Cautelosamente subi a rua da Selaria acelerando e
serpenteando entre os raros habitantes mas muitos turistas que atravancavam a
rua e, mal ouviu o roncar da mota, Francesco, o arrumador romeno que há meia
dúzia de anos por aqui ficara acenou-me com a mão indicando-me um lugar ideal
para a deixar. Soletrei-lhe devagar, para que entendesse bem
- Olho nela Francesco não deixes que a levem ou a
derrubem.
Subi apressadamente a escadaria da Sé velha e entrei,
o acto estava no início.
Abandonara há uns meses o hábito da missa em Stº
Agostinho, a dificuldade de estacionamento e a distancia à abadia, forçosamente
percorrida a pé, para tal tinham contribuído. Na Sé, para alem da pratica do
culto se revestir de mais vivacidade, e mais musicalidade, beneficiava de um
espaço mais amplo, nada constrangedor, apesar da afluência, inaudita nestes
tempos, e que a catedral registava, pormenor que nos “Agostinhos” me asfixiava.
Depois da missa abandonei a nave principal em busca
do habitual refugio e meditação num nicho recolhido nos claustros do convento
anexo, a capela de Stª Bárbara e, para meu espanto ela não estava.
Não a conhecia, ou se conhecia nunca permitira que
lhe desvendasse as feições ou sinais que a identificassem, parecia ter
acompanhado a minha mudança dos “Agostinhos” para a Sé, mas nem isso posso
precisar, chapéus e véus como os que lhe cobriam a cabeça e as feições há
muitos, mulheres de negro também, viúvas idem idem aspas aspas, e para ser franco
nada nela além da cor que envergava a denunciava como viúva. Nem sequer como
casada.
Em cada domingo que procurei o isolamento daquela
capela lá estava ela, que se esgueirava da missa e ali afluía geralmente antes
de mim, entre tantas capelas por que teria escolhido para a oração a mesma que
eu ? Por devoção à santinha ?
Eu escolhera precisamente tal capela não porque
fizessem trovões, mas porque a localização, afastada do habitual percurso dos
crentes e visitantes me permitia um recolhimento e uma paz interior que em
qualquer outra dificilmente conseguiria.
A penumbra em que sempre está mergulhada, mais
escuridão que penumbra, reforçara a minha preferência.
Normalmente chegava depois dela, e respeitosamente
genuflectia um passo ou dois atrás, mas naquele dia foi ela que quebrou as
regras ajoelhando a meu lado, ainda que ligeiramente um tudo nada mais avançada
que eu.
Ordinariamente ouvia-lhe uma ladainha no murmúrio dos
lábios que o véu rendado não lograva esconder, e desta vez, excepcionalmente e
sem querer fiquei olhando-lhe a silhueta delgada e esbelta, madura mas firme,
diria hirta, ajoelhada na laje fria em oração e penitência, persignando-se com
devoção que acentuava a meus olhos a fé que a animava quando,
A sua mão, estendida na minha direcção me chamou a
atenção
Pensei querer-me algo ou alguma coisa e ainda me
inclinei à frente articulando gentilmente num sussurro :
- Dizei cara senhora
Mas ela nem me ouviu, ou fingiu nem me ouvir e só
parou quando a sua mão me encontrou e me tocou, numa inusitada carícia que ao
principio me sobressaltou levando-me a pensar se não seria melhor recuar um
pouco ou até mesmo erguer-me e sumir dali ...
( dez linhas deste texto que deviam preencher este espaço ser-lhe-ão fornecidas a pedido. contactar humberbaiao@gmail.com )
... Tocou-me, numa carícia final com a ponta dos dedos,
que levou à boca ou somente aos lábios, ergueu os olhos aos céus, levantou-se
desajeitadamente e desapareceu, trôpega, sem que uma vez mais eu tivesse ficado
mais perto de saber quem era ou o casto motivo daquela penitência.
Tudo não deve ter demorado mais que escassos mas intensos
dez minutos, e com tanto tacto quanto ela amanhei-me e parti dali em silêncio
reflectindo sobre o caso o projectando antecipadamente o próximo domingo.
Quem seria ela ? Porquê eu ? Porquê aquilo ?
Francesco aproximou-se, mas não tive palavras para
ele, limitei-me a pôr-lhe na mão a moeda habitual, desta vez branca, nem sei
por que me senti mais generoso.
Fiz a mota guinar entre os carros estacionados e os
crentes apinhados a procura-los, quando alcancei a rua dos Mártires acelerei e
senti o vento na cara e os cabelos esvoaçando. Esquecera-me do capacete.
Voltei atrás em busca dele e cruzei-me com ela ao
volante dum Jaguar verde-escuro que nunca vira por cá...
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