Parei
a mota no lugar a elas destinado e, ao levantar a cabeça p’ra retirar o
capacete quedei-me pasmado, olhando a loja em frente, a fachada e o fundo, um
sorriso empático dançando numa boca tinta de vermelho e, assim como que pisando
alfombra ou levitando numa nuvem, senti a ilusória frescura do jardim de
Hespérides enquanto na minha mente um filme antigo era rebobinado e o passado
lembrado como caindo a conta-gotas.
... «Kermesse de France, Phragrancias de Europa
para a mulher ideal, assim mesmo, com ph, montra em vidro negro biselado a
dourado, decerto da mesma idade, Paris,
loucura, anos vinte, Casa phundada em 1927, ... ta explicada a coisa, a coisa e o
estilizado novecentista de uns lábios e de umas pernas no vidro da montra e
cujo significado demorei séculos a
entender, ... os lábios retintos de vermelho da velhinha, teria sido bailarina ?
aprumada, arranjada, linda, já não há velhinhas assim, um dia plof e a loja
para trespasse, mais uma…» * ...
Rejubilei,
e quando acordei mirei tudo com redobrada atenção, já que assistia in vivo à ressurreição de um passado,
agora sem os limos nem as cores esverdeadas que os náufragos e os mortos
invariavelmente arrastam ou trazem agarrados a si.
Depeniquei-me
propositadamente p’ra me confirmar acordado, pois se tratava de caso único nos
anais do esoterismo, cujo karma decerto atrevidamente me convocara para lhe
testemunhar a aura e lhe espalhar a palavra, o conhecimento e a luz delas emanadas. Saibam portanto os eborenses e outros habitantes deste mundo que a
“Kermesse de France” * não morreu, está viva, vivinha da Silva, ou da Costa,
mais linda que nunca e recomenda-se, passai palavra ou copiai e partilhai este
edital.
«Kermesse
de France, Phragrancias de Europa para a mulher ideal» * Não tem já a singeleza
dos antigos dizeres, ou biselados dourados, mas mantém as prateleiras
preenchidas de aromas de encantar, filhos dos mais famosos narizes do mundo,
segundo tive ocasião de constatar.
Não
fora convidado mas não me fiz esperar, de capacete na mão, c’a boca aberta de
deslumbramento, deixei-me levar, deixei-me entrar, recordar, mirar, medir,
comparar, embevecer e conquistar. Há menos folhetos agora, menos desperdício de
papel, logo mais árvores e mais natureza, há modernos telefones, computadores,
programas, tábua de Excel e formação. Há ali muito marketing e muito
profissionalismo, sites, forte presença nas redes sociais, campanhas,
equipamentos, demonstrações, vendas, agressividade, produtividade. Nada parece
ter sido deixado ao acaso.
Enquanto
a cidade continua afundando-se, na gruta de Trofônio, ali assiste-se à
ressurreição dos mortos, ao pulsar da vida, latejando, lutando, persistindo. A
loja mudou de donos, compreensivelmente de marcas, mas não mudou de ramo,
provavelmente nem de clientes, certamente dentro de poucos anos poderá dar-se
ao luxo de comemorar o seu centenário.
Encostado ao balcão eu remirava tudo, uma cliente foi simpática, longa e
exemplarmente atendida pela Marléne de France que, debitando conselhos, olhando o
PC advertia-a para a vantagem das campanhas, atenciosa, solicita, paciente. Tudo isso eu vi, numa inusitada deferência de onde somente me restou ajuizar do
conhecimento personalizado tido da cliente, que amavelmente foi convidada a visitar
e a voltar à loja, e da enorme preparação exigida por tão paciente quão profissional
atendimento.
Ao
fundo dessa loja outra abelha obreira mexia e completava a larga gama de ofertas
da colmeia, enquanto eu, esquecido da exposição do José Cachatra onde
inicialmente a intenção me levara naquela manhã, ali jazia embasbacado, de
máquina fotográfica na mão, preparado pra captar a alquimia do presente,
olhando a sorridente Marléne de France, parecidíssima com a velhinha guardada
nas minhas velhinhas memórias precisamente quando eu um catraio e ela velhinha
coisa nenhuma … «ainda hoje recordo tudo
menos a mulher ideal, que nunca conheci, se me gravou na mente quando do meu
exame de acesso à escola preparatória e nunca mais, ... casei com uma santa mas a
mulher ideal nunca, ainda hoje sonho conhecê-la, não passa de um sonho, já
nessa época a Europa só sonhos, e a única verdade que lembro é a mesma senhorinha
linda que desde esse exame segurava o
leme ao balcão da loja, magra como um fuso e elegante que nem bailarina de
can-can» *
E eu
esperando o alinhamento dos chacras a fim de disparar a máquina e aprisionar para
a posteridade o espírito, a essência da coisa, coisa de que afinal me esquecia,
tão enfronhado quão distraído estava de mim e da coisa em si que quando acordei
pedi à Cátia de France um perfume, “Jardim de Évora”, somente para dar à minha
presença maior peso e solenidade, tndo todavia recebido um serviço completo e, hoje
sei que tal perfume encerra essências alentejanas e mediterrânicas , nasceu em
Chartres, França, a capital do perfume, tendo sido lançado após geminação das
duas cidades.
