Entrei, na vetusta sala não se fazia sentir o imenso
calor que grassava cá fora, e o Verão não chegara ainda, só as grossas paredes
da velha Universidade nos protegiam da canícula. No ar, mau grado o
considerável número de alunos, pairava sobre todos o aroma fresco de um perfume
de mulher.
Sorrateiramente esgueirei-me para um lugar vago na primeira
fila. Sempre procurei os primeiros lugares, ainda hoje assim sou. A
professora, uma jovem mulher, de imediato me prendeu a atenção, dela emanava o
suave odor que assinalei, era alta, esbelta, linda. Vestia de forma simples,
uma blusa branca, de linho, a que devido ao calor ou a um daqueles gestos ensaiados
e estudados de mulher, libertara os botões do decote. Calças justas de ganga e
sapatos rasos, vermelhos, completavam o quadro.
Dissertava fluentemente, numa voz agradável de timbre
levemente grave, num porte e com uma segurança que me cativaram. A páginas
tantas dobrou-se sobre a secretária, talvez para escrever o sumário, não posso
precisar já, e quando o fez deixou antever fugazmente dois seios pequenos,
redondos, alvos.
Não sei se pela altivez, se pelo seguro domínio das
matérias e do discurso, se pela atmosfera grave e séria que se
respirava naquela sala, naquela aula, não sei se foi o suave perfume que
pairava no ar ou um relâmpago de erotismo o que me arrebatou. Ainda hoje o
não sei passados que são trinta anos, o que sei é que me tomou de assalto uma paixão
profunda, instantânea e fulminante, tão avassaladora quanto impossível.
Obriguei-me a tantas perguntas quantas as respostas
que ficaram por achar.
O rio que passa sob os nossos pés não traz jamais a mesma água, e não volta nunca atrás, leva sim sentimentos dispersos, como sonhos submersos sob as águas calmas, arrastando desertos inteiros, raízes de ilusões.
O rio que passa sob os nossos pés não traz jamais a mesma água, e não volta nunca atrás, leva sim sentimentos dispersos, como sonhos submersos sob as águas calmas, arrastando desertos inteiros, raízes de ilusões.
Havia que sublimar essa pulsão que, para meu
espanto, ameaçava romper-me o peito e o pranto, pelo que nesse semestre e
nos seguintes, não faltaria a uma única das suas aulas e empenhar-me-ia
solenemente nas matérias.
Abracei por isso milénios de arte e história,
testemunhos, estilos, movimentos influências e tendências, mergulhei
apaixonadamente na escultura, na arquitectura, na pintura, na literatura,
percorri todo um calvário e venci.
Inquietação calada, onda acabada, assunto encerrado,
livro fechado, sonho que nasceu e sumiu, adiante.
Valeu a pena todo esse sacrifício, Deus foi
indulgente para comigo ajudando-me a cauterizar a ferida aberta. Curei-me,
cresci, aprendi a lição, mortifiquei no corpo essa sede no deserto, e ontem, e
hoje, e sempre que a vejo, lembro porque amo a arte e aprendi a dominar o
desejo.
Pela penitência apaguei o archote que ardia no meu
peito, trespassei emoções, transformei em vitória uma derrota ao deitar ao chão
a chama que incendiava o grito mudo que me sufocava.
" A todos o tempo cobra na vida alguns instantes,
breves, de desvario, inquietação, em que nos estoira na alma um grito, um olhar
delirante, um sobressalto, em que o sonho ou a vida se insinuam num vazio, em
que bate forte o coração e se abate sobre nós a grande sombra da noite e a alma
se solta conspirando paixões, desenhando e pintando no ar a aguarela os nossos mais profanos
desejos. A gente baloiça, vai morrendo o quebranto, tudo se esquece, tudo se cala, o que foi passado, passou-se, rezam-se umas ladainhas e salvé rainhas e a caminhada segue, onde nasceu acabou, e logo ali se enterrou, num torvelinho
de encomenda para uma alma que se remenda." (by Fausto Bordalo Dias)
Façamos do sonho um esquecimento, e ergamos à arte um
monumento…
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