, um instante, e na minha mente repentinamente
acendido o brilho radioso dos dias passados sob a luz quente e calma do farol
dos teus olhos, essas contas de vidro ainda com o mesmo brilho fulgurante de
outrora, e tu nada, tu alheia a mim, como dantes, eu um agora outro homem,
crestado pelas experiências vívidas das dores da vida, agora seguro, agora
extrovertido, agora perdida a inocente ingenuidade dos puros, agora cheio de
certezas, firme de convicções, agora a calma em pessoa, tornado ternura e
meiguice, e já não em mim frustrações ou traumas, antes valorando o tempo que
dantes me parecia infindo, seleccionando momentos, amizades, olhos, eu já de
carácter e mãos firmes, contudo, hoje como ontem, a mesma hesitação, a mesma
inexperiência, a mesma atrapalhação, os mesmos colchetes que nunca aprendi a
manejar.
Não me viste, talvez melhor assim, talvez
já nem lembres, talvez nem uma recordação, não eu, não eu que jamais esqueci
esse amor pródigo, fogoso e inconstante, que me tornou homem, o homem completo
que agora me julgo, mau grado os colchetes…