Sobrei da
história de meus pais como algo inesperado numa idade e época para eles pouco
propícia a surpresas. Como tal, mais que um sonho, representei nos augúrios da
família um estorvo desde o início.
Para trás
fora deixada por minha causa, uma fazenda no colonato da Cela a sudeste de
Luanda, em Angola, que meu pai já há muito e mentalmente havia dividido em parcelas
para algodão, tabaco, cacau, café e gado, generosa oferta do governo de então e
cujo objectivo, na retorcida lógica Salazarista, seria contrapor à guerra
colonial então despoletada, um povoamento das vastíssimas planícies sem dono e
em que a colónia era fértil e cobiçada desde tempos anteriores à querela do
mapa Cor-de-Rosa.
Nunca
distingui se o olhar de meu pai, perdido na minha contemplação, me admirava os
predicados ou se vogava nas intangíveis caçadas aos leões, perdidas por minha
causa nas matas de Gorongosa. Lembro vagamente conversas de carabinas e
zagalotes certeiros entre os olhos das ferozes feras, fulminadas pela destreza
do caçador exímio que era por cá com lebres e perdizes.
Depois disso
faltam-me dessas recordações, recupero-as nos acordos de Alvor, na
descolonização e independência dessa colónia, no 25 de Abril, dos retornados,
entre eles os dos colonatos abandonados. Infelizmente já não tenho pai, e
talvez agora, mais que nunca, se veja ainda embrenhado nas vastas savanas,
caçando ou atento às cotações agro-pecuárias, desesperado com prazos de
entrega, guias de embarque e exportação, esquecido de mim, como sempre.
Ele não
soube, talvez nunca tenha sabido, mas adorava-o. Outras razões não houvessem e
bastaria o facto de lhe ter frustrado na força da idade tão grandiloquentes
planos.
- Bebemos
mais um? Ou é tarde para ti ?
- Ficamos,
adoro estar aqui, nem a minha história é muito diferente da tua, quantas vezes
não me imagino filha de um mundo raro que nunca chora o passado. Quantas vezes
dou por mim, olhar fixo num horizonte indistinto, como tendo vivido num mundo
de mistério do qual guardo um segredo sabido, mas que provoca em mim uma
exaltação no peito que mais parece uma tormenta e faz com que o coração anseie,
como sabes, por dias felizes.
- Gosto de
estar contigo, mau grado a consciência da enorme distância que nos separa,
nestes momentos fecho os olhos e vejo-te como nunca, nem durante o dia te vi. Talvez
efeitos do gin, ou então como que o despertar de um sonho, acordada de uma
ilusão sob este céu inteiro pois numa fogosa cadência me lembras das cores das
auroras, e imagino roçar a minha face pela tua e estremecer.
- Onde vou eu
inventar estas palavras? Primaveras sei que invento ! - Será que enlouqueci ?
Que fazer ? Como posso ? – Não, não enlouqueceste, eu sei que não. Próximo de
ti é como se soubesse a história de amanhã e nunca antevisse o deserto. - Fala
baixo, será que eles nos vão ouvir ? - Obrigado por ficares, tornas esta noite
diferente das outras. Assim evito passar vezes sem conta à tua porta.
- Também eu,
quantas vezes imaginei meus dedos como pente acariciando o teu cabelo,
segurando-te a nuca e beijando-te.
Sei que não,
que nunca, juro a mim mesmo que sim mas não, e continuo pela rua pensando como
tudo seria bom, poder gritá-lo, poder gritar este amor como dourado ! Autêntico
emaranhado de emoções e sentimentos, um novelo de frustrações. Verdade que sim,
há muito és para mim motivo de agitação e cólera, vontade temor e receio.
– Acredito,
sei-te incapaz de numa floresta assustares os pássaros dormindo. - Vais morrer
de riso mas, quando estou contigo, como agora, é fogo que aspiro, sei como tu
respiras, e respiro baixo, parece-me viver do ar que tu exalas, é só o que
posso dizer e não me cansarei de o fazer.
Eu falo, tu
falas, lado a lado, mas sinto que não escuto e não ouço, será que um dia
partirás ? Deixarás de ser meu amigo ? Deixaremos de estar lado a lado ? Seria
a morte.
Senti-me um
intruso, mal pude sentei-me num lugar entretanto vago na ponta do balcão.
Enlearam as
mãos, encostaram as cabeças, eu paguei a minha conta e fui-me, cabisbaixo.
Quem
desejaria ali comigo não estava e, desde há muito tempo, senti-me só como
jamais imaginara.
Pintura de Coskun Cokbulan