Palavras
ditas e fica o mundo expectante, parado, desalinhado ou surpreendido. Palavras
ditas e são como balas certeiras, imparáveis na trajectória e no alvo, que
tomba atingido, ou tingido, com seu poder. Palavras ditas e por terra deitam um
ego, uma reputação, um carisma, um homem. Palavras ditas e através delas se faz
uma mulher, se completa um ser, ou renasce a esperança.
Palavras de
que uma vezes me orgulho se as disparo certeiras, se as espalho numa terra em
que germinem, se sementes, se crisálidas de onde algo de original brotará,
maravilhosamente, para um mundo novo em que se abram, majestosamente. Palavras
de que outras vezes me arrependo, porque não são minhas já, proferidas,
destinadas, sangrentas.
Palavras
ditas são remédio, incentivo ou paliativo, palavras são afirmação de carácter,
são ser, são honra em jogo, são eu. Palavras são algo que por vezes desejaria
poder agarrar a meio caminho, calá-las de novo, fazê-las minhas. Mas não são,
não são já minhas as palavras ditas, qual sentença implacável que não tem
recurso, nem nunca terá. Nem apelo, nem remédio.
Disparo
palavras como Cupido, e sou um anjo bom, um amigo, um homem que ama, e que
constrói com elas um manto de envolvente simpatia, que embala, que seduz,
fantasia, alimenta almas, consola espíritos. Disparo palavras como um
guerrilheiro, palavras que semeiam dor, destruição, inimigos, traição. Soletro
palavras que embalam, adormecem, enriquecem e convencem o coração, soletro
palavras que me afundam em remorsos, e então, em dor, cicio uma oração.
E com
palavras construo o meu mundo, e o teu, e de palavras alimento o espírito meu,
e, feliz, ou infelizmente, o teu. E como são volúveis as palavras, e como são
traiçoeiras de sentido e deturpadas de intenção, oh ! Como o podem ser e tantas
vezes são ! Por palavras se fizeram indicções, se apontaram proscritos, se
levantaram inquisições. A escrita perpetuou o índex, o ostracismo. É assim o
homem no uso indeterminado da dualidade deste poder.
Enorme a
guina pela tentação do seu abuso, a forma do homem é ainda meã e demasiado
atreita ao guilhoché, não parece, mas é. O individualismo é soberano, o
materialismo profundo, só guinada de consciência nos poderá salvar de
afogamento. Com gatimanhos desesperados vamos adiando o suicídio anunciado, o
mancípio é ainda o nosso estado. Ao som de ludibriantes palavras enganamos uma
lipemania congénita, herdada de Adão e, porque nos sabemos culpados, dançamos a
mazurca, mas não somos menos ignavos em cada século que passa.
Frigir é o
nosso primeiro verbo.
Pagamos a
judenga com prazer, crentes no poder das indulgências, mas não cremos nos
deuses senão quando, a palavra morrer, no entretanto, a eles veneramos, para
viver. Palavras viajando no éter, são como novelo que se desenrola,
enrolando-te em subtileza se as escutas, permitindo-me tanto a liberdade de as
calar, como a oportunidade de tecer com elas uma teia, de as desvirtuar no
sentido que aprouver, ou de apertar mais e mais o nó com que te enleias.
Mas quando
escritas Senhor ! Não deixam já margem para manobra. São como cobra
hipnotizando ave, são como corda de relógio que se parte. Não há retorno, ah !
O poder da escrita ! Mil vezes idolatrado outras tantas amaldiçoado. Comprazo-me
com as palavras, com elas construo sonho e castelos, com elas te faço cúmplice
de devaneios, te aperto nos braços, te conquisto o coração. Com elas edifico
uma relação, com elas cimento amor e ilusão.
Não são
palavras, são pão.
Delicio-me
com as palavras, porque com elas sou criança que brinca, sou alma que se solta
e se liberta, sou fruto de prodigiosa imaginação. Sou nuvem, sou contemplação,
sou homem sou oração.
Mas são
perigosas as palavras ! Oh ! Se o são !
Quando
envolvem sedução, música para o coração, ditames de televisão ou letra de uma
canção. Poderão não ser palavras, mas alimento de cão. O destino não é mais que
um jogo do acaso, destino é palavra, esperança e maldição. Destino é
superstição atávica e negação. As palavras não são coincidências, todos somos
culpados do verbo que fascina e inibe a nossa sensibilidade educada. Somos
mestres da palavra, dominamos retórica e ambiguidade, artistas da metamorfose
da realidade, do conflito, só não da reforma do entendimento, da lúcida e
penetrante reflexão. A reflexão vem tardia, calada e amordaçada, como cobardia.
O reflexo é
inato, mas nem sempre grato. É rápido o reflexo, mas complexo, nem tão rápido
que evite disparar palavras sem pensar, discursar sem reflectir. A reflexão
incomoda, é senso, é tento na língua, arnês que tiraniza e coíbe. Hoje parece
que só quem pelos cotovelos fala ou mente, é livre. O politicamente correcto
está em uso, permite mesmo um discurso mais difuso, mais confuso, abrangente,
intrigante, mendicante, comovente, aparente.
As palavras
são redondas, as aparências iludem, são palavras, só. Somos o homem, somos o
verbo, e daí ? Daí criámos este universo desregulado, não um cenário realista,
mas onírico, que só nos deveria merecer lúcida e comovente meditação. Somos o
verbo, somos o homem, distante e fechado, quantas vezes em enternecedora confissão.
Palavras como humor, piedade, ternura, entrelaçam-se de forma comovente e
minuciosa, por vezes procuramos até dar sentido aos choques da vida, mas a
verdade é difícil de encontrar, e, desconcertante se a encontramos.
Tudo porque
temos o dom da palavra, por ela lutamos e morremos, por ela sonhamos e vivemos.
O nosso dom é a nossa perdição, e, quando soçobramos, resta-nos o desgosto ou o
remorso. E sem as palavras me sinto lusco, e talvez por isso, nos livros busco
fugir ao frimário que a todos envolve, quando a elas não me rendo. Amo as
palavras que calo, por isso as guardo, cioso, tal qual tesouro precioso, para
doar com parcimónia, em momentos de pudor.
São palavras,
meras palavras, mas que cheiram a suor, estão vermelhas de rubor, fechadas a sete
chaves. Delas enchi minhas caves, em cadernos de mil folhas que um dia
esvoaçarão. Mas um dia não são dias, e quando me sentir liberto, deste peso,
deste aperto, vos darei noticias delas, em livros de capas negras, de onde
emanarão borboletas, lindo cheiro a violetas, e, uma alma tão branca, álacre e
inocente, quanto as palavras caladas.
Em prosa me
oferecerei, quando essa hora chegar, mas nem um momento antes. Porque as
palavras que guardo, que tanto calo e amordaço, não são palavras, são setas, de
Cupido, de soldado, são balas de guerrilheiro, são canções de marinheiro,
ilusões de feiticeiro, orações de pecador, bocados de um velho amor e retalhos
de umas vidas, envergonhadas, caídas, traídas, enoveladas, mas inda não
acabadas.
Ficarão
porquanto guardadas.
Porque nesse
dia sagrado, porque nesse dia profano, em que a alma for aberta, serei amado,
odiado, serei verdade ou engano. Talvez por isso, ou precisamente por isso,
nunca saberei, se as mais preciosas palavras, não serão aquelas que nunca
direi.