Mal caiu a noite o senhor Honrado parou o Simca
Ariane 1500 duas vielas abaixo da Travessa do Embuçado, voltou para buscar as
malas sacos e tralha variada recomendando-me :
- Alberto, vai já e não faças barulho.
Eu era um rapazinho com doze ou treze anos, e demorei
outros tantos a entender o porquê de tanto segredo. As tias Teodora e Sofia, meio agachadas nas sombras
da viela, correram em passinhos pequeninos, e sem deixar de bichanar
acomodaram-se, uma no lugar do morto, outra a meu lado, atrás. O senhor Honrado olhou duas vezes por cima do ombro
direito, três sobre o esquerdo e não vendo ninguém meteu-se ao volante e
arrancámos a toda a velocidade, contudo os pneus nem chiaram. Ninguém viu nada cochicharam elas, e eu, igualmente
cochichando :
- Tia tenho vontade de fazer xixi.
- Valha-me Deus Alberto ! Não tiveste tanto tempo
p’ra te lembrares ? Santa paciência, não me digas nada agora que ainda tenho os
nervos à flor da pele !
A tia Sofia era diferente, era a tiazinha boa,
acariciou-me os cabelos e segredou-me, aguenta um bocadinho filho que daqui a
pouco já paramos e tu fazes. O que a tia Teodora tinha a menos em paciência
sobrava a dobrar na Sofia, talvez por não ter nada a esconder, mas a Teodora
exagerava nos cuidados, e eu interrogava-me sobre as razões pelas quais ela e o
senhor Honrado partilhavam e teimavam tantos receios e segredos.
Célere, o carro galgava a estrada, eu olhava a lua contabilizando os marcos quilométricos sobressaindo do luar sob a luz amarela do
Simca. A lua cheia sorria-me, nela via nitidamente estampado
no disco platinado um velho carregando um feixe de lenha. Pendurado no retrovisor pendia dançando um terço com
a medalha de S. Cristóvão, e no tablier um imã segurava uma placa prateada com
a esposa do senhor Honrado ao meio, e uma das gémeas de cada lado dela, na base
uma nuvenzinha plástica branca, encimando tudo o sorriso da santissíma Virgem Maria.
À medida que avançávamos tudo era descrito e
comentado doutoralmente pelo senhor Honrado, lembro-me que era calmo, que tinha
as unhas bem tratadas e envernizadas. Eu esquecera o aperto da bexiga, o mal agora era a
sede, mas claro temia admitir tal, a tia Teodora atirar-me-ia logo com um :
- Meu Deus Alberto ! Haja santa paciência, quando não
é uma coisa é outra, por que não te lembraste em casa antes da viagem ?
Pelo que me calei, voltei à lua, ao terço com o S.
Cristóvão, à placa com a esposa e as filhas do senhor Honrado, quando ele :
- Atravessamos Montemor, a porta iluminada por cima é
o Hospital S. João de Deus, há quatro anos fui ali operado à próstata. E prosseguiu conduzindo devagar até deixarmos a cidade. Não me recordo se depois se calou ou continuou
doutoralmente, descrevendo e enumerando tudo minuciosamente como era seu
hábito, ou se se calou, não lembro mesmo. Nem sequer se a tia Teodora para ele,
como habitualmente :
- Conheces tudo meu querido, sabes tanta coisa meu
xuxuzinho.
Mas a verdade é que não me lembro mesmo. Só me alembra
que quando eu estava de testa colada ao vidro mirando os canhões o senhor Honrado,
criteriosa e pausadamente :
- Atravessamos Vendas Novas, à direita o Regimento de
Artilharia, aqui é que o meu irmão Bernardo que Deus tenha se finou coitado, na
véspera de ser promovido. Foi uma hora de azar, todos temos uma, ainda decorre o inquérito.
- Sesimbra ? Perguntas quanto falta Alberto ? Ainda estamos um
bocadinho longe, vamos aí a um terço do caminho.
