Picture by Catita (Eborense produzindo arte em Berlin) **
Quando
me viram de braço dado com a Anna no aeroporto do Galeão já eu a conhecia há pelo
menos uns dezassete dias, mais prosaicamente do voo Portugal – Rio, onde eu ia por formação e férias, e ela aguardava ser agraciada pela Academia Brasileira de Filologia com a
Medalha Oskar Nobiling. Portanto aquele bilhetinho com um lindo madrigal por
mim perdido na fila do chek in, nada mais significava que quiasma entre a sua
especialidade e a minha ambição, coisas que somente uma subjectiva fascia
desenharia no pensamento de quem nos olhasse.
Estávamos
pois despedindo-nos entre risos que se humedeciam de lágrimas e lágrimas que esmaltavam nossos sorrisos, havendo razões de sobra quer para festejarmos quer p’ra lamentarmos não por nos termos conhecido mas por nos irmos separar, quem não nos conhecesse
ficaria às voltas com um pensamento ambíguo suspenso entre mãos, há até quem
diga ser a ambiguidade a arte da suspensão.
Ela
vestia como uma sufragista e a ideia de regresso a casa fazia-a sorrir, os
dentes brancos como teclas, ou antes as teclas de quaisquer bons pianos brancas
como os dentes dela, eu desorientado de olhos perdidos e não achados,
procurando-os, desfeito em cinzas, ou em lágrimas desfeito de tanto os procurar sem os achar,
pois sou um individuo coerente até nas minhas contradições e uma vez enervado, rio-me de
um modo trágico, de um modo que só mesmo o trágico provoca.
Passeávamo-nos
de braço dado, ondulando ao sabor do desenho da calçada quando ela referiu
vagamente sabor por sabor preferir pistácio, automaticamente sublinhei a minha preferência
pela baunilha, todavia nem estava calor, aliás dos lados do calçadão soprava
uma ventania que nos deixava mais tremidos e torcidos que na noite anterior, em
que no Maracanãzinho tínhamos assistido a uma actuação dos Secos & Molhados,
tendo ela sentido gelar-se-lhe a nuca apesar de bem abafada por uma quente e
impermeável gola de pele, talvez de raposa.
E já
que falamos em pistácios, baunilha e morangos Anna, que achaste da actuação dos Secos & Molhados ontem
à noite ?
- "Pouco milho p'ra
muito bico, muita caca p'ra tão pouco penico"
respondeu-me ela numa lenta
e repentina exclamação que me apanhou de tal modo desprevenido que inconscientemente mas de imediato retruquei :
- Isso é que é uma resposta
clara ? !
Sabes
meu caro amigo vou ser clara para ti, pegar a faca pelo cabo, a espada pelo
punho ou o problema do concerto pela cauda pois já vi que tu detestas o caos,
gostas de tudo arrumadinho, na tua idade também eu era assim, depois conclui
que todo o conflito imposto pela organização ou arrumação das coisas deriva da
multiplicidade dos pontos de vista, é aí que nasce a desordem. Aquele concerto
não foi mais que uma panóplia desordenada de canções, diria mais, houve ali
pouco objecto para muito objectivo e uma ambição nos objectivos dispondo de bem poucos objectos.
OK
está bem, talvez tenhas razão, sempre ouvi dizer a respeito de elogios ser melhor
merecê-los sem os ter que tê-los sem os merecer, faltou ali um guião sim, e o
espectáculo perdeu velocidade, embalagem, vibração e nesse item não serei eu a
dar-lhes o meu rapapé. Isto ia eu falando embalado nas minhas apreciações quando ela
me cortou a palavra cortesmente, assim como a quilha de um barco corta as ondas
mansas:
- Os espelhos reflectem sem
falar, a populaça fala sem reflectir, o concerto foi uma porcaria, mais me
pareceu uma reunião de intelectuais, onde tudo soa sempre a falso, os Secos
& Molhados já se deitaram à sombra da bananeira, estão vivendo da fama, e o
povinho aplaude porque já foi condicionado a aplaudi-los foi o que foi…
- Talvez tenhas razão Anna,
sabes, tive um professor de Introdução à Politica que não se cansava de nos
dizer, “Se a coacção existe é preciso combatê-la, mas se não existe rapidamente
é criada. Na escala dos valores o que não pende, depende“ e eu cada vez que o
ouvia lembrava-me daquela do horror ao vazio, tudo tem horror ao vazio e alguém
preencherá o espaço que cada um de nós desdenhar. Como se o mundo fosse um
tapete, melhor, uma tapeçaria, uma tela gigante, como se o mapa de Piri Reis estivesse ali esperando ser pintado e, se não avanças tu alguém avançará...
- Pois é meu querido amigo, mas
tu já estás a exceder-te, a pisar o tapete, já deliras como se fosses num
tapete voador e quem vai tirar-te o tapete debaixo dos pés sou eu senão já não
te calas, é tarde, arrefeceu bastante, mais que certo o voo ter sido adiado,
por mim a conversa do concerto está terminada, a arte é uma brincadeira e o
público não passa duma família de larvas.
Ela tinha razão, além de ser tarde era um daqueles
casos em que melhor seria pensar onde cair morto não fosse eu cair num sitio
desaconselhável, ou no regaço dela por exemplo, dela porque cerimoniosamente a via
como minha mestra, embora me sentisse perseguido até ao complexo de
inferioridade e, a menos que ela o quisesse, seria difícil encontrarmos naquela
noite a harmonia das esferas que outras ocasiões tinham consentido, pelo que me
limitei a ser o cavalheiro que acompanha a dama ao hotel e ao quarto, quando, para enorme surpresa minha colocou o braço sobre os meus ombros com perturbante candura e:
- Detesto a solidão, as
sombras arrefecem-me a alma, entra comigo neste quarto minguante, sê o meu sol por um instante.
