quarta-feira, 22 de junho de 2011

60 - MINHA AMIGA TERRÍVEL E LOUCA ...............



              Engatou aquele sorriso irónico que se lhe adivinha nas fotos e senti-a disparar-me um;

– Porque és parvo, e só o és porque queres, que tens ganho com isso, já tens idade para ter juízo.

E calou-se, deixando-me com o menino nos braços. A mim, o pretenso e apurado equilibrado ajuizado, o parvo.

Falava-me de uma forma despretensiosa, alheada de uma realidade que nem era dela, nem na interrogativa nem na afirmativa, diria antes que o fazia de um modo sarcástico, mas verdadeiro, custando-me engolir-lhe as palavras, palavras que de bom grado faria engolir a qualquer um outro boca abaixo, com dentes e tudo à mistura.

Mas não a ela, não aos amigos, esses têm carta de alforria para tudo que lhes apetece dizer-nos.

E se não a eles, a quem ?

Curiosa a paciência com que tudo lhe aturo, lhe suporto. Curioso o modo como nos conhecemos, nos descobrimos, e sobretudo como, nesta selva estéril, fizemos da nossa amizade um exemplo de respeito, tolerância, confidência e confiança. A amizade é um prodígio, se alimentada grassa com a força das ervas daninhas mesmo no terreno mais árido. 

Surpreendeu-me a possibilidade tornada veredicto. Bastou querer, tão simples como isto ! Ainda hoje me surpreendo, e alimento essa amizade, falo-lhe mesmo, como soa dever fazer-se com os animais e as plantas. Ao principio de um modo exuberante e em simultâneo duvidoso, ou desconfiado, agora com uma placidez que insufla paz às almas, numa reverencia castradora dos mais ignóbeis motivos, como que numa solicitude de leproso perante a promessa ou o anunciado milagre de uma cura. 

E descobri-me a mim nela, e em mim ela se descobriu, como se duas nebulosas no firmamento, jamais concebendo que fenómeno idêntico pairando na galáxia, se tivessem tocado de raspão e, qual beleza do universo, rodopiando como um par de braço dado, nos estivéssemos transformando numa unidade só, um só pensamento, uma só identidade, e, quem sabe se daqui a uns séculos seremos lembrados como Andrómeda, Magalhães ou outro qualquer nome assim simpático, e não já a nebulosa em que inicialmente nos envolvemos, tornámos e fomos, sempre alimentando esta amizade com a mesma arte e destreza com que no espaço em que vogamos evitamos os buracos negros e a sua incrível força de atracção, que tudo suga na sua proximidade, tal qual como nesta terra, indiferença e vitupérios ostracizam ou arrastam na lama os mais crédulos e fracos.

Amo a louca à minha maneira, num amor nem carnal nem espiritual, antes um amor figadal (fui ver ao dicionário, profundo, intenso, íntimo), mais emanescente de uma identificação mútua e daquilo a que chamamos a nossa cara-metade da amizade, que dos pecadilhos confessados ou das intenções que a isso nem chegam.

Só por isso, na sua inocente ingenuidade de menina má, a escuto com a atenção que qualquer louco me merece, ou não soubesse eu como se disfarça e onde se esconde a loucura, apenas que não em mim, e não nela, mas até nas personalidades mais bizarras e nos caracteres mais sombrios, como aqueles que apenas podemos imaginar, vislumbrar, suspeitar ou com alguma sorte descortinar nos “curriculuns” mais extensos, exuberantes, pormenorizados ou pesados, que esta coisa de uma pretensa existência e posição tem os seus quês e porquês, e nem o peso é critério despiciendo, por isso aqui deixo o meu testemunho do quanto prezo a minha amiga louca e a sua loucura, ciente de que nem ela nem eu estamos loucos, antes amigos, ligados por uma amizade que só a loucura do mundo aproximou e alimentou, pelo que grato estou, e nem imaginam quanto, a tanta e tanta individualidade séria, sóbria e culta que me rodeia ainda que nem dê por isso, e, duvide até, que alguma dessa gente esteja ou seja viva, mais crente estando que vivam sem se dar conta de tal ou, no pior dos casos, tenham morrido sem dar por isso. 

Beijinho amiga.