Engatou
aquele sorriso irónico que se lhe adivinha nas fotos e senti-a disparar-me um;
–
Porque és parvo, e só o és porque queres, que tens ganho com isso, já tens
idade para ter juízo.
E
calou-se, deixando-me com o menino nos braços. A
mim, o pretenso e apurado equilibrado ajuizado, o parvo.
Falava-me
de uma forma despretensiosa, alheada de uma realidade que nem era dela, nem na
interrogativa nem na afirmativa, diria antes que o fazia de um modo sarcástico,
mas verdadeiro, custando-me engolir-lhe as palavras, palavras que de bom grado
faria engolir a qualquer um outro boca abaixo, com dentes e tudo à mistura.
Mas
não a ela, não aos amigos, esses têm carta de alforria para tudo que lhes
apetece dizer-nos.
E
se não a eles, a quem ?
Curiosa
a paciência com que tudo lhe aturo, lhe suporto. Curioso o modo como nos
conhecemos, nos descobrimos, e sobretudo como, nesta selva estéril, fizemos da
nossa amizade um exemplo de respeito, tolerância, confidência e confiança. A
amizade é um prodígio, se alimentada grassa com a força das ervas daninhas
mesmo no terreno mais árido.
Surpreendeu-me
a possibilidade tornada veredicto. Bastou
querer, tão simples como isto ! Ainda
hoje me surpreendo, e alimento essa amizade, falo-lhe mesmo, como soa dever
fazer-se com os animais e as plantas. Ao
principio de um modo exuberante e em simultâneo duvidoso, ou desconfiado, agora
com uma placidez que insufla paz às almas, numa reverencia castradora dos mais
ignóbeis motivos, como que numa solicitude de leproso perante a promessa ou o
anunciado milagre de uma cura.
E descobri-me a mim nela, e em mim ela se descobriu, como se duas nebulosas no
firmamento, jamais concebendo que fenómeno idêntico pairando na galáxia, se
tivessem tocado de raspão e, qual beleza do universo, rodopiando como um par de
braço dado, nos estivéssemos transformando numa unidade só, um só pensamento,
uma só identidade, e, quem sabe se daqui a uns séculos seremos lembrados como
Andrómeda, Magalhães ou outro qualquer nome assim simpático, e não já a
nebulosa em que inicialmente nos envolvemos, tornámos e fomos, sempre
alimentando esta amizade com a mesma arte e destreza com que no espaço em que
vogamos evitamos os buracos negros e a sua incrível força de atracção, que tudo
suga na sua proximidade, tal qual como nesta terra, indiferença e vitupérios
ostracizam ou arrastam na lama os mais crédulos e fracos.
Amo
a louca à minha maneira, num amor nem carnal nem espiritual, antes um amor
figadal (fui ver ao dicionário, profundo, intenso, íntimo), mais emanescente de
uma identificação mútua e daquilo a que chamamos a nossa cara-metade da
amizade, que dos pecadilhos confessados ou das intenções que a isso nem chegam.
Só
por isso, na sua inocente ingenuidade de menina má, a escuto com a atenção que
qualquer louco me merece, ou não soubesse eu como se disfarça e onde se esconde
a loucura, apenas que não em mim, e não nela, mas até nas personalidades mais
bizarras e nos caracteres mais sombrios, como aqueles que apenas podemos
imaginar, vislumbrar, suspeitar ou com alguma sorte descortinar nos
“curriculuns” mais extensos, exuberantes, pormenorizados ou pesados, que esta
coisa de uma pretensa existência e posição tem os seus quês e porquês, e nem o
peso é critério despiciendo, por isso aqui deixo o meu testemunho do quanto
prezo a minha amiga louca e a sua loucura, ciente de que nem ela nem eu estamos
loucos, antes amigos, ligados por uma amizade que só a loucura do mundo aproximou
e alimentou, pelo que grato estou, e nem imaginam quanto, a tanta e tanta
individualidade séria, sóbria e culta que me rodeia ainda que nem dê por isso,
e, duvide até, que alguma dessa gente esteja ou seja viva, mais crente estando
que vivam sem se dar conta de tal ou, no pior dos casos, tenham morrido sem dar
por isso.
Beijinho amiga.