Adoro
as roseiras bravas, aquelas centenas de pequenas rosas que lamento não poder
trazer para a minha varanda, como se desse modo pudesse carregar todo o
Alentejo para casa, cobrir com essas rosas as sacadas da cidade, desenhando com
elas céus multicores, dando forma ao mundo, retocando odores, como se estivesse
na minha mão escolher matizes, fazer-nos felizes.
Certamente
que Vivaldi, quando escreveu “ As Quatro Estações” começou pela “Primavera”, e
muito provavelmente essa famosa composição que o imortalizaria, teria sido
escrita na Primavera do longínquo ano de 1726.
A
verdade é que, quase trezentos anos depois, essa partitura continua a ter em
mim, (em nós ?), uma capacidade sedutora para me apaziguar a alma, me conciliar
com o mundo, me tornar sensível ao que me rodeia e me dar alento para tentar
arrastar tantos de vós numa onda de partilha e comunhão de que os tempos
modernos parecem querer afastar-nos, como se um enorme turbilhão nos arrastasse
inexorável e teimosamente para um individualismo egoísta.
Foi
ao ouvir o “Allegro” desse Concerto Primaveril, enquanto o carro deslizava rumo
á cidade sadina no passado fim-de-semana que cogitei esta crónica que hoje vos
ofereço.
Realmente,
se seguirmos o exemplo de Vivaldi ( 1678-1741), cuja vida, prolífica digamos
(criou em 63 anos de vida mais de 470 concertos) não lhe deu com certeza tempo
para perder em minudências, concluiremos que o tempo é precioso e não devemos
desperdiçá-lo, sob pena de estarmos a cometer um atentado contra nós e contra
todo mundo.
Sendo
o tempo, a vida, o bem mais precioso que temos, é uma dor de alma como alguns
de nós o não aproveitamos em atitudes positivas, nem que seja, como é o caso,
ouvindo boa música e pensando no nosso devir colectivo.
Reparo
agora como o Alentejo é lindo nesta época do ano, os campos verdes, flores das
mais variadas cores compondo um quadro irrepetível, aqui e ali pintado de
exuberância, mais acolá semeado de papoilas e malmequeres, além mais ao longe
um espelho de água reflectindo o porte altivo de uns sobreiros, nossa imagem de
marca, assinatura do Mestre de cuja paleta saíram as maravilhosas cores e
aromas que nos envolvem num abraço quente, prenúncio de um Verão que ainda
tarda.
Queira
esse mesmo Mestre que o desenvolvimento que tantos desejamos para o Alentejo
lhe não roube a beleza, que venha a processar-se de forma harmoniosa, tão
harmoniosa quanto o equilíbrio que Vivaldi tão bem soube imprimir ás suas
composições.
Como
essa mão invisível que miraculosamente suspende no nada a esfera celeste,
também o desenvolvimento da nossa terra terá que ser, como magia, sustentado,
articulado e definido partindo da riqueza que já temos, truísmo messiânico ao
qual só em momentos de rara sensibilidade damos o devido valor.
Mas
claro que essa ciclópica tarefa é obrigação de todos nós, vou fazendo a parte
que me cabe, mas todos não somos demais para avalizar um futuro colectivo, trilhar
caminhos que nos levem ao devir, à mudança, à oportunidade de desenhar com mil
flores um arco-íris sobre esta nossa terra, fazer uma festa e com o sorriso de
todos pintar um painel, um mural, fixar o momento, recomeçar a história, virar
a página, assistir ao início de nova dinastia.
Um
painel de azulejos e de aguarelas, cores garridas, um mural incandescente, um
crescendo de alegria, girassóis rodopiando, festa com fanfarras, grinaldas de
fogo de artificio, gentes ébrias de libertação, dançando a valsas, bandeiras
flutuando, e bem no alto, uma estrela cadente simbolizando uma época vil e
apagada, pantomina deitada por terra, despeitada.
À
beira do Sado, degustei um branco de Palmela, deliciei-me com um sargo
grelhado, que isto do Alentejo não são só odores, são sabores, e que sabores !
O meu companheiro, intrigada inicialmente com o meu silêncio, e posteriormente
com o meu excessivo palavreado, só compreendeu este verdadeiro estado de alma
quando lhe segredei ao ouvido que era melhor ser ele a trazer o carro, não
fosse o ticket da portagem codilhar-me, com isso ou com qualquer brincalhão que
viesse a fazer-me soprar no balão…
Imagem : Monte Alentejano com Papoilas 2006 - Oleo sobre tela de linho - Salvacao Barreto.jpg
* Nota : Texto já publicado no DS nos
fim dos anos 90 / principio do novo século J