Sim, aquele
dia começou radiante, como se nas margens de um rio a beleza das cores, a
frescura e fragrância dos dias felizes igualasse a cadencia deste coração
cansado e enorme, a memória de outras cadencias, de outros dias felizes, deste
mesmo ou doutros rios, as mesmas cores, não esfumadas mas intensas,
fulgurantes, quase repetição dum inexorável e incansável ritual de celebração
da vida, qual hino à existência, sublimação da vida que há em mim e me redime do
pior que haja no meu intimo.
Começou, como
sempre começa, como um sonho, em que estou na luz, diviso vagamente um vulto
fugidio a que sinto o perfume e a quem, na harmonia de um gesto delicado tento
segurar a serena e pressentida presença de que, primeiro apenas o sombreado,
mas depois o perfil de um desejo com forma de sonho, cores claras, o mundo
repentinamente todo luz, eu, sombra saindo da escuridão, o corpo tolhido,
antecipando delírios e paixões, o olhar nascendo de novo destes mesmos
sentidos, os mesmos rodopios e devaneios, o mesmo degelo da alma, o corpo
bamboleando-se-me, a volúpia das palavras primeiro, o aroma das flores depois
e,
quando nem em
mim cria, já não sonho, deliro, que repentinamente te abraço, repentinamente te
beijo, saboreio nos teus lábios champanhe, agora o delírio e a volúpia sim, mas
dos sentidos, lascivos, ébrios, sedentos de boémia, e é noite, mergulho na
sombra do astro, e já nem sei se arlequim se querubim, e o teu corpo que parece
mexer-se, e nem sei se estes cabelos são meus se teus, afago-me, afago-te a
pele morena, a silhueta, depois as tuas curvas e o pecado que tramo, e este
sonho em escalada contínua, estas sombras que me cobrem, promessas figuradas
que tingem meus olhos, e, perante mim, qual milagre, vagamente tomando forma
uma mulher que amo, que começa de imediato a tornar-se carência, imagem
debruada a luz mergulhando no esplendor da minha alma.
Parece que em
ti tropecei, mas não, não mais a melancolia, a solidão, agora sei não querer
habituar-me à tua ausência, tudo que sou também és, tudo que és também sou,
agora sei, o mundo somos tu e eu, e mais ninguém, palpitas em mim, nem consigo
dormir pois este sonho me leva a perder-me de mim, me persegue como silício
vivo e eu, incapaz de fugir a meu fado, de alma sobressaltada e fogo
alimentando os sentidos, com este lume em meu peito, imagino-te,
imagino
carícias ingénuas, o coração batendo como batia, e eu fremente de desejo, já
sem destino nem rota, fugindo ao presente, ansiando o futuro, os sentidos
girando, e a abóbada celeste num carrossel, girando, girando, e eu que morreria
se não te contasse este anseio, corações mais não são que cinzas e paixões, e
vejo claramente na penumbra dos dias com luz, flâmulas e pendões multicores, um
mar de rosas, e esta alegria imensa de todo o meu bem querer-te porque por
agora a ponte que nos une é esta ausência, e
invento
desejos, embriago-me com bacantes, acumulando coragem para conquistar o teu
corpo, cobrir-te de abraços, de beijos, saciar estes olhos, vaga-lumes
tilintando numa festa, nascida deste sonho, desta inquietude dando largas à
loucura que me grita ter o nada que acabar-se, e, meu sangue, latino, pulsando
nas veias dizendo-me não haver regras nem limites, só a verdade de mim, homem
sincero, e pergunto-me, quando posso gritar tudo isto ?
Onde posso
sorrir sem parecer louco ?
Onde gritar a
verdade e rir de tudo e de todos ?
Onde e quando
só nós ?
Pois agora
sei, o mundo somos tu e eu, e mais ninguém !