segunda-feira, 23 de junho de 2014

195 - NA MESMA, COMO A LESMA …



Mal caiu a noite o senhor Honrado parou o Simca Ariane 1500 duas vielas abaixo da Travessa do Embuçado, voltou para buscar as malas sacos e tralha variada recomendando-me :

- Alberto, vai já e não faças barulho.

Eu era um rapazinho com doze ou treze anos, e demorei outros tantos a entender o porquê de tanto segredo. As tias Teodora e Sofia, meio agachadas nas sombras da viela, correram em passinhos pequeninos, e sem deixar de bichanar acomodaram-se, uma no lugar do morto, outra a meu lado, atrás. O senhor Honrado olhou duas vezes por cima do ombro direito, três sobre o esquerdo e não vendo ninguém meteu-se ao volante e arrancámos a toda a velocidade, contudo os pneus nem chiaram. Ninguém viu nada cochicharam elas, e eu, igualmente cochichando :

- Tia tenho vontade de fazer xixi.

- Valha-me Deus Alberto ! Não tiveste tanto tempo p’ra te lembrares ? Santa paciência, não me digas nada agora que ainda tenho os nervos à flor da pele !

A tia Sofia era diferente, era a tiazinha boa, acariciou-me os cabelos e segredou-me, aguenta um bocadinho filho que daqui a pouco já paramos e tu fazes. O que a tia Teodora tinha a menos em paciência sobrava a dobrar na Sofia, talvez por não ter nada a esconder, mas a Teodora exagerava nos cuidados, e eu interrogava-me sobre as razões pelas quais ela e o senhor Honrado partilhavam e teimavam tantos receios e segredos.

Célere, o carro galgava a estrada, eu olhava a lua contabilizando os marcos quilométricos sobressaindo do luar sob a luz amarela do Simca. A lua cheia sorria-me, nela via nitidamente estampado no disco platinado um velho carregando um feixe de lenha. Pendurado no retrovisor pendia dançando um terço com a medalha de S. Cristóvão, e no tablier um imã segurava uma placa prateada com a esposa do senhor Honrado ao meio, e uma das gémeas de cada lado dela, na base uma nuvenzinha plástica branca, encimando tudo o sorriso da santissíma Virgem Maria.

À medida que avançávamos tudo era descrito e comentado doutoralmente pelo senhor Honrado, lembro-me que era calmo, que tinha as unhas bem tratadas e envernizadas. Eu esquecera o aperto da bexiga, o mal agora era a sede, mas claro temia admitir tal, a tia Teodora atirar-me-ia logo com um :

- Meu Deus Alberto ! Haja santa paciência, quando não é uma coisa é outra, por que não te lembraste em casa antes da viagem ?

Pelo que me calei, voltei à lua, ao terço com o S. Cristóvão, à placa com a esposa e as filhas do senhor Honrado, quando ele :

- Atravessamos Montemor, a porta iluminada por cima é o Hospital S. João de Deus, há quatro anos fui ali operado à próstata. E prosseguiu conduzindo devagar até deixarmos a cidade. Não me recordo se depois se calou ou continuou doutoralmente, descrevendo e enumerando tudo minuciosamente como era seu hábito, ou se se calou, não lembro mesmo. Nem sequer se a tia Teodora para ele, como habitualmente :

- Conheces tudo meu querido, sabes tanta coisa meu xuxuzinho.

Mas a verdade é que não me lembro mesmo. Só me alembra que quando eu estava de testa colada ao vidro mirando os canhões o senhor Honrado, criteriosa e pausadamente :

- Atravessamos Vendas Novas, à direita o Regimento de Artilharia, aqui é que o meu irmão Bernardo que Deus tenha se finou coitado, na véspera de ser promovido. Foi uma hora de azar, todos temos uma, ainda decorre o inquérito.

- Sesimbra ? Perguntas quanto falta Alberto ? Ainda estamos um bocadinho longe, vamos aí a um terço do caminho.

