Foi opção tomada há quase quarenta anos
e nunca senti até hoje o mais pequeno arrependimento. Hoje conheço-o por fora e
por dentro, satisfeita, saboreio-o com o prazer que só a maturidade permite, sem
pressas, no sítio, na hora e do modo próprios, que é como deve ser, até para
não enxovalhar as roupas.
Procuro-o, propositadamente por vezes, sei
não ser a única, e não me importo. Todo mundo sonha com ele, com isso, especialmente
no verão, porque nos faz esquecer este calor incandescente consumindo-nos. Pena que nem sempre
isso suceda, por vezes sabe a pouco, e aos pouquinhos, no entanto, acende-se
a labareda e a boca diz ao que vem, uma e outra vez, insaciada.
Existe um prazo para que o desejo
aconteça, atinge o auge, o zénite, o perigeu, entre cinco minutos antes do
primeiro roçar de lábios até, no máximo, cinco minutos depois. Pavlov
chamou-lhe reflexo condicionado, eu chamo-lhe desejo insatisfeito. Seja o que
for faz salivar…
Raras ocasiões lhe fui infiel, no máximo
dez, ou vinte, o que, para quarenta anos, não é nada.
E fiel?
Quantas ?
Quantos dias ?
Milhares por certo, não me venham
portanto com paternalismos serôdios que eu já sou crescida. Para além disso,
nos meus gostos e nos meus actos, ninguém manda, que ninguém meta a colher.
É que é gostoso, não cansa, não
engravida, é prático porque não precisamos tirar a roupa, não precisamos sair
da festa, dá saúde, alimenta a carne e o espírito. É bom.
Não que ande a sonhar com ele, e até
talvez por o ter em casa sempre à mão… mas quando tal não acontece, que
desalento, que tristeza, não que esteja grávida, mas o desejo primeiro, a
pertinácia depois, e então olha, persigno-me e é o primeiro que aparece.
E que prazer quando ele me delicia, não
é o mesmo que com qualquer outro, com qualquer um a coisa é rápida, uma
necessidade de satisfazer o desejo, com ele não, com ele a coisa faz-se render,
durar.
O primeiro toque costuma ser suave,
interrogativo, como que para sondar ou matar saudades, decente. Aos pouquinhos,
no entanto, acende-se a labareda e já não há modo de parar, é uma coisa muito
nossa, muito pessoal, quase uma maneira íntima de colher o sabor do que se
gosta, de dizer mil coisas em silêncio.
A sensação continua a ser a mesma de
sempre, a vontade igual, o sabor idêntico, não vejo portanto motivos para parar
ou reduzir. Gente insonsa sempre disse que o que é bom e sabe bem, ou faz mal
ou é proibido, pois, sim abelha, se tiver que morrer ao menos que morra feliz.
Há muitos anos era delicodoce, hoje
continua doce e delicado. Dantes era predicado, hoje verbo, sujeito, acção,
emoção e torvelinho. Chego a temer que seja um sonho, que venham buscar-me
desse sonho, de me ver encurralada num sonho.
Já lã vão dezenas de anos, experts do
marketing mudaram-lhe o nome, gente que nada sabe pensando que sabe tudo há-de
acreditar que a fidelidade assenta nisso. Nada mais falso, a fidelidade é algo
mais profundo.
Há um abismo imenso entre o que pensamos
o que sentimos e o que fazemos, e eles não sabem, nem nunca saberão.
Poucas vezes lhe fui infiel, mas às
vezes calhou, às vezes longe de casa, onde dele nem sombra, às vezes calhou.
Mesmo contrariada, já tem acontecido, afivelo um sorriso irónico, peço-lhe
perdão e zás, lá vai, e lá calha.
Claro que estranho, claro que não é a
mesma coisa, por isso volto à minha fidelidade, à minha preferência, ao meu
gosto. Os tempos mudam, os hábitos ficam e fazem o monge.
Agora chamam-lhe "Supermaxi",
e numa dobradinha como dizem os brasileiros, ou numa dupla, como nós dizemos,
promovem-no a super por um lado e a maxi por outro, como se a etimologia ou a
semântica tivessem muito a ver com o gosto gelado da baunilha e do chocolate.
Aceito que a nível mundial esse
nome possa impressionar alguém, que venda mais, muitos mais gelados que
"Delicô", como se chamava e não tinha tradução possível e portanto
nenhum significado especial, pelo menos para mim.
Mas tendo-lhe sido mudado ou não o nome
a minha fidelidade estava jurada.
Não havia nada como aquele gelado da Olá.