Muitos desconhecem que a edição de um livro submete o
seu autor às mais mirabolantes e rocambolescas submissões. E isto após a
ultrapassagem do crivo, feita a triagem entre o que o editor está
decidido a publicar e os cortes a que autor se dispõe a ceder.
Nem sempre será assim, Lobo Antunes e Saramago não
terão esses problemas, ou terão tido no inicio das suas carreiras, mas eu, que
nem escritor sou, apenas um simples escrevinhador, tive, e de que maneira. De
tal forma que decidi jamais voltar a publicar fosse o que fosse, pois no
negócio dos livros todo mundo ganha dinheiro menos o autor. Livrarias,
editoras, gráficas e distribuidoras enriquecem e tecem impérios, os autores são
os seus servos da gleba, não estou para tal, pois também tenho que pagar o pão
que como.
Verdade que gostaria de ser desafiado a beneficiar
das condições e a responder às exigências que me permitissem viver do escrever,
a minha paixão e a minha vaidade. Nas circunstâncias que descrevi, os editores
e livreiros que os escrevam.
Tudo isto porque quando publiquei o meu primeiro e
único livro, fui “forçado” pelo editor, entre outras sugestões, a retirar cerca
de cem páginas ao manuscrito, pois na ideia dele, encareceriam o meu trabalho,
o livro, e se tratavam de estórias menores que nem por isso se revestiam de
preponderante interesse.
Anui a substituir em noventa por cento dos casos a palavra
“americanos” por “invasor”, alteração quanto ao editor menos chocante ou
desprestigiante para as tropas americanas no terreno, ao fim e ao cabo os maus
da fita, do meu ponto de vista, que assisti impávido durante muito mais de trinta dias, e não trinta minutos, ao seu modo de actuar e ao desmesurado e desequilibrado
poder de fogo, na proporção de dez para mil a seu favor.
Uma dessas histórias tinha que ver com um dos modos
como nos defendemos do autêntico terror quotidianamente vivido, e que passou
por várias estratégias que no livro relato.
Todavia esta que irei mencionar foi indubitavelmente
cortada/censurada, pois não se pode admitir publicamente que quer as pessoas
normais, como eu, quer as tropas do maior exército do mundo ao
estratagema recorram.
A verdade é que quanto mais as tropas americanas se
aproximavam de Bagdad mais se intensificava o contrabando entre civis
iraquianos e a logística desse exército ! Tabaco Marlboro bom e barato, whisky
de qualquer marca e do melhor, sempre com mais de doze anos anos, pilhas, CDS,
aparelhagens de som, guitarras eléctricas, halteres e pesos para ginásios, (em
Bagdad havia uma média de um por rua, para tal bastava uma garagem), calçado,
óculos de sol, binóculos e toda e qualquer extravagância das melhores marcas e até o material de guerra que
se quisesse, desde que pagássemos.
A droga é proibida nos países árabes e o Iraque não é
excepção, embora alguns sejam grandes produtores mundiais, mas a droga era
também um refúgio ao terror vivido, pelo que um belo dia, e tendo o “nosso
contrabandista de serviço” sugerido, aceitámos, sem qualquer fé, relutantes duvidosos e
desconfiados, a sugestão dele para nos fornecer uma tablete do melhor haxixe
jamais visto.
E não foi que tinha razão !
Embora não seja um consumidor, nunca fui, mandei umas
passas se tanto duas ou três vezes na vida para experimentar e saber como era,
não tive contudo a menor duvida que estávamos, eu o Bruno, o Ângelo e o Jean
Jaccques, (Cooker para os amigos, era luso-francês), perante o melhor que
havia e sem a menor duvida de que os padrões de qualidade do exército americano
continuavam elevados !
Quem leu o livro conhece a parcimónia com que eu e o
Cooker, da varanda da janela do 14º andar do Sheraton, de calções, deitados
numa espreguiçadeira, bebendo uma “Seven Up” fresquinha por uma palhinha,
assistíamos à guerra em directo e que se desenrolava por baixo de nós, como se estivéssemos
no balcão de um moderno cinema de reprise !
“Pedrados que nem cachos claro, aquilo era o pagode
possível, num ambiente surrealista em que ninguém sabia se ia morrer de velho
ou nos cinco minutos seguintes.