E eu imaginava como seria Sesimbra, como seria o mar, os barcos e a praia, encontraria enterrados e perdidos na areia pauzinhos premiados dos gelados como achara em Sines ? Nisto aproveitei p’ra fazer xixi, o senhor Honrado tinha parado o carro num parque na berma da estrada, para arrefecer disse, enquanto de mãos firmes no tejadilho flectia as costas para lhe passar o quebranto, dizia ele desculpando-se.

Aproveitei a ida das tias atrás de um monte de gravilha e de uns bidões de alcatrão e sôfrego bebi toda a água de uma garrafa esquecida no porta-luvas. Depois, enquanto atrás mirava o vermelho vivo dos farolins acesos, chutei-a para debaixo do carro e por momentos tive receio que uma roda pisasse a garrafa e os vidros furassem o pneu, mas nem tive tempo, porque o senhor Honrado, brincando e batendo palmas :

- Andando ! Não podemos atrasar que depois de voltar ainda quero dormitar um cadito antes de abrir a loja.

O urbano, civilizado, polido e envernizado senhor Honrado tinha uma loja no centro da cidade. Eu não sabia de quê, mas sei que ia muitas vezes aos correios pois o ouvia queixar-se sempre das bichas, corrijo, das filas, teria-me repreendido se me ouvisse, pois naquela altura eu também teria dito além de teria-me, escrevido, ou há-dem.

Não lembro onde, mas ceámos num grande restaurante, “Bocage”, reparei que na avenida Luísa Todi porque na curva os faróis do carro bateram numa placa e mal tive tempo de a ler. Aqui nesta passagem seria corrigido pelo senhor Honrado :

- Bateram não Alberto, incidiram.

E descendo as curvas da serra acrescentou faltar já bem pouco para Sesimbra. Era noite e pareceu-me uma serra, os travões do carro chiavam, o senhor Honrado esticando o pescoço com a língua de fora passou todo esse caminho máximos médios máximos médios.

- Detesto conduzir à noite !

Bradou irritado, e foi das poucas vezes que a tia Teodora ficou calada. Virou-se para trás, encolheu os ombros esbugalhando os olhos mas não disse nada. A Tia Sofia limitou-se a sorrir. Finalmente o Simca brecou junto ao muro da praia, não via mas ouvia a rebentação, a casa alugada ficava a uns passos, ninguém me ordenou que carregasse as malas e fiquei ali ao luar, ouvindo o marulhar.

De uma abertura no sótão pendia uma escada, por ali subia para a minha cama, as tias ficavam em baixo, e por uma fresta ficava vendo-as despindo-se antes de dormir. De manhã acordava com os sussurros e os cochichos delas, abraçadas na cama, aos beijinhos, iluminadas pela claridade do sol matinal coado pelos buraquinhos do estore, luminosas mas suadas as tias, cansadas mas amigas. Nunca contei nada a ninguém.

Adorei Sesimbra, dois ou três dias depois chegou a tia Heliodora e o tio Mateus, em férias de Angola onde ela era professora e ele engenheiro, o Armandinho ainda nem nascera e os tios vieram de Itália num Fiat 600 Múltipla, que parecia um autocarro e nem havia cá. Foram dias lindos esses, deslumbrantes. Durante toda a quinzena a tia Teodora nem se lembrou do senhor Honrado, a tia Sofia nunca se esqueceu de mim, um dia compraram-me uma bola enorme, igual à que estava no meio da praia mas mais pequena. Compraram a bola e saiu-lhes uma lata de creme com que se barraram e me besuntavam todo, todos os dias. Ainda tenho essa bola, o azul um pouco desmaiado, mas as letras brancas ainda se leiem bem. O senhor Honrado corrigindo-me, lêem Alberto, lêem.

Somente passados uns dez anos voltei a Sesimbra. Sem estar, estava na mesma, como a lesma, teria dito a tia Sofia.