quarta-feira, 9 de abril de 2014

185 - VIVA A PRIMAVERA* por Maria Luísa Baião...

                                   

Adoro as roseiras bravas, aquelas centenas de pequenas rosas que lamento não poder trazer para a minha varanda, como se desse modo pudesse carregar todo o Alentejo para casa, cobrir com essas rosas as sacadas da cidade, desenhando com elas céus multicores, dando forma ao mundo, retocando odores, como se estivesse na minha mão escolher matizes, fazer-nos felizes.

Certamente que Vivaldi, quando escreveu “ As Quatro Estações” começou pela “Primavera”, e muito provavelmente essa famosa composição que o imortalizaria, teria sido escrita na Primavera do longínquo ano de 1726.

A verdade é que, quase trezentos anos depois, essa partitura continua a ter em mim, (em nós ?), uma capacidade sedutora para me apaziguar a alma, me conciliar com o mundo, me tornar sensível ao que me rodeia e me dar alento para tentar arrastar tantos de vós numa onda de partilha e comunhão de que os tempos modernos parecem querer afastar-nos, como se um enorme turbilhão nos arrastasse inexorável e teimosamente para um individualismo egoísta.

Foi ao ouvir o “Allegro” desse Concerto Primaveril, enquanto o carro deslizava rumo á cidade sadina no passado fim-de-semana que cogitei esta crónica que hoje vos ofereço.

Realmente, se seguirmos o exemplo de Vivaldi ( 1678-1741), cuja vida, prolífica digamos (criou em 63 anos de vida mais de 470 concertos) não lhe deu com certeza tempo para perder em minudências, concluiremos que o tempo é precioso e não devemos desperdiçá-lo, sob pena de estarmos a cometer um atentado contra nós e contra todo mundo.

Sendo o tempo, a vida, o bem mais precioso que temos, é uma dor de alma como alguns de nós o não aproveitamos em atitudes positivas, nem que seja, como é o caso, ouvindo boa música e pensando no nosso devir colectivo.

Reparo agora como o Alentejo é lindo nesta época do ano, os campos verdes, flores das mais variadas cores compondo um quadro irrepetível, aqui e ali pintado de exuberância, mais acolá semeado de papoilas e malmequeres, além mais ao longe um espelho de água reflectindo o porte altivo de uns sobreiros, nossa imagem de marca, assinatura do Mestre de cuja paleta saíram as maravilhosas cores e aromas que nos envolvem num abraço quente, prenúncio de um Verão que ainda tarda.

Queira esse mesmo Mestre que o desenvolvimento que tantos desejamos para o Alentejo lhe não roube a beleza, que venha a processar-se de forma harmoniosa, tão harmoniosa quanto o equilíbrio que Vivaldi tão bem soube imprimir ás suas composições.

Como essa mão invisível que miraculosamente suspende no nada a esfera celeste, também o desenvolvimento da nossa terra terá que ser, como magia, sustentado, articulado e definido partindo da riqueza que já temos, truísmo messiânico ao qual só em momentos de rara sensibilidade damos o devido valor.

Mas claro que essa ciclópica tarefa é obrigação de todos nós, vou fazendo a parte que me cabe, mas todos não somos demais para avalizar um futuro colectivo, trilhar caminhos que nos levem ao devir, à mudança, à oportunidade de desenhar com mil flores um arco-íris sobre esta nossa terra, fazer uma festa e com o sorriso de todos pintar um painel, um mural, fixar o momento, recomeçar a história, virar a página, assistir ao início de nova dinastia.

Um painel de azulejos e de aguarelas, cores garridas, um mural incandescente, um crescendo de alegria, girassóis rodopiando, festa com fanfarras, grinaldas de fogo de artificio, gentes ébrias de libertação, dançando a valsas, bandeiras flutuando, e bem no alto, uma estrela cadente simbolizando uma época vil e apagada, pantomina deitada por terra, despeitada.

À beira do Sado, degustei um branco de Palmela, deliciei-me com um sargo grelhado, que isto do Alentejo não são só odores, são sabores, e que sabores !


O meu companheiro, intrigada inicialmente com o meu silêncio, e posteriormente com o meu excessivo palavreado, só compreendeu este verdadeiro estado de alma quando lhe segredei ao ouvido que era melhor ser ele a trazer o carro, não fosse o ticket da portagem codilhar-me, com isso ou com qualquer brincalhão que viesse a fazer-me soprar no balão…

Imagem : Monte Alentejano com Papoilas 2006 - Oleo sobre tela de linho - Salvacao Barreto.jpg

* Nota : Texto já publicado no DS nos fim dos anos 90 / principio do novo século J