domingo, 6 de julho de 2014

196 - DEVE SER ELA, É ELA !!!!!!!!! .....


E saí disparado do sofá como impulsionado por uma mola, atravessei a sala a correr e no momento em que me precipitava para o telefone tropecei numa ruga do tapete, dei uma valente topada no pé da mesa, blasfemei, atirei-me ao chão enrolado, agarrado ao pé, as lágrimas desprendendo-se enquanto o tinir do telefone, que não parava, me enlouquecia.

- Bolas !!  Fogoooooooooooooooo !!!

Rangi os dentes e o telefone calou-se. O sangue aflorava por baixo da unha do mindinho, e eu, incapaz de pensar e de me levantar, ruminava contudo na minha precipitação e estupidez. Ela não merecia o sofrimento, não merecia o sacrifício e agora, mais calmo e menos doído, vivia a situação como castigo divino que sobre mim se abatera, à laia de reprimenda das culpas que me atribuía por a vir ignorando nos últimos tempos apesar de, ou por saber de antemão quanto isso a aborrecia e irritava.

Mas o do sinal de chamada não voltara a ouvir-se em todo o dia, somente ficara registada uma chamada da bisavó Concepcion na escassa hora em que adormecera, e por certo, como habitualmente, para saber se estava bem, se não me esquecia de comer, e recomendando-me que me cuidasse, por isso nem lhe ligara de volta.

Já noite abri o correio electrónico.

Como vinha acontecendo nos últimos tempos apaguei sem os abrir mais de vinte emails sem nenhum interesse e concentrei-me nos dois restantes.

Repentinamente senti um aroma forte nas narinas e num instante toda uma catrefada de lembranças me acudiu à memória em catadupa. Como o ventre de uma odalisca dançando, pairava no ar um bálsamo serpenteante que sempre tive dificuldade em situar à esquerda ou à direita de mim por me embriagar os sentidos e embotar a razão. Ou pelo menos assim me pareceu.

Quase de imediato golfando das profundezas da memória, como se tivesse sido ontem, a cama alta, alta e larga, onde tantas vezes me sentira levitar ou flutuar como Moisés nas águas do Nilo há três mil e quinhentos anos, aquele odor trouxe-me lembranças de quando também eu por baixo, sim, debaixo dela, temente, assustado, e aquele aroma ondulando, absorvente, estonteante, anestesiante e paradoxalmente estimulante que me perturbaria durante tantos anos sem me permitir aperceber se temê-lo se agradecê-lo, porque da primeira vez fumarolas como as que em Delfos se libertavam alucinando e levando ao delírio o Oráculo diziam, e afirmavam mesmo ser como quando dos tremores de terra por isso me recordo tão bem, eu criança, debaixo dela, a terra tremendo, o cheiro intenso enrolando-me os sentidos ante o imponderável.

Eu encolhido, temente, debaixo dela, também ela tremendo ao ritmo do ruído surdo vindo das entranhas da terra e abanando as paredes, o chão, e sim bem me lembro, eu debaixo dela, da cama, como o senhor professor Pulga nos tinha recomendado na aula dedicada aos terramotos há tantos tantos lustres.

No primeiro email somente a imagem de um perfume inesquecível e, em negrito, uma frase comercial;

-  Só “SERPENTINE “ Define a fragrância dum perfume como a tua doce rebeldia  e perdura identificando-te como única.

Publicidade pura que somente a curiosidade pelo remetente me levou a abrir. O segundo era bem diferente e pareceu-me premonitório;

- Voltei, aposto que não me esperavas.  

Aquela fragrância voltara agora sob a forma do mesmo olor leve e sedutor, algo mesclado de doce rebeldia que perdurando nos sentidos se identifica e com o qual nos identificamos, me identifiquei eu há vinte, trinta anos, já não eu por baixo dela mas por ela adulado, envolvido, seduzido e remetido ou elevado ou erguido à condição de imortal bem aventurado.

Era já madrugada quando saí, pé ante pé alcancei a rua, entrei no carro e sumi-me sem ruído para não a acordar.

Deixara-lhe sobre a mesinha de cabeceira um post it  cor de rosa em que desenhara dois corações atravessados por uma seta e :

- Bom dia e beijinhos querida Lavínia, gostei da noite amor.

Ela era Júlia, e certamente detestara a minha propositada falha, eu procurava refrear-lhe os ânimos e conter-lhe o ímpeto antes que aquela paixão impossível me arrastasse para o inferno.

Resultou melhor que alguma vez imaginara, contra todas as expectativas ela desaparecera de vez.

  Voltava agora ao fim de trinta anos, só podia ser para de novo me assombrar.