Ainda
não é desta que me levam amigo Baião !
Tão emotiva recepção foi-me depois traduzida pela Graça com
ternura, já que eu não entendera nem metade do que ele dissera. Ela
habituara-se a adivinhar os monossílabos guturais por ele soletrados, nesse dia
acompanhados de efusivas expressões de contentamento pela minha visita e gestos de
desespero por não se fazer entender.
A história de hoje é um testemunho de factos com
perto de trinta anos e começou à mesa do clube de caça e pesca numa noite em
que o Figueiredo, p’ra esquecer que fora despedido se encharcara até à goela com vinhos da região. Lembro-me bem desse dia em que ele trouxe queijos e linguiças, merenda
dispensada a título de pagamento pela patroa que encerrara intempestivamente a
empresa em que ele trabalhava. Nunca apreciáramos tanto os produtos tradicionais e
regionais, só o Figueiredo não achava piada à coisa, naturalmente que não e
agora que irei fazer da minha vida lamuriava ele, e eu, farto de o ouvir,
atirei-lhe:
- A vida continua pá, faz o que melhor sabes, arranja
uma carrinha e vai vender os queijos e as morcelas por tua conta, afinal quem
come e paga continua lá à tua espera, aproveita e caga nos patrões, faz-te
patrão de ti mesmo e não sejas palerma.
Toda a gentinha se riu sem o mínimo de respeito pelo
seu desgosto mal o mandei vender morcelas, o termo era por nós usado pejorativamente
quando queríamos gozar com ele, ainda que ninguém faltasse à mesa quando o
petisco metia morcelas.
O AVC prostrara-o, estava acamado, não andava, era
alimentado, babava-se, nem falava, enfim, um peso morto mas consciente disso
pois não se encontrava em coma. Habituado a uma vida activa e útil ia-se agora abaixo
à menor dificuldade, o humor fora também atingido, pelo que choramingava por
tudo e por nada, a "boa vai ela" atirara com ele ao chão…
A sua vida dava um filme. Daquela noitada dos
petiscos e morcelas deve ter sido o único a lembrar-se bem do que dissemos, “ carrinha, comprar e vender “, intuiu a coisa e se bem o pensou melhor o
fez, parece que logo pela manhã terá ido ter com a viúva do antigo empregador
propondo-lhe a compra da carrinha que ele mesmo conduzira e agora para ali
parada com as outras, jurou-lhe a compra exclusiva dos queijos, pediu-lhe um
fornecimento de adiantamento para ajudar no arranque e recebeu muito mais do que
pedira. Não, não a trouxe p'ra casa nem casou com a viúva, aliás pessoa que em nova se limitara a criar e formar os filhos e no momento se
via mais como reformada e viúva triste que como avalista do Figueiredo.
- E agora o que faço eu com o resto da tralha filho ? Tu não queres
antes ficar com tudo ? Tomar conta de tudo isto ? Eu entregava-te isto por conta, nem sei que hei-de
fazer da minha vida, o meu Horácio foi-se assim tão de repente…
O Figueiredo quis.
Num repente viu-se dono do negócio, tomou à sua
responsabilidade os antigos colegas, manteve todos e o negócio a funcionar e,
dizem as boas línguas que muito antes do prazo quitou à viúva e antiga patroa
todas as promessas que assumira.
Preso à cama, dependente de tudo e de todos até para
mijar, o Figueiredo lamentou os excessos que o seu feitio decidido lhe tinha
trazido, a mente, lúcida e capaz, revoltou-o contra si mesmo primeiro, e depois contra
tudo e contra todos.
- Eu, que tanto fiz pelos outros e agora sem ninguém
poder fazer nada por mim Baião, foda-ssssssssssss.
E a Graça traduzia-me o emaranhado que ele babava,
menos o foda-se claro que ela era uma mulher séria, e nem precisava, eu
conhecia bem o som sibilino com que o Figueiredo rematava sempre o palavrão, o
seu inconfundível dassssssssssss que aliás, perante a mulher eu fingira que nem entendera. Dono de dúzia e meia de carrinhas, de uma queijaria e
uma vacaria o Figueiredo passou a preocupar-se com pastagens, pastores, o preço
do leite, a situação dos restaurantes casas de pasto e hotéis desde aqui passando
por Setúbal e parando somente em Lisboa Sintra Cascais
e zona dos saloios e arredores, e, a berros umas vezes e palmadinhas nas costas
outras, passou a dirigir toda aquela gentinha, a produção e o crédito, a
distribuição e a cobrança, a prospecção e a auditoria a novos e a velhos
clientes, de Raposo de apelido passou em três tempos a matreiro e recusando
sempre meter-se nas mãos dos hipers.
