Foi a fotografia dele num sépia
desbotado a chamar-me a atenção.
Há quantos séculos o não lembrava ?
Vinte ? Trinta ? Quarenta anos ? Peguei nas folhas daquele inesperado
requerimento, também elas amarelecidas pelo tempo, e detive-me exaustivamente
analisando-as. Tinha-me levado ali uma tese que já me está dando mais trabalho
do que vale, e nada na minha investigação apontava para o que agora me prendia
a atenção, regurgitava em mim memórias esquecidas mas, sobretudo, me aplacava
uma curiosidade velha de décadas.
Eu olhava o pavilhão por dentro, nem
me lembrava de alguma vez o ter visto do exterior. Hoje bem sei qual a razão
pela qual ao recorda-lo o associo ao “ Pavilhão dos Cancerosos “ de Aleksandr
Solzhenitsyn. Nenhum de nós ali era canceroso, mas a amálgama ia desde o
sarampo às bexigas, preenchendo todo o rol da lista que aquela unidade de
doenças infecto-contagiosas albergava.
Visitas não eram permitidas, o que se
compreende. Que eu, com sarampo, pudesse apanhar varíola, não seria o mesmo que
alguém de fora levar contaminação involuntária. Com nove ou dez anos, eu, pouco
mais recordo que o canto aberto de uma rede na janela, que não evitava o
contágio mas permitia a passagem das oferendas aos doentes trazidas pelos
visitantes. Eu era doido por pacotes de bolachas.
Li e reli os documentos na minha mão.
Coisa simples que explicava muito mistério. Um requerimento solicitando
reconhecimento e deferimento (acreditação) do Termo de Responsabilidade anexo e
seus apêndices, a saber, um diploma em língua italiana atestando a posse de
determinados conhecimentos ao signatário, signor Andreas Livorno Bertini,
emitido pelo Ufficio Scolastico Provinciale di Milano, (Istituto per le Opere
di Religione), città di Milano, corria o ano de 1963.
Sorri. De documentos na mão, sorri.
Mas não sorri sem que desse primeiro
uma olhadela a toda a volta, como que para me assegurar que o signor ingegnere
Livorno Bertini não me apanharia sorrindo, pois era apanágio dele surgir por
detrás de quem fosse, sem ser apercebido até que estivesse a um passo.
Jovem, adolescente, pensei de início
que o fazia por maldade ou matreirice. Não. Fazia-o por ser seu modo, como o
era envergar permanentemente um sorriso que só os tolos ou os mouquinhos
costumam arvorar. Não, ele não o era, embora ficasse a remoer o que lhe diziam,
demorando por vezes tanto as respostas, que cheguei a pensar que não ouvira as
perguntas, não traduzira facilmente a nossa língua, ou era tolo. Não era
defeito, era feitio. O estratagema permitia-lhe ganhar mais tempo para
responder, não responder mesmo, fingindo não ter decifrado ou ouvido sequer a
questão colocada mas, particularmente, fazer com que à sua chegada, não
calassem as conversas, ou que durante as mesmas lhe fossem atiradas piadas que
simulava não entender, mas certamente entendia, lance que lhe permitia
“enrolar” com facilidade e apesar da sua cara de tolinho o interlocutor menos
prevenido.
Curei o sarampo no pavilhão, não
descansei, não me recordo de o ter conseguido. Recordo sim as luzes ligadas
toda a noite, e todo o dia, os gemidos dos acamados nas dezenas de camas, o
cheiro a febre e a fénico. Nem das injecções me recordo. Mas não olvido as
deusas de branco, sorridentes, meigas, carinhosas, simpáticas e, que me lembre,
foi a primeira vez que gostei de alguém a sério.
Também por essa ocasião seria pela
primeira vez na vida enganado.
É curioso como recordamos sempre as
nossas primeiras vezes de qualquer coisa, mesmo que, passados anos, essa coisa,
essa recordação, tenha tanto valor como o lembrar-me do que almocei sexta-feira
da passada semana. O Monginho frequentava a minha escola numa outra classe.
Éramos colegas de recreio. Não sei já com que ardil surripiou-me vinte e cinco
tostões que me deixara a tia Joaquina na visita da tarde, para que comprasse,
se conseguisse, meia dúzia de pacotes de bolachas quando se acabassem os que me
trouxera. Nunca mais esqueci essa trapaça. Nem o Monginho, que há trinta ou
mais anos não vejo.
As primeiras vezes marcam.
Entre os documentos, um deferimento
de vereador do pelouro na altura. Confirmava-se em termos legais a capacidade
técnica do senhor Andreas Livorno Bertini para assumir responsabilidades no
ramo da electricidade e electromecânica, em obras até ao valor deliberado em
reunião de câmara, de cinquenta mil escudos. Não imagino quanto essa
importância significaria agora. Lembro é que o engenheiro Bertini estava em
todas as obras, das maiores às mais pequenas, trabalhava incansavelmente, e era
considerado e respeitado na urbe. Cedo deve ter abandonado a sua zona de
conforto para se instalar entre nós, aproveitando as oportunidades que este
país de sol, como o dele, tinha para lhe oferecer. Foi dos primeiros e quase
únicos conterrâneos a ter um automóvel Mercedes, o que na época não era, como
hoje, coisa que qualquer gato-pingado tivesse. Curiosamente não me recordo de o
ter ouvido designar-se a si mesmo de engenheiro.
Agrafado ao processo nas minhas mãos
um seu cartão de visita apelava ao favor de uma resolução rápida, e nada de
engenheiro, nada de diplomado nisto ou naquilo, diplomado sim, diplomado pela
Scuola Professionale di Ingegneria, Elettrica e Electromecânica di Milano,
Ufficio Scolastico Provinciale di Milano.
Hoje, olhando os documentos na minha mão, duvido que a razão não
estivesse do lado dele. Chamavam-lhe senhor engenheiro, atribuíram-lhe
capacidades idênticas, nunca solicitou que como tal o creditassem, embora
respondesse ao chamamento.
Aqui chamam engenheiro a qualquer um
deve ter pensado…
E, contemplando os papéis, mais me
convenço que o nosso engenheiro Bertini, de quem muitos dos profissionais mais
velhos na área se lembrarão e terão sido aprendizes, foi, entre nós, o primeiro
caso, a primeira vez que um aluno de um curso das Novas Oportunidades
apresentou sucesso.
Em terra de cegos quem tem olho é
rei.
O nível de aprendizagem, a natureza
das matérias e a origem da entidade formadora não me deixaram dúvidas.
Frente a elas um vereador desta
cidade, há quarenta ou mais anos, assinou de cruz.
Terá sido a primeira vez ?
Sarampo ?
Nunca mais tive…