Meia
hora mais tarde, conversando com alguém que encontrara à saída da exposição do
Cachatra, era-me dito ter a cidade concorrido a verbas dos Fundos Comunitários
Europeus, ou da Fundação Luso Americana Para o Desenvolvimento, c’o fito de
levantar e reparar o piso de quase todas as calçadas e ruas da velha urbe,
velhas de séculos e, mais coisa menos coisa obra para uns dez anos ou mais. A
fonte era suspeita, mas a minha esperança na recuperação do nosso querido burgo
levou-me a acreditar. Secalhando nada acontece aleatoriamente ou por acaso,
secalhando terei mesmo razões para crer no inacreditável.
Na
mudança do século os astros parecem ter-se conjugado de modo especialmente
desfavorável para Évora, a cidade definhou abrupta e visivelmente com más
vibrações desde então. Alimento esperanças que a ressurreição esteja aí, para
que, tal como quando eu gaiato, possa rejubilar como no passado e voltar a ver em cada dia novas lojas e
empresas florescendo como cogumelos. Agora encerram diariamente a um ritmo
alucinante, e não é nenhuma miragem.
Recordo
ainda a abertura das oficina do Xico dos Pombos e do Espingardeiro, até a do
Pássaro Gago, numa ruela apertada e que depois foi passada ao Picaró, como
lembro o tugúrio na rua do Muro de que o Z.L. Zurzica (infelizmente deixou-nos
há bem pouco) transformou numa empresa de eleição, ali mesmo ao lado estava o industrial
mais simpático que conheci, Varela Tenório de sua graça e pessoa nos
antípodas do correctíssimo senhor Abêbora, em cuja oficina no Lº. de S.
Domingos andávamos de patins, tão comprida era.
Secalhando
será verdade que, de cinquenta em cinquenta anos o alinhamento dos planetas
oferece, ou permite que tal conjugação seja a espoleta de mudanças nesse
sentido, e secalhando a morrinha que tomou conta da cidade principie cedendo e
aquela loja seja o primeiro sinal de mudança, de regeneração, de resiliência.
Dantes
vinha gente de Lisboa apostar aqui, o Graça, o Guerra, que com ajuda do
Fernando Maudslay e do Carreira deram mais vida àquela empresa que ritmo hoje presenciamos
numa feira. Depois, mais abaixo, o Rodrigues e o sô Manel mais o Tremezinho
deram um empurrão valente na ajuda à agricultura, e não só eles, os irmãos
Silva atingiram a órbita sideral por esses dias, lançaram-se nos tractores
Hanomag, furgões comerciais, ceifeiras Laverda, tal como o Peleiro (a quem muitos por
ouvirem mal chamavam Poleiro), que desposou o Liberato e em vez de peles se
puseram a vender Toyotas a toda a gente.
Raro
era o dia em que meia dúzia de novas empresas não fossem inauguradas, alguém
que o tente agora e verá os trabalhos em que se mete, pagamentos por conta,
taxas, taxinhas, derramas e regulamentos, não há Município que não caia em cima
do desgraçado, até o Estado, que já não vive à custa de quem pode, agora
complica a vidinha a toda a gente sem excepção, é mais democrático. E dentro
dele a constelação ASAE, um estado dentro do estado. Tornámo-nos um país
enleado nas suas próprias leis e contradições, de tal modo que a iniciativa em
vez de aplaudida acaba por ser combatida.
Antigamente
qualquer um amealhava uns tostões, aventurava-se por sua conta e abria uma
empresa, agora mal ganhará para comer quanto mais para juntar poupanças, isto
se não estiver dependente da sopa dos pobres… Ganhámos, em Portugal acabámos
com todos os capitalistas, agora mendigamos investimento a estrangeiros e
qualquer dia seremos todos metecos deles. Os que “matámos“ eram certamente
capitalistas, mas eram os nossos capitalistas. Não imagino, mas será que ser
escravo do capital estrangeiro é um outro luxo ?…
Deve
ser verdade que a democracia nos fica curta nas mangas, o pior é que está a
matar-nos, mas ao contrário do que eu mesmo imaginara, esta loja sobreviveu à
hecatombe que sobre este país se abateu, é que, sabem, nasceu há mais de cem
anos sob um outro astral…