Os olhos desviaram-se-me ligeiros para
as pernas nuas da jovem condutora, por isso vi mal o braço da companheira viajando
a seu lado, aliás os meus olhos percorreram em segundos todo o carro, que quase parou
debaixo da amoreira para evitar bater no ressalto dos carris. Nesse curto lapso
de tempo registei uma miríade de pormenores, o braço bronzeado, os curtos
calções da condutora e a pele extraordinariamente branca das coxas, que me
distraiu.
Se ainda me lembro d’alguma coisa é da
particularidade daquele braço, e só por os últimos quatro algarismos condizerem com o
ano em que nasci, não fora isso e nem teria fixado decerto um número tão
extenso. Observava eu num relâmpago e com minudência tudo que se me atravessava sob os olhos quando o Tonicha gritou:
- Este é um Alfa Romeo !
- Francês, olhem a matricula !
Rematei-lhe…
Por isso num instante esqueci as coxas
brancas, o número longo tatuado no antebraço da francesa e quedei-me, admirando
nos últimos segundos o vermelho vivo do Alfa Romeo, as linhas esguias e baixas,
surpreendido por ver o vidro dobrado da capota recolhida, que afinal era de
fino plástico explicaram-me posteriormente, ainda recordo a matricula, vermelha
como o carro, e uma mistura de algarismos e letras prateadas sumindo-se num
roncar estrada fora, o pensamento alongando-se-me com o ir do carro, quem
serão as madames, donde virão, pra onde irão ?
E estendido ao comprido sobre o tronco
ou melhor o galho da amoreira, quase sobreposto à estrada, imaginava vidas indo
e vindo, vidas ocupadas, vidas com fito, com partida meio e fim, ou chegada,
enquanto iludíamos o tempo e as horas comendo as amoras, que ao menor
descuido nos desenhavam mapas nas camisolas, ou nos calções, já curtos para a
infância que se despegava de nós como a pele das cobras que volta não volta encontrávamos
nos campos entre duas pedras ou entre estevas ou giestas.
A pulsão da vida desviara-nos dos ninhos da passarada para o mirante da amoreira junto à estrada quando já nem bichos-da-seda
criávamos, vendidas que foram as caixas, os bichos, os casulos, tudo,
desvendado que estava o segredo da seda e das metamorfoses do bicho outros
mistérios nos chamavam, outros segredos por desvendar acicatavam em nós o
desejo e a busca numa demanda cuja tensão, esticada entre a infância que se
perdia e a adolescência que dia a dia se ganhava, vibrava em nós e nos preenchia
de acne, ou de impensadas atitudes, guerras, brigas e desafios, numa constante
comparação e medida de nós mesmos,
- O Cristóvão já deita aguadilha !
Assim como se deitar aguadilha fossem
divisas, ou um posto, ou uma carreira a que se seguiria naquele ritual
iniciático a langonha, que o Barreto já tinha e a quem, aliás, a barba
despontava em cada borbulha do acne.
A copa e os ramos da amoreira eram rampa
de lançamento de querelas e quimeras, não raras vezes dali lancei o pensamento,
como quem deita um boomerang, ou melhor, um papagaio ao vento, dando-lhe guita
até que algo ou alguém me forçasse a puxar-lhe as rédeas.
- Olha um boca de sapo ! Alemão ! Topem
aquela matricula !
E na esteira do boca de sapo as
conversas cavalgavam a técnica, a hidráulica e a aerodinâmica, as suspensões,
ainda não havia airbags e nem sei por que carga de água as conversas iam
invariavelmente parar a amortecedores, a conforto a mamas e a sexo.
Andaríamos pelos treze, catorze, quinze
anos, o sangue fervia-nos nas veias e nas guelras se é que me entendem, a amoreira
era o areópago onde a nossa instrução sentimental e educação sexual davam os
primeiros passos.
Assuntos como um filme visto ou contado
por algum dos mais velhos, experiência com prima, amiga ou vizinha era assunto dissecado
exaustivamente. A esta distância rio-me da nossa ignorância, maior que a soma
da insolência de cada um. Baralhos de cartas, fotos, revistas, desenhos,
pinturas ou livros de mulheres nuas tudo era para ali canalizado e objecto de
grande reflexão e debate.
No fim uma geraldina, tudo nas pívias para nos acalmar a
febre, cada um cuidava de provar a si mesmo e aos outros do que era capaz, e aí
se via quem já, e quem se vinha com mais força, mais deleite, maior quantidade,
mais longe, ou quem somente se ficava pela aguadilha.
Por vezes passavam pegadinhos um
Chevrolet, um Cortina, um MGB ou uma arrastadeira igualzinha à do senhor Assis
que era chefe dos bombeiros, cada um vibrava com as suas próprias preferências,
e era sintomática a diferença entre nós, havendo quem gostasse delas
cheiinhas, de seios grandes, ou magrinhas como as cobras, mais flexíveis, não
que malabarismo, atletismo ou gimnastica fossem predicados ou gostos nossos,
tudo tinha mais que ver com os contorcionismos das nossas mentes jovens e
sonhadoras. No fim destas particularidades vinham as peculiaridades de cada um,
este era bem dotado, aqueloutro já pintava, quer dizer já tinha pelos púbicos,
fulano vinha-se uma, duas, três ou quatro vezes seguidas num quarto de hora, beltrano
assim, sicrano assado…
Depois cresci, fiz-me homem, uma vez na
hora H ainda fugi da Nani, não dessa que pensam, de uma outra, esqueçam, comecei
a ler, a ir ao cinema e a bem dizer foi aí que se me iniciaram as revoluções de
consciência.
Aquele número tatuado, aquele braço,
seria aquela mulher a filha sobreviva da escolha de Sofia e que havia tantos anos me impressionara ?
Nisto um melro mais atrevido pousou no
extremo afastado de um galho, decerto para depenicar as amoras maduras pois ali
as não alcançávamos, o Hernâni fez sinal para que nos calássemos, ninguém mexeu,
apontou a fisga, esticou os elásticos, largou. O melro nem soube o que lhe
aconteceu, caiu no chão sem um pio.
Que espécie de gente será capaz de atitudes
assim ?