Meu
pai estugava o passo, minha mãe seguia-o, fielmente, tal qual um cachorro segue
o dono, arrastando-me pela mão, apesar do meu interesse em chegar depressa
aquele mundo que todos os anos me oferecia maravilhas, repetida e
metodicamente, como as primaveras mecanicamente trazem andorinhas.
Havia
já uns bons e longos dias que o circo se fizera anunciar. Um palhaço com pernas
de dez metros percorrera o bairro arrastando nos seus passos um alarido vertido
por bando de saltimbancos e anões, deixando-nos, aos miúdos, excitados,
boquiabertos e impacientes pelo dia em que os pais nos levariam à feira. O S.
João chegou pois como o dia prometido e, apesar de rebocado por minha mãe, eu
corria, na vã esperança de chegar mais cedo uns minutos, pois naquela idade os
minutos contavam. A feira extasiava-me e entusiasmava-me como se tivesse
feitiço. Flâmulas e lanternas de papel esvoaçavam nos mastros que adornavam e
nos arcos que estes por sua vez suportavam. Manjericos e cravos rivalizavam com
balões, lanternas e bandeirolas. Tudo eram cores, sons, movimento luzes e
maravilha !
E
lembro a roda de algodão doce, cuja rapidez e efeito de teia de aranha me fazia
esquecer o tempo, as grandes e vermelhas cerejas, em pacotes de papel pardo e
que minha mãe pressurosamente guardava para, em casa, com o ferro de engomar
tirar as nódoas das roupas. Lembro sobretudo as farturas (massa frita), o balão
que me prendiam ao braço para que não o perdesse. As ruas de terra do recinto e
o pó que o carro dos bombeiros diligentemente regava, precipitando um chuveiro
em leque cujos repuxos admirava. O coreto do jardim. Os cisnes. A banda da GNR
e por vezes da Armada. O “Bolero de Ravel” que jamais deixaria de amar. Os sons
ressoando forte na minha caixa torácica e ao ritmo do coração. As pessoas
silenciosas para não perderem pitada.
Ao
longe os sons caóticos e abafados da feira. Perto de nós o carrinho dos
gelados. Levantava-se a tampa e um alicate de bolas enchia os cones de cores e
sabores. Tudo em silêncio. Somente se ouvia o tilintar dos trocos, a música no
coreto, alguma folha que tombasse no chão ou o abrir de uma flor, o trinar de
um pássaro.
S.
João e S. Pedro eram maravilhamento, eram fantasia, eram sedução ! Carrosséis
enormes, cavalgando montanhas, e toda a floresta neles ! Eu
alvoroçado e, obstinadamente, de unhas e dentes ferrados no pescoço de um
cavalo, de uma zebra, de um camelo ! E
mais uma volta na " Selva " ! E mais um toque na bolinha do “Alverca“
!
E o
“poço da morte” ! Que sorte !
Um
ano houve que até a “esfera da morte” e uma motociclista nos vieram deslumbrar
! E no poço, os motociclistas de olhos vendados, as motas troando em escape
aberto, as tábuas da estrutura vibrando assustadoramente, eu fechando os olhos
cada vez que se aproximavam do rebordo do poço ! Os motociclistas desafiando a
morte e terminando sentados à “amazona”, sorridentes, destemidos, valentes !
A
noite caindo, o cansaço tomando conta de mim. Minha mãe comprando torrão doce
para levar para casa. Nem a vozearia gritada nos alto-falantes me mantinha em
pé…
Da
ganadaria do Eng.º Joaquim Grave 6 bravos touros 6 !
Eram
anunciados para a corrida de S. Pedro, os forcados seriam os de Évora ! Eu
sonolento. Eu sedento. Lembro-me ainda de meu pai comprar a um aguadeiro copos
de água para todos nós. O copo era giro, em plástico vermelho com bolinhas
brancas. Para ele, meu pai feirou uma dúzia de esferas metálicas magnetizadas,
para que, engolidas, assegurassem que os restos de arames dos fardos de palha
não furassem os intestinos das vacas. Minha mãe umas sandálias de couro
verdadeiro feitas à mão pela “casa Leão”. Eu uma caixa de lápis de cor.
A
Móbil lançava a sua marca de garrafas de gás, azuis, as do célebre sistema
click ! Como propaganda todo o mundo tinha uma latinha publicitária de
estalinhos imitando o clik simples dessas garrafas, a feira inteira
transformada numa zoada de cigarras… O sono tombou-me e, durante muitos anos
nem recordo como o resto dessas noites terminaram. Jamais esqueci o colorido
dos cartazes das feiras, os dias e noites nelas, o cosmopolitismo das gentes, o
cheiro das sardinhas assadas e do frango no espeto, as marchas da fanfarra dos
bombeiros, a arruada dos “Amadores”, o circo, as feras, a mulher serpente, o
túnel do terror ...
Há
muitos anos que não vou à feira, talvez perto de uma dezena, muitos…
Cansei-me
de amadorismos…