E eu imaginava como seria Sesimbra, como seria o mar,
os barcos e a praia, encontraria enterrados e perdidos na areia pauzinhos premiados dos
gelados como achara em Sines ? Nisto aproveitei p’ra fazer xixi, o senhor Honrado
tinha parado o carro num parque na berma da estrada, para arrefecer disse,
enquanto de mãos firmes no tejadilho flectia as costas para lhe passar o
quebranto, dizia ele desculpando-se.
Aproveitei a ida das tias atrás de um monte de
gravilha e de uns bidões de alcatrão e sôfrego bebi toda a água de uma garrafa esquecida
no porta-luvas. Depois, enquanto atrás mirava o vermelho vivo dos farolins
acesos, chutei-a para debaixo do carro e por momentos tive receio que uma roda
pisasse a garrafa e os vidros furassem o pneu, mas nem tive tempo, porque o senhor Honrado, brincando e batendo palmas :
- Andando ! Não podemos atrasar que depois de voltar
ainda quero dormitar um cadito antes de abrir a loja.
O urbano, civilizado, polido e envernizado senhor
Honrado tinha uma loja no centro da cidade. Eu não sabia de quê, mas sei que ia
muitas vezes aos correios pois o ouvia queixar-se sempre das bichas, corrijo, das filas,
teria-me repreendido se me ouvisse, pois naquela altura eu também
teria dito além de teria-me, escrevido, ou há-dem.
Não lembro onde, mas ceámos num grande restaurante,
“Bocage”, reparei que na avenida Luísa Todi porque na curva os faróis do carro
bateram numa placa e mal tive tempo de a ler. Aqui nesta passagem seria corrigido pelo senhor Honrado :
- Bateram não Alberto, incidiram.
E descendo as curvas da serra acrescentou faltar já
bem pouco para Sesimbra. Era noite e pareceu-me uma serra, os travões do carro
chiavam, o senhor Honrado esticando o pescoço com a língua de fora passou todo esse caminho máximos médios máximos médios.
- Detesto conduzir à noite !
Bradou irritado, e foi das poucas vezes que a tia Teodora
ficou calada. Virou-se para trás, encolheu os ombros esbugalhando os olhos mas
não disse nada. A Tia Sofia limitou-se a sorrir. Finalmente o Simca brecou junto ao muro da praia, não via mas
ouvia a rebentação, a casa alugada ficava a uns passos, ninguém me ordenou que
carregasse as malas e fiquei ali ao luar, ouvindo o marulhar.
De uma abertura no sótão pendia uma escada, por ali subia
para a minha cama, as tias ficavam em baixo, e por uma fresta ficava vendo-as
despindo-se antes de dormir. De manhã acordava com os sussurros e os cochichos
delas, abraçadas na cama, aos beijinhos, iluminadas pela claridade do sol matinal
coado pelos buraquinhos do estore, luminosas mas suadas as tias, cansadas mas amigas.
Nunca contei nada a ninguém.
Adorei Sesimbra, dois ou três dias depois chegou a
tia Heliodora e o tio Mateus, em férias de Angola onde ela era professora e ele
engenheiro, o Armandinho ainda nem nascera e os tios vieram de Itália num Fiat
600 Múltipla, que parecia um autocarro e nem havia cá. Foram dias lindos esses, deslumbrantes. Durante toda a quinzena a tia Teodora nem
se lembrou do senhor Honrado, a tia Sofia nunca se esqueceu de mim, um dia
compraram-me uma bola enorme, igual à que estava no meio da praia mas mais
pequena. Compraram a bola e saiu-lhes uma lata de creme com
que se barraram e me besuntavam todo, todos os dias. Ainda tenho essa bola, o azul um pouco desmaiado, mas
as letras brancas ainda se leiem bem. O senhor Honrado
corrigindo-me, lêem Alberto, lêem.
Somente passados uns dez anos voltei a Sesimbra. Sem
estar, estava na mesma, como a lesma, teria dito a tia Sofia.