A carrinha celular parou frente ao café, um garboso e
desempoeirado jovem saltou para o chão, endireitou-se, deu um toque na melena e
avançou resoluto direito a mim
Paragem para a bica, pensei, afinal aqui costumam
parar os paramédicos do VMER, os polícias de giro, o guarda-nocturno
Só então o reconheci, tinha sido meu aluno nos idos
da mudança de século, e dos bons. Sorri, ele retribuiu-me o sorriso, avançou a
manápula, aquilo não era uma mão era mesmo uma manápula, e atirou:
- Era mesmo de si que andava à procura prof, já
fizera por aqui caminho duas ou três vezes nessa esperança mas não tinha
calhado, e como ando sempre à pressa
E para o que calhou retorqui-lhe eu entre espantado
por vê-lo enfiado naquela farda, e surpreendido por ser procurado tão cedo e
naquele local por um guarda prisional
- O prof lembra-se de um aluno chamado Noronha ?
Embatuquei, mas prontamente lhe redargui
- Filho, (sem do nome dele me lembrar) eu tive
milhares de alunos filho, (e o filho dito mui enternecidamente afim de esconder
a minha atrapalhação)
- Pois disseram-me que ele tinha sido aluno seu há
uns bons anos, quando o prof ia à cadeia dar aulas
- Ah ! Bati com a mão na testa e recordei o
Noronha, de apelido Bicho, ou alcunha, e isto há uns bons vinte anos atrás, ou
bem mais
- Pois é prof, deve ser esse, porque eu só o conheço
pelo nome que me indicaram, precisamente este, Noronha
Visitou a cadeia velha no passado fim de semana para
saber de si, não fui eu quem o atendeu, foi o sargento Peres, foi ele quem me
incumbiu de o procurar pois na segunda feira entre os comentários do futebol,
do fim de semana e de mulheres, veio à baila esse Noronha, e como eu disse
saber onde o prof batia, fui nomeado para lhe fazer chegar às mãos esta pequena
saqueta, foi-nos entregue por esse tal Noronha, ou Bicho, com o pedido expresso
de lhe ser dito que lhe ligasse quando melhor lhe aprouvesse
E o meu grau de surpresa aumentou, e para onde devo
ligar-lhe Damião ? (é que entretanto me acudira à memória o nome desse
desempoeirado rapagão)
- Para aí mesmo prof, na saqueta está um cartão SIM
de telemóvel pré pago e o prof deve ligar para aí, foi o recado que me
encomendaram, fica dado, estou apertado de tempo pois já devia estar a carregar
um preso para levar ao tribunal, fique bem, gostei de o ver, esse tal Noronha
parece que lamentou não o ter visto
Aceitei a saqueta, um pequeno envelopezito com o
logótipo laranja da operadora, achei tudo aquilo mais estranho que misterioso e
guardei no bolso o citado
Recordei o Bicho, ou Noronha, não muito pequeno,
espadaúdo, adorava andar em mangas de camisa, brancas, colarinho aberto, mesmo
no inverno, mostrando os bíceps bem modelados
Ele e mais trinta e poucos cumpriam penas por
pequenos delitos, na generalidade furtos, e todos eles, quase sem excepção,
reincidentes
Não lidava com gente branda, diria até serem mais
brutos que inteligentes, eu cumpria um período de voluntariado em substituição
do padre Geraldes, (que por sua vez tinha sido meu prof) recentemente
aposentado, tratava-se de um curso de formação de adultos pois a maior parte
deles tinham somente a antiga quarta classe, ou nem isso
Era gente bruta a quem a sociedade nunca daria a mais
pequena oportunidade, já nesses tempos se vivia uma crise com contornos
idênticos à de hoje, não se ganhava para comer, e era-me difícil entender que a
criminalidade e a violência se mantivessem controladas dentro de valores
aceitáveis, como diziam as estatísticas oficiais
Verdade que também sou laxista nos limites desses
valores, mas há por aí desde conservadores e revolucionários muitíssimo mais
exigentes ou intolerantes que eu
O sentimento que me ficou após as primeiras horas com
este heterogéneo grupelho foi a de que eu estaria ali para os distrair, e
pareciam apostados em fazer-me crer que mais não conseguiria que isso
Também sou macaco, e, mal me apercebi, delineei
estratégia e táctica apropriadas
- Pois é meus amigos, pelo que me apercebo vocês não
estão aqui por roubarem, estão aqui por serem parvos, talvez parvos seja um
eufemismo e deva dizer mesmo é brutos
Atirei a bocarra e calei-me, calaram-se quase de
imediato, não esperavam o ataque nem esperariam tanta franqueza
Por breves segundos entreolharam-se, temi que um mais
afoito recuperasse da surpresa e reagisse, e se reagisse mal poderia arrastar
todos os outros e eu, no mínimo ser sovado, até que o alarido soasse aos guardas
e estes acorressem em meu socorro, não antes de decorridos dez a quinze
minutos, tempo mais que suficiente para eu levar uma surra memorável, e nem
seria o primeiro caso ali
Mas não, aquietaram-se bufando nas carteiras. A minha
estratégia e risco tinham resultado. Com cautela avancei
Fiz-lhes sentir quanta a necessidade de formação e
cultura, e, até para roubar, naqueles dias, (e nos dias de hoje ainda mais),
ladrão ignorante jamais se safaria e arriscaria estar constantemente a bater
com os costados onde estavam os deles. Não era futuro
Prestaram atenção, nesse dia e nos seguintes, nuns
mais que noutros, mas prestaram
Falei-lhes da necessidade de saber ler, e ver, olhar,
observar, na necessidade e vantagem de domínio do conhecimento, exemplifiquei,
naquele dia com a electrónica, metade deles estavam ali por furto a residências
ou viaturas e apanhados pelo troar dos alarmes, nem um alarme souberam desarmar
Ou seja, estavam ali por ignorância pura. Há que
aprender, saber, falar bem, dominar o vocabulário, a técnica, adquirir
formação, ler livros, ler Sherlock Holmes, Agatha Christie, Arsène Lupin,
Hayao Miyazaki, Maurice Leblanc, Alexandre Marius Jacob, Proudhon,
mas também sobre Marx, Engels, John Locke, David Hume, Tocqueville, Adam Smith,
David Ricardo, Milton Friedman, Hayek, liberalismo, libertarismo, anarcocapitalismo mercados, concorrência, Estado, propriedade... Tudo coisas que
lhes expliquei
Contei-lhes do bando de Ronald Biggs, da sua vida e
aventurosa aventura, contei-lhes da preparação e do assalto ao comboio correio
em Londres, corria 1963, levei-lhes, e passámos na sala de aula uma cassete com
o filme dessa façanha, ensinei-lhes métodos de pesquisa e aprendizagem, métodos
de observação, e desde aquele Outubro em que temi pela minha segurança até que
em Julho nos despedimos, criámos amizade e laços de cumplicidade
A alguns deles encontro por vezes, por aqui, pela
cidade, a outros já nem recordo e nunca mais vi, o Noronha Bicho jamais me
acudira ao espírito, até hoje ...
Nota : continuará num próximo texto, intitulado " VOLEURS DE COL BLANC "
Nota : continuará num próximo texto, intitulado " VOLEURS DE COL BLANC "