Contra meu hábito, mal dormira nessa
noite. Pesadelos e
sombras pressagiavam já o que eu não entenderia nos dias, semanas, meses e anos
seguintes. Por isso
recordo ter acordado muito cedo nesse dia fantástico, não tanto devido às
insónias sonhadas mas antes devido ao alarde que desde madrugada se fizera sentir na
quintarola.
Como por
artes mágicas tudo naquela manhã se conjugara para que jamais a esquecesse, se
bem que na minha modesta idade não me fosse permitido entender os prodígios a
que assistia e impossíveis de, em minha mente, serem de imediato
transformados em augúrios felizes de dias vindouros. Nessa manhã de
sol a quinta parecia ter ficado entregue à bicharada e eu, sozinho, reinando
ignorado no meio dela. Galos haviam
abandonado o galinheiro escavando com unhas poderosas os locais mais
inconcebíveis da quinta, modelarmente arrumada e engalanada por canteiros de
diversas espécies, onde o sol avivara a clorofila e rebentos de variadissímas flores matizavam
de cores diversas o espaço a perder de vista. Poedeiras
pedreses viravam, sobranceiras, as costas ao cativeiro e depunham os ovos nos
lugares mais dispares e que vez nenhuma tinham pisado, mostrando, arrogantes, soberbas poses que a vida inteira lhes tinham sido interditas.
Que me lembre,
nem caseiro nem quaisquer outros dos homens apareceram nesse dia e,
aflitas, as vacas mugiam impacientes, amojos cheios que nem balões de festa
majestosa, sem viv'alma que lhes acudisse. Cães corriam
de lado para lado enlouquecidos pela festa e era absurdo não entender os seus
latidos como advertência e agoiro de milagres futuros que teriam, certamente, eles e eu, a
felicidade de vivermos. Tal era a
minha alegria e a de todos quantos na quinta não estavam que nem dei pelo sol
transpor o zénite e, absorto, aguardava, vendo passar filas e filas de gentes
entusiasmadas, empunhando cartazes e gritando palavras de ordem que hoje
entendo como traídas no tempo, pois desse dia apenas a minha tia Inácia, ainda
viva, conserva o mesmo sorriso, um sorriso de esperança que na hora afivelou,
dia em que pela primeira vez a vi bater com a mão no peito e lhe soube de um
filho que alguém levara para as longínquas terras do Gungunhana, onde jazeu, nome estranho
que me assustou e cujo pavor só ultrapassei meses mais tarde.
Também por esses dias
me foi dado a conhecer o primo Hilário, recém chegado dessas terras remotas e que pisou pela primeira vez esta metrópole que jamais conhecera ou vira, razão
pela qual nem considerou a importância de tão banal pisadela. Pelo fim de
tarde a festa era já um arraial colossal, embora eu não lhe entendesse a
causa, habituado que estava às comemorações do Natal, Carnaval, Páscoa e Senhor dos
Passos, em que multidões se arrastavam pela vila, apesar dessas vagas nem por
sombras terem, nem nos seus melhores dias, chegado aos calcanhares do mar de
gente que seguia agora eufórico, desfilando alvoroçado a meus olhos.
Então, como
hoje, todos falavam mas ninguém ouvia, cresci portanto no meio de gentes meio
surdas que prolongaram no tempo, embalando-me e iludindo-me, histórias de
felicidade inventada, prometida e futura, que ainda hoje estou à espera de ver
e viver e, desse dia mágico, ficou-me uma esperança teimosa e um optimismo
militante que, uma vida inteira vivida, finalmente lograram acomodar no sótão
das ilusões em que guardei os pesadelos premonitórios, os sonhos prodigiosos e
todas as recordações deslumbrantes dos presságios que nesse dia vivi.
É domingo, nuvens toldam o dia, e o futuro anunciado é de um inverno glaciar
onde nem as aves se atreverão aos voos rasantes e às piruetas de outrora, e eu,
triste, acordo e lamento que o meu sonho não tenha continuado...