Pela primeira vez sentia que os seus ciúmes eram
justificados. Não que lhe tivesse dado razões para isso. Eram as circunstâncias
que os explicavam. Diria mesmo que os impunham, e nelas até eu, critico por
excelência dessa excreção sentimental que os ciúmes são, com toda a
probabilidade os teria tido.
- Hoje acordei com ciúmes do meu barrigudinho.
Atirou-me, prendendo-me a atenção com o problema que
neste último mês me afligia, dois dedos de barriga e alguma dificuldade em
abotoar um ou outro par de calças.
Com a mesma ternura com que me cutucava mostrava-me
os chocolates no frigorífico, de novo guarnecido, sabendo como eu lhes sucumbia
depois de almoço, do lanche, e sempre que a carência de nicotina me assaltava.
Eu deixara de fumar mas passara a comer o dobro, e nem sempre o mais
recomendável.
Mas o cerne da questão não são os chocolates, o caju,
as cervejas, os acepipes ou os excessos, são os ciúmes, que pela primeira vez
lhe aceitei com benevolência e não com o indolente desinteresse com que o faria
se a a situação mo exigisse.
Foi assim que naquele dia, antes durante e depois do
pequeno almoço fui instruído acerca de e como evitar, num futuro que se mostra
próximo, mulheres oportunistas, familiares amigos do alheio, ou os cuidados a
ter com a nossa inefável burocracia e a ganância das agências funerárias, uma
panóplia de recomendações que aceitei consternado, incapaz de reagir com
razoabilidade, mas que aceitei humildemente sem retrucar.
Li com atenção e curiosidade, quando me foi dado, um
testamento vital de três ou quatro páginas, amareladas, e preenchi a meia dúzia
de linhas que me cabiam como Procurador de Cuidados de Saúde.
Enquanto tal não deveria ser exigida a minha presença
no notário questionei-me e observei, de qualquer modo se necessário lá iria,
retorqui.
Meticulosamente, como sempre fizera com tudo,
arrumava a vida afim de não deixar assuntos pendentes. A desorganização
exasperava-a, a incapacidade do país afligia-a, a superficialidade das pessoas
consternava-a.
As primeiras torradas a saltar eram sempre minhas,
que as preferia bem quentes, as segundas já vinham acompanhadas de
recomendações, a necessidade de registo no serviço de refeitórios da função
pública, o cuidado a ter com a roupa no arame para que não fosse retirada cedo
demais e ganhasse cheiro, ou o interesse na inscrição atempada nas redes de
cuidados continuados e paliativos do hospital e da misericórdia.
Nalguns casos exigiu-me que tomasse notas, sabe como
sou leviano a guardar determinadas coisas na cabeça e , ah ! O hipermercado
Continente tem agora um novel balcão de take-away simples, barato e atractivo,
muito apelativo, a não esquecer.
Torna-se cada vez mais imperativo tomar as atitudes
correctas, anotar o nome das pessoas certas, cuidar que tudo esteja bem encaminhado
na hora H e providenciar internamento antes de se tornar imperioso que a
dependência exija mais que aquilo que, mesmo apaixonadamente, queiramos e
possamos dar. Ambos sabemos, e estamos cônscios, serem os últimos tempos, dias,
semanas ou meses quem nos porá à prova extraordinariamente. Fazer as malas,
arrumar a vida, abalar, reclama o melhor de nós, quer sejamos o passageiro ou
um simples bagageiro.
Amanhã é dia de inscrição na rede de refeitórios
públicos, não conseguimos fazê-lo online, como habitualmente em Portugal tudo
está eficazmente simplificado para nos complicar a vida. Os serviços abrem às
quartas das 9 às 13 horas, lá iremos, à Pousada dos SSAP ali na rua do
Raimundo, decerto onde funcionavam os escritórios da OSMOP.
Assim ela ir-se-á em paz, disse-me, certa de que não
emagrecerei como um cão e fruirei de refeições quentes, bem confeccionadas e a
preço acessível, saberá que sobreviverei menos permeável a artimanhas de
persuasão, e aí estão os ciúmes a funcionar, acautelando o futuro, resguardando
fidelidades, para que possa ir em paz, quando se for…
Tudo é pensado e ponderado ao pormenor, há muito que
detesta o improviso e como tal acautela cenários possíveis, busca soluções e
faz-me recomendações. Entre outras incumbências uma que muito me impressionou e
comoveu, uma relação, quase uma lista de amigas suas, ou nossas, junto de quem
seria lícito procurar apoio moral se dele precisasse, ou de quem seria pacífico
esperá-lo.
Comovido abreviei o pequeno-almoço, aleguei algo
entalado nos dentes e retirei-me para a casa de banho. Espremi a bisnaga da
pasta raivosamente e senti os olhos marejados de lágrimas.
Naturalmente preocupas-me. E preocupo-me bastante,
por isso nunca te falo de mim, nunca te conto de mim, de mim e dos meus receios,
temo que os meus medos sejam para ti mais uma cruz.
Não quero ficar sozinho, sabes que nos podemos
encontrar sozinhos no meio de um mar de gente. Não que as pessoas fujam de mim
como se tivesse um cancro, mas porque não há ninguém que ocupe o teu lugar.
Sempre foste única, e poli, e super, plus, maxi,
best, better, e grande a comunhão que apurámos. Lembras-te como a brincar te digo
que nem posso pensar alto sem que me apanhes ?
Não há quem ocupe o teu espaço, quem seja capaz, quem
esteja habilitada. Foram muitos anos, conheço-te ao milímetro,
estranharei quaisquer mudanças por mais ínfimas que sejam, não tenho nem há
outra amizade igual à tua. Ninguém me contradiz como tu.
Ninguém, nunca, me amou como tu, com a tua entrega, a
tua dedicação, a tua paciência, devoção, os teus gestos, posições, os gostos de
que eu gosto.
Não irei contar-te de mim, nem tão pouco falar-te de
mim, muito menos queixar-me, sei quão detestas lamúrias, não fazem parte do teu
feitio, nem do meu, como tu interrogo-me, quem, quem irá depois cuidar de mim ?
Irei perder a barriguinha como tantas vezes e a
brincar provocadoramente me atiras ?
E quem irá cheirar-me atrás da orelha, ou
endireitar-me a gola da camisa na hora de sair ?
Desdobrar-me a gola do casaco ou do blusão quando inadvertidamente
enroladas ?
Ou sacudir de mim os pelos da gatinha ?
Sim, quem ?
Se não tu quem que não tu, afinal quem há mais de trinta anos
ao ouvires de meus pais:
- Luisinha você conseguiu fazer do Berto um homem !
levando
a coisa muito a sério assumiste com empenho esse papel a que me encostei, a que
me abandonei,
- Berto olha os cotovelos, tem modos
- Berto não rias mostrando a comida que tens na boca
apruma-te
- Berto fecha a boca não te babes olha que estão a
olhar-te
- Berto não fales alto nem te desfaças a rir olha as
pessoas
maternal
e ternamente recusando perceber que, se contigo, um almoço de amigos deixa de ser
um almoço para passar a uma festa, uma festa onde transgrido os limites da mamã
e despreocupadamente me excedo, precisamente por isso, por estares lá.
Naturalmente preocupas-me. E preocupo-me bastante,
por isso nunca te falo de mim, nunca te conto de mim, nem de mim nem dos meus
receios.
Perturbado apressei o pequeno almoço, desculpei-me com uma qualquer coisa entalada nos dentes e sumi-me na casa de banho. Expeli enraivecido a
pasta da bisnaga forçando-me a esconder de ti estes olhos, gotejando lágrimas.