Seria uma radiosa manhã como
qualquer destas com que os últimos dias nos presentearam, pois foi numa ilusão
de calor e num torvelinho de luminosidade que o vi, brilhando entre as verdes
ervas orvalhadas dessa véspera de Verão.
Era a última matina de aulas antes
das férias e, como habitualmente, eu e o Grilo percorríamos essa hora de
caminho do bairro até à escola, como Tarzan percorreria um novo troço da selva ou Emílio
Salgari uma novel aventura.
Onde cresceram prédios subíamos nós gatinhando, a íngreme ribanceira para, torneando a padaria
plantada no meio de nenhures, aspirarmos profundamente o cheiro a pão
acabadinho de fazer nesse alvorecer e vivermos mais uma aventura do far west,
esgrimindo espadas de cavalaria ou revólveres de pioneiros em defesa da ponte ferroviária, último baluarte existente na pradaria e antes de nos embrenharmos na selva de betão da
gente fina da cidade.
Foi nesse derradeiro pedaço do
trajecto, na vereda de atalho para quem demandasse a padaria, que o vi entre as
ervas brilhando ante os raios de sol ainda frescos mas já luxuriantes,
refulgindo ante os meus olhos muito mais que o teria feito o tesouro do Barba
Negra, tantas vezes por nós procurado naquele Caribe que, pelas 8:30, a
realidade nos sonegava.
Sem temer as chispas que o sol
nele libertava logo o limpei às calças remirei e guardei numa
olhadela e manobra rápidas, antes que o Grilo reclamasse metade do achado e
meti-o ao bolso onde decerto o seu lindo cabo vermelho continuou cintilando.
Mantive aquele maravilhoso
canivete durante anos, numa caixa de papelão por mim forrada a papel veludo e
destinada aos meus tesouros, cuja maioria ainda guardo, apesar da sua manifesta
inutilidade. O canivete foi mesmo dos
poucos tesouros de que me desfiz, pois não resisti a oferecê-lo ao meu filho,
quando fez meia dúzia de anos e o homem que eu fora despontava nele.
Mas ficou-me na consciência o
peso dessa ocultação ao Grilo, pois ele nem era merecedor de tamanha
desconfiança. Foi e ainda é a meus olhos,
a pessoa mais séria que terei conhecido, mais sério mesmo que o Texas Kid, o
Flash Gordon, o Tarzan, o Simbad, o Emílio Salgari, o Barba Negra, o Zorro ou o
Tonto ou todos eles juntos vos garanto.
O Manuel Grilo era o
Geppetto das estórias inventadas e das aventuras vividas. Ele inventava o
futuro ! E eu boquiaberto, de orelhas assestadas, deslumbrava perante as visões
que me descrevia e se propunha cumprir quando fosse crescido e de como eram
viáveis e funcionariam !
Então ajudava-o a planear helicópteros
de um lugar só ou gigantes dos ares, submersíveis para desbravarmos os charcos
do Xarrama ou unidades maiores e bem capazes de defender a nossa costa dos
mouros que, segundo o professor Pulga, sempre tinham tentado dominar-nos. E embevecido, era
ouvi-lo inventando e descrevendo parafusos sem rosca e cardans funcionando com
princípios que só hoje a física dos super-condutores e as baixíssimas
temperaturas permitem ! Grilo era o capitão
Nemo do Júlio Verne daqueles dias e bastas vezes me maravilhou com visões que
somente muitos anos mais tarde, já homem feito, vim a observar noticiadas como
acabadas de inventar !
Zingarelhos e aparelhos,
invenções de cientista louco e aventuras de capa e espada eram o pão de cada
dia nessas horas do percurso de e para a escola, recheado de ribanceiras,
silvados, flores, valetas profundas de grosso caudal que submergiriam um
qualquer ao mínimo descuido ! Nem Geppetto, nem Willy Fog e
a sua volta ao mundo em oitenta dias, alguma vez superaram as aventuras vividas
por mim e pelo Grilo nessas idas e vindas dos tempos em que havia Primaveras
e Verões, Outonos e Invernos como deviam ser e não esta mariquice mesclada que
agora nos dão, como esta politica que aceitamos pior que tomaríamos o óleo de
fígado de bacalhau dado às colheradas na cantina escolar.
A cada passo e a cada esquina
reinventávamos o Flash Gordon, o Super-homem e a vida, o futuro e as soluções,
a amizade, o amor e os sonhos, o mundo ! Lembro-me que tão amigos
éramos que até a Lurdes dividíamos e namorávamos a meias e, para lhe chegarmos, transpúnhamos à vez o alto muro que separava os quintais onde vivíamos
aventuras e aprendizagens que nem a Júlio Verne haviam lembrado ocasião alguma…
O Grilo seguiu a técnica
que os seus sonhos tinham há muito delineado e é hoje um quadro altamente
especializado, a vida separou-nos, mas continuamos amigos, eu entre os doutores
e engenheiros deste país adiado e esperando que Platão e Sócrates (o filósofo)
comecem de novo a fazer as perguntas que ficaram sem respostas e esquecidas nas
gavetas dos supra-numerários…
A mim encontram-me por aqui,
ao Manuel Grilo entre os meus amigos de sempre, sempre de óculos, tal qual
o Geppetto de que vos falei… um bom amigo !