A insistência com que fora convidado surtira
efeito e não apareci. Na verdade são raras as vezes que, em ocasiões
semelhantes apareço, e se lá sou visto podem crer que somente por nada haver de
mais interessante com que me entreter. Detesto fingimentos e falsas homenagens,
tanto quanto ambientes mórbidos, mais a mais dois meses atrás estivera com ela.
Uma
marca de vinhos da terra e uma cervejeira muito conhecida, tinham apoiado
amplamente um churrasco organizado pelo moto clube local, como não podia deixar
de ser fui incapaz de decepcionar os amigos e lá estive de corpo e alma, que ao
fim do dia mais pareciam Procústeo tentando à força conciliar o impossível,
todavia mantiveram a simbiose.
O
Galhardas foi visitar o padrinho, eu aproveitei a boleia e atrelei-me a ele, foi
lá que falei com ela, a quem já não via há uns bons anos e de quem só guardo
gratas recordações. Reconheceu-me mal me viu a silhueta entre portas e de
imediato largou um dos seus sorrisos mais francos, daqueles que eu sempre tomara
por inocência e ingenuidade puras. Os seus olhos e o seu sorriso eram
inigualáveis e bastava-me olhá-los para me sentir de novo amado, acarinhado,
mimado, criança.
O carinho dela cavara mais fundo em mim que qualquer outro e as muitas semanas e
por vezes meses que passáramos juntos jamais foram apagados pela distância dos
anos. Ela estava sentada, melhor, refastelada num dos sofás da sala e eu puxara
uma cadeira para a sua beira. Agarrara-lhe as mãos, que até ao fim da conversa,
ou antes da visita, não larguei. Estavam extremamente macias, extremamente
leves, extremamente magras, era contudo o mesmo o calor do seu toque, um calor de que nunca me esquecerei.
Falámos
de imensas coisas, da vida, do passado, do presente e do futuro, tomámos
consciência do natural que seria não voltarmos a ver-nos, pelo que o melhor
seria fazer naquele momento as espedidas. Jurei-lhe que mulher alguma me
acarinhara como ela, e que nem o seu colo esquecera. Rimo-nos de quando
ouvíamos juntos, por motivos diferentes, as radionovelas raianas, ela por
querer saber se Dolores e Marianito cumpririam os laços, eu porque aquele
linguajar estranho e contudo parecido me absorvia com a música do seu palrar,
foi quando ela, entre gargalhadas e sorrisos me confidenciou que se apaixonara
pelo tio Domingos por o ter achado desde sempre muito parecido com aquele
Mariano da radionovela.
-
Enganei-me querido, o tio Domingos saiu-me muito diferente e bem melhor que o
tal Mariano.
Vieram-me
as lagrimas aos olhos e calei-me, esperando oportunidade para mudar o azimute à
conversa.
- A
verdade filho é que, continuou, eu sonhara amiúde com esse Mariano apesar de nunca o
ter visto, porém um dia fui a um funeral e bem a meu lado lá estava ele, o tal
Mariano sonhado, bem mais alto que eu o sonhara. Agradeci a Deus ter dado corpo
ao meu sonho e ideal de homem perfeito, e durante o resto do velório nunca
deixei de o prendar com o sorriso dos meus olhos, que aspergiram sobre ele
todas as promessas que o Senhor, na sua infinita sabedoria, me aconselhou e
consentiu.
- Foi um milagre filho, menos de quinze dias depois estávamos vivendo
juntos e nunca eu imaginara que tal homem viesse a fazer-me tão feliz. O Senhor
Deus tenha bem guardada a sua alma. Verdade que não conheci muitos, mas também
nunca conheci nenhum como o teu tio Domingos.
-
Isso não é nada tia. Também eu tenho uma experiência que nunca contei a
ninguém. Há cerca de quatro anos sonhei duas noites seguidas com uma mulher que
nunca vira na vida. O ano passado fui a um funeral de uma prima em terceiro
grau, que morava no Ribatejo. Quando o corpo desceu à terra olhei em frente e
lá estava a tal mulher, sorridente, que vim a saber ser amiga da minha falecida prima,
e muito rica, riquíssima. Um primo deu-me uma cotovelada e segredou-me;
ainda te hei-de ver casado com aquele pedaço Baião... Então não é que era
precisamente no que eu estava a pensar ? Explicações, não tenho. Levei a
"coisa" para a brincadeira, mas a verdade é que depois disso tenho
sonhado imensas vezes estar ao lado dela num altar. O cérebro é uma máquina que
ainda não conhecemos na totalidade tia, nem nunca conheceremos...
- Eu
nunca gostei de funerais filho, para ser sincera não gostar é pouco, sempre os
detestei, do ambiente de meia-luz ao cheiro das velas, ao convívio artificial,
à incongruência dos presentes. Já viram num velório dizer de qualquer morto o
filho de puta que ele era ? Espero nem te ver lá quando chegar a minha vez querido.
Mais
que uma despedida, ou uma última homenagem aos mortos, parece-me tia que a reunião e presença
num funeral é mera catarse aos vivos, a homenagem seria quando muito dedicada aos familiares
mais próximos, como se fosse medalha atribuída a título póstumo ao falecido,
coisa que a maioria não merecerá. O consolo será pois ágape a repartir entre os
lamurientos presentes, e a nossa presença isso mesmo, isso e uma atenção, ou
consideração, ora sucede que não tenho por hábito consolar qualquer um ou
distinguir com a minha presença e consideração quaisquer que a reclamem, isso é
assunto de minha lavra, e que concedo a bem poucos.
Mas
despedimo-nos ali, porque noutra qualquer ocasião o mais certo seria que não
pudéssemos fazê-lo, por isso lhe disse ter sido uma mulher muito importante e
marcante na minha vida, a primeira que amara sem que nada a isso me tivesse
obrigado, nem o sentimento nem o dever, apenas o coração. Senti que tentava
apertar nas suas as minhas mãos, senti faltar-lhe a força para tal. Abracei-a,
mais para esconder as lágrimas que para retribuir-lhe essa sua carinhosa
intenção e segredei-lhe que jamais havia de esquecê-la.
Saí
de óculos de sol para disfarçar os olhos lacrimejantes e avermelhados depois de
lhe ter jurado quanto a tinha amado e amava ainda.
- És
alto como o tio Domingos filho.
Eu
correspondi com um piscar de olhos e ela ficou sorrindo até que deixei de a
ver.
Durou
pouco mais de dois meses.