A pedra era da boa, e cada pedrada, por cada um de
nós alimentada qual fogueira de antiga locomotiva, durou bem mais de uma semana
!
Claro que não vos vou descrever o nosso elevado moral
e coragem, nem os maravilhosos arco-íris e pôr de sóis que só naquele ponto do
mundo foram visíveis, sim, até o luar visível ali onde o rio de águas tão agitadas
passava não era visível noutro qualquer lado, e onde não vimos nem anjos nem
querubins mas sim e só gente que apenas conhecia o desconsolo, mentiras, promessas,
e que, por uma vez acreditava que, decididamente o paraíso não era ali.
Ventos trovejaram sem que moinhos acenassem aos peregrinos daqueles caminhos tortos, prenhes de pecados e pejados de emoções,
que nada podiam contra e antes provocavam o pranto daquelas gentes, nunca vistas tão
sozinhas todo dia ante a solidão e um céu donde somente trovões vinham e gemidos
se ouviam no vaivém de destinos e fados, de mortos por desesperarem de viver
batendo no peito enquanto inda vivos, por não haver outra estrada, outra saída,
que não aquela mortandade sem fim ou aquela vida de desespero que ninguém
pedira, toda ela sem respeito mas cultivando muito medo.
Por uma vez na vida eu senti-me tolo, completamente
tolo e inútil, como não de outro modo se cada ponto negro no céu mais não era
que uma flecha negra, a sombra do oculto e do maligno sob a forma de uma
aeronave, a sombra da tecnologia com que nos inundavam e nos marcaram de sangue
lágrimas e cada ponto negro nos céus era um mistério, um desígnio, um susto,
uma flecha, uma bomba e se morrêssemos nem nos chegaríamos a aperceber, e esse
terror repetia-se todo dia, todos os dias, a todas as horas, a qualquer hora, e
talvez fosse tarde e eu talvez um cobarde com tão maltratado coração que me
coroei a mim mesmo o rei da cobardia e me afundei em haxixe, um, e outro e
outro dia para ver outros rastos que não sangue, e nunca vi ou senti algo mais
que o mundo inteiro dormindo, alheio ao romper de tratados, às almas cativas e
penadas, aos gritos, porque em cada um dos mais de trinta dias que ali passei,
nenhum dia nasceu feliz, tudo era perda, desastre, miséria, horror, nuvens
negras, e quase já nem lembro os dias em que dois deuses se chocaram e todos
nos diziam loucos só porque nós, qual fogueira de locomotiva, alimentámos
quando tudo ardia e todos se perdiam, vencidos, sem lugar para o amor, e por
prevenção e sobrevivência da nossa saúde mental, o corpo com “pedradas” que nem
cacho, no pagode possível daquele ambiente surrealista em que ninguém sabia se
ia morrer de velho ou nos cinco minutos seguintes.
Tudo acontecia por um triz e até o sol desaparecia,
envolto em nuvens negras, mortíferas, pestilentas, de crude ardendo, e,
enquanto o mundo dormia feliz, toda esta gente se cruzou comigo, ou eu com ela,
no vórtice da vida, tanta gente gritando, tanta gente abafando a dor, monstros
alados pairando sobre nós, choros comovendo-nos, dormindo o sol tapado de negrume,
todo mundo embriagado, arrebatado, mas ali havia gente assustada, clamando aos
céus, implorando por ver ser destruído o construído, quem sabe os corações
fervendo como caldeiras, nas bocas travos amargos de fel, não havia esperança,
não havia nem se vislumbrava harmonia, todos os dias nos apanhavam
desprevenidos, não havia surpresas, não havia milagres, tudo aquilo era
dissonante e talvez o único sitio do mundo onde não havia, não podia haver
coincidências.
E nós rindo deitados na relva da margem do Tigre,
fumando.
Soldados passavam para lá e para cá, uns morrendo,
outros matando e nós rindo continuamente fumando, continuando deitados na relva
da margem do Tigre. Nem nos ligavam, olhavam espantados, surpreendidos, se calhava ouvirem
as nossas gargalhadas.
Alguns imberbes ainda, mais ganzados que nós,
tolhendo o cheiro fortíssimo no ar, despiram a farda e ficaram, uma manhã, ou uma
tarde inteira, depois abalaram de novo, amigos para sempre, disseram.
Decididamente não era eu quem estava louco.
Humberto Baião – Bagdad, 8 de Abril de 2003.