sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

97 - O COMPLEXO DE CULPA DE HAMED..............



 
Hamed deve ter pouco mais de quarenta anos. 
È alto, magro, de tez bronze como o são aliás todos os seus compatriotas e escrupulosamente cumpridor do seu dever. Tem dois filhos ou antes um lindo casal de adolescentes com que o seu Deus o brindou e única riqueza que se lhe conhece.
Diligente e pontual, era, há mais de vinte anos, funcionário e vigilante da Central de Telecomunicações, a cuja segurança zelosamente se entregava como de coisa sua se tratasse.
O turno dessa noitada nem se alongaria muito, terminaria pela meia-noite, e, enquanto percorria o labirinto da sua ronda, picando de quando em vez o relógio de ponto, pensava carinhosamente em sua esposa, Cherazade, fiel servidora, e nos dois tesouros de olhos verdes, razões exclusivas das suas preocupações e motivo das poucas alegrias a que a sua vida simples se podia entregar.
Kalim, o primogénito, preparava-se para terminar a Academia Militar, pelo que, pensava Hamed, se um ladrão de galinhas chegara onde chegara, por certo altos voos estariam reservados ao seu filho, que nunca perdera um ano e tinha sido, sempre, ao longo da sua vida de estudante, o primeiro entre os primeiros. Além de pai baboso, tinha realmente razões para estar orgulhoso daquele a quem competia perpetuar o nome da família.
Halina, a mais nova, terminaria agora os estudos secundários. 
Uma virtude em ciências, metera na cabeça seguir uma carreira em biologia, para desespero de seu pai, que dessas coisas somente compreendia uma ligação muito estreita com as artes da guerra, por troca de conversas em surdina com os poucos parentes e amigos mais chegados. Para agravar a situação, um dilema se lhe atravessava no espirito servindo-lhe de cilício aos dias.
O orçamento e a família, dificilmente acolheriam mais um sacrifício entre tantos que suportavam já, mesmo sem para isso terem de pagar, por outro lado, preconceitos milenares sussurravam-lhe que não era coisa a que uma mulher ousasse aspirar. 
Halina contrapunha que tal não obrigaria a contenções, dado tratar-se de uma área prioritária no desenvolvimento nacional e por inerência protegida com bolsas de estudo, o que lhe permitiria mesmo estudar no estrangeiro, sem quaisquer encargos, por mínimos que fossem. Quanto ao resto nem queria ouvir falar, estava provado que às mulheres estava reservado um papel importante na revolução e no país.
Aquela noite era especial, a última antes de umas curtas férias, coisa que Hamed há muito não gozava e que coincidiriam com idêntico interregno escolar dos filhos.
Antevia e antegozava já as delicias da vida familiar, como as recordava ao tempo em que os petizes não saíam ainda de casa.
Hamed picara o cartão no penúltimo relógio da Central, dirigiu-se aos anexos da segurança, que distariam cerca de trinta metros do edifício principal, e, talvez porque a dieta pobre a que era obrigado havia muito lhe tivesse dado a volta aos intestinos, encerrou-se na casinha enquanto, sentado na sanita e meditabundo, a mente ruminava as suas preocupações mais recentes.
Não se serviu do papel, que não havia, isso era luxo a que após tantos anos de bloqueio e racionamentos esquecera mesmo a muita gente, todavia lá se amanhou como pôde e, calças ainda na mão, puxou com força a corrente pendente do depósito do autoclismo. 
Foi o fim ! 
Nesse mesmo instante todo o anexo desabou sobre ele. 
Entre os escombros, veio a saber, jaziam sete dos seus melhores companheiros. 
Não compreendeu, nem suportou.
Hamed vagueia ainda hoje pelas ruas de Bagdad. 
Magro que nem um cão, barba por fazer, roupas andrajosas, olhar vago e fixo em coisa nenhuma.
Nada sabe de si nem dos outros, esqueceu o passado e não lembra o futuro. 
Diz-se que carrega sobre os ombros um enorme complexo de culpa, nada teria acontecido se não tivesse puxado com tanta força o autoclismo. Por sua culpa gente terá morrido. 
Nunca alguém o viu, ainda que todos contem a sua história, mas, àquela hora, um míssil cumpriu o seu desígnio e isso, ficar-nos-à sempre na memória.

 
in "A Guerra No Iraque" A Experiencia Inesquecível de um Voluntário de Paz Na Tomada De Bagdad "
- Ed NossoFuturo - 2005 - Humberto Baião - ISBN 972-9060-31-2