Graça fora parar-lhe às mãos um pouco assim,
deambulava lá pela aldeia ao Deus dará, hoje com um amanhã com outro, meia
dúzia de filhos de quatro ou cinco pais diferentes, quando não estava na Segurança
Social reclamando abonos de família estava na Cáritas ou na Misericórdia
fazendo pela vidinha, ainda não tinham inventado o RSI, lembro-me que a coisa
foi muito repentina, a mãe do Figueiredo morreu com uma trombose, (nunca lhe
conheci pai) depois de algum tempo voltou a andar de sorriso na cara e de
camisas bem passadas, onde a memória me falha é se foi pastelaria ou padaria
(mais tarde passaram a poder vender bolos e bebidas e não somente pão) que ele montou
para a Graça, o que não esqueci foi que fizeram juras e ficaram de casar quando
ele tivesse tempo e por um azar da vida nunca mais teve, agora é fisioterapia
exames e tratamentos de manhã à noite, a doença ocupa-o a cem por cento e a
Graça arrasta-o para toda a parte numa dedicação comovente.
O pequeno empresário que lhe fornecia as morcelas
faliu um dia e ele adquiriu-lhe o negócio no outro, o padeiro que o abastecia os milhares de pães que colocava em
Lisboa no seguinte e ficou-lhe igualmente com o negócio, o Figueiredo foi ficando cada vez mais apertado de soluções
mas também confiante, bonacheirão e sortudo,
- Não há azar rapaziada continuem a trabalhar que eu
tomo conta de tudo, preocupações são comigo, o bom povo produz.
Era um mãos largas, passou a fumar charutos, trocou o
Mercedes por um BMW verde porque a Graça achava ser a cor da esperança, com o passar dos anos tornou-se benemérito altruísta e benfeitor das festas da aldeia, do lar dos
velhos, da paróquia, do grupo coral, financiou o teatro da junta de freguesia,
sem que nada fizesse por isso a vida sorria-lhe tornando-o cada vez mais rico,
berrava cada vez mais com os outros, exigia e dava, as palmadas no lombo
deixavam desmanchado quem as levava, nunca fez um estudo de mercado, uma
sondagem, uma planificação mas tornou-se um “case study”, qualquer dia é feito
doutor “Honoris Causa” pela universidade, na aldeia todos se lhe dirigiam por
um favor, um empréstimo, um emprego, uma bênção, ficou padrinho de metade da
povoação, quanto mais prodigalizava mais os negócios lhe rendiam, colocou sinos
na igreja e um relógio na torre de menagem, até que há coisa de um ano atrás
começou a ser perseguido, a andarem-lhe no encalço sem jamais conseguirem
acusá-lo de fuga ao fisco mas tendo-o chateado e
- E para que sou obrigado a carrinhas com ar
condicionado se os queijos e as morcelas e o pão o dispensam ? Que raio não vou
ganhando para o gasóleo quanto mais para as portagens, cona da mãe que ninguém
me paga a horas mas p’ra vocês tem que ser tudo na data !
- Caralho, nem filhos tenho mas sou mais que pai da
segurança social ! Fodam-se ! Chega ! Vão p’rá cona da tia trabalhem vocês !
E fechou de um dia para o outro todos os negócios,
tudo que se movia e se mexia na aldeia e arredores.
- Agora agarrem-me pela pele dos tomates seus cabrões
ou pensavam que eu trabalhava para vocês ? Agora aguentem esta malta,
paguem-lhes subsídios e arranjem-lhes emprego se forem capazes !! O que eu me rirei no dia em que tiverem que
fechar as repartições e forem todos para o galheto !!
Nem chegou a mandar relvar o campo de futebol da
aldeia, nem a pagar os novos equipamentos, o torneio de malha perdeu um
benemérito, a orquestra da sociedade harmonia viu serem-lhe confiscados os
instrumentos por falta de quem pagasse as prestações, os bombeiros ficaram com
a planta do novo quartel nas mãos, as vacas sem ninguém que as ordenhasse foram
vendidas por junto a um talhante de Beja, a Graça fechou a Pastelaria / Café /
Restaurante Senhora da Graça para se dedicar ao marido doente, e se o vagar, os
charutos, os amigos as amigas e os petiscos não tivessem acabado com ele o
fisco ter-se-ia encarregado disso, é por tal razão que nem me admiro quando a
Graça manda as mãos à cabeça e grita
- Quem acode a este país !!!!!! ???
A universidade deu mais um Honoris Causa, desta vez
ao escultor João Cutileiro, o Obama acha que as famílias portuguesas são
excepcionais, o Rui Costa é campeão do mundo mas nem sabe onde fica Portugal,
um país onde uns vão bem outros vão mal …………..
THE END