E saí disparado do sofá como impulsionado por uma
mola, atravessei a sala a correr e no momento em que me precipitava para o
telefone tropecei numa ruga do tapete, dei uma valente topada no pé da
mesa, blasfemei, atirei-me ao chão enrolado, agarrado ao pé, as lágrimas
desprendendo-se enquanto o tinir do telefone, que não parava, me enlouquecia.
- Bolas !!
Fogoooooooooooooooo !!!
Rangi os dentes e o telefone calou-se. O sangue
aflorava por baixo da unha do mindinho, e eu, incapaz de pensar e de me
levantar, ruminava contudo na minha precipitação e estupidez. Ela não merecia o
sofrimento, não merecia o sacrifício e agora, mais calmo e menos doído, vivia a
situação como castigo divino que sobre mim se abatera, à laia de reprimenda das
culpas que me atribuía por a vir ignorando nos últimos tempos apesar de, ou por
saber de antemão quanto isso a aborrecia e irritava.
Mas o do sinal de chamada não voltara a ouvir-se em
todo o dia, somente ficara registada uma chamada da bisavó Concepcion na
escassa hora em que adormecera, e por certo, como habitualmente, para saber se
estava bem, se não me esquecia de comer, e recomendando-me que me cuidasse, por
isso nem lhe ligara de volta.
Já noite abri o correio electrónico.
Como vinha acontecendo nos últimos tempos apaguei sem
os abrir mais de vinte emails sem nenhum interesse e concentrei-me nos dois
restantes.
Repentinamente senti um aroma forte nas narinas e num
instante toda uma catrefada de lembranças me acudiu à memória em catadupa. Como o ventre
de uma odalisca dançando, pairava no ar um bálsamo serpenteante que sempre tive
dificuldade em situar à esquerda ou à direita de mim por me embriagar os
sentidos e embotar a razão. Ou pelo menos assim me pareceu.
Quase de imediato golfando das profundezas da memória,
como se tivesse sido ontem, a cama alta, alta e larga, onde tantas vezes me
sentira levitar ou flutuar como Moisés nas águas do Nilo há três mil e
quinhentos anos, aquele odor trouxe-me lembranças de quando também eu por baixo,
sim, debaixo dela, temente, assustado, e aquele aroma ondulando, absorvente,
estonteante, anestesiante e paradoxalmente estimulante que me perturbaria
durante tantos anos sem me permitir aperceber se temê-lo se agradecê-lo, porque
da primeira vez fumarolas como as que em Delfos se libertavam alucinando e
levando ao delírio o Oráculo diziam, e afirmavam mesmo ser como quando dos
tremores de terra por isso me recordo tão bem, eu criança, debaixo dela, a
terra tremendo, o cheiro intenso enrolando-me os sentidos ante o imponderável.
Eu encolhido, temente, debaixo dela, também ela tremendo
ao ritmo do ruído surdo vindo das entranhas da terra e abanando as paredes, o
chão, e sim bem me lembro, eu debaixo dela, da cama, como o senhor professor
Pulga nos tinha recomendado na aula dedicada aos terramotos há tantos tantos
lustres.
No primeiro email somente a imagem de um perfume inesquecível
e, em negrito, uma frase comercial;
- Só “SERPENTINE “ Define a fragrância dum
perfume como a tua doce rebeldia e
perdura identificando-te como única.
Publicidade pura que somente a curiosidade pelo
remetente me levou a abrir. O segundo era bem diferente e pareceu-me premonitório;
- Voltei,
aposto que não me esperavas.
Aquela fragrância voltara agora sob a forma do mesmo olor
leve e sedutor, algo mesclado de doce rebeldia que perdurando nos sentidos se
identifica e com o qual nos identificamos, me identifiquei eu há vinte, trinta
anos, já não eu por baixo dela mas por ela adulado, envolvido, seduzido e
remetido ou elevado ou erguido à condição de imortal bem aventurado.
Era já madrugada quando saí, pé ante pé alcancei a
rua, entrei no carro e sumi-me sem ruído para não a acordar.
Deixara-lhe sobre a mesinha de cabeceira um post
it cor de rosa em que desenhara dois
corações atravessados por uma seta e :
- Bom dia e beijinhos querida Lavínia, gostei da
noite amor.
Ela era Júlia, e certamente detestara a minha propositada
falha, eu procurava refrear-lhe os ânimos e conter-lhe o ímpeto antes que aquela
paixão impossível me arrastasse para o inferno.
Resultou melhor que alguma vez imaginara, contra
todas as expectativas ela desaparecera de vez.
Voltava agora ao fim de
trinta anos, só podia ser para de novo me assombrar.