Dizem
que quando nos antípodas as borboletas batem as asas tal cousa pode gerar um
tornado deste lado, a verdade é que na presença dela mais fácil seria senti-las esvoaçando no meu estômago, sempre meus olhos por ela tornados indiscretos, me
fizeram senti-los como sendo uns olhos de vidro, uns olhos pisa papeis, cor daquele vidro fenício
que muitos nem conhecemos, uns olhos poliédricos como os d’alguns insectos, tudo
mirando com manifesta intenção de caçar a tal borboleta azul do outro
hemisfério. Por mim estava capaz de abrir a alma por ela, rasgando-a na Santíssima Trindade se
necessário fosse.
Certo que ela nunca me dera esperança nenhuma em especial, mas
não ter nenhuma em especial para mim significava especialmente que me restavam todas
as outras, que todas eram possíveis. Por vezes é preciso que vejamos tudo a uma
nova luz, quantas vezes não se torna forçoso ver a luz das trevas ? Comunicar
por radiações cósmicas ? Alimentar o mantra, o karma, a aura. Às tantas dei comigo pensando de mim para mim que Anna
era linda, de cabelo azul e olhos castanhos ou versa-vice, e igualmente uma fera,
uma leoa, tudo isso mas também uma implacável caçadora de homens e, confesso-vos
ter sentido alguma consolação ao imaginar-me perseguido por uma mulher nascida
sob o signo do Leão, afinal era ela quem repetidamente afirmava:
- “A amizade é um sentimento
de difícil definição. Na prática porém todos concordam que ela se traduz acima
de tudo por serviços prestados.“
Era
claro para mim ser mais fácil concordar com ela que encontrar um nocturno de
Chopin às duas da manhã, por isso dei-lhe a mão ao entrarmos no quarteirão do
Tropicana Village Hotel o destino dela, e a que ela reagiu graciosamente:
- Obrigado pela mãozinha querido, e como desejas que a faça ? Com grão? Guisada ? Gratinada ? Assada ? À
jardineira ?
Rimo-nos
ambos da gracinha, rindo alto, demasiado alto para a hora tardia e despertando
os ânimos de um rafeiro mimado que se nos dirigiu latindo ameaçador e raivoso.
-
Mãozinha a esta hora não querido, é coisa pesada, mas só para vingar esse rafeiro comerei de bom grado um
cachorro quente.
As
borboletas primeiro e o cachorro com mostarda depois puseram-me o estômago igualmente
latindo por coisa quente. Após comermos retomei a direcção do
Tropicana e com a noite minguando bastante dei-lhe de novo o braço e fui para
casa com ela, sim, porque ambos dispúnhamos de hotel na mesma rua.
Na
noite enevoada Anna inspirava-me porém a mesma ternura de todos os dias, coisa
difícil de inspirar a ternura, se o não sabem ficai sabendo-o, é densa e pesada
como o nevoeiro. Enevoado eu, sabia não ser um avançado metrossexual, também
não era de modo nenhum um cavernícola retrossexual, todavia na sua presença sentia-me,
embora constrangido, um sapiosexual assumido aguardando que entre nós qualquer fase harmoniosa, mesmo póstuma, se estabelecesse e nos imortalizasse neste
universo em que para tal, depois de Mercúrio deveríamos seguir em frente em direcção ao sol até
encontrarmos Vénus de Milo, onde viraríamos então à esquerda.
Picture by Jorge Sistelo Lx ***
* NOTA: Este pequeno texto foi pensado e escrito como uma pequena, simbólica e singela homenagem a Ana Hatherly, para assinalar a efeméride da distinção por ela recebida da Academia de Filologia no Rio de Janeiro. Idealizei-o tentando ao máximo socorrer-me do seu estilo, da sua linguagem, do vocabulário, de contradições e jogos linguísticos que ela teria usado, ela que pintava paisagens com palavras. Devo ter sido das primeiras pessoas fora da comitiva (ela diria fora da camarilha) a felicitá-la. Paz à sua alma.
https://youtu.be/-zLicyzaH5A
** https://www.facebook.com/wazzupcatita/?fref=ts a Pequena desta foto é a artista Catita, filha da minha amiga Rosa Gouveia Catita, e que emigrou para Berlin onde se encontra produzindo arte. Felicidades para ela.
*** https://www.facebook.com/Jorge-Sistelo-1706530189571287/?fref=ts
http://observador.pt/2015/08/05/morreu-a-escritora-e-artista-visual-ana-hatherly/
** https://www.facebook.com/wazzupcatita/?fref=ts a Pequena desta foto é a artista Catita, filha da minha amiga Rosa Gouveia Catita, e que emigrou para Berlin onde se encontra produzindo arte. Felicidades para ela.
*** https://www.facebook.com/Jorge-Sistelo-1706530189571287/?fref=ts
http://observador.pt/2015/08/05/morreu-a-escritora-e-artista-visual-ana-hatherly/
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/morreu-ana-hatherly-a-pintora-da-palavra-1704158
https://mentcapto.blogspot.pt/2018/02/487-dificil-arte-de-ver-e-de-olhar.html
https://mentcapto.blogspot.pt/2018/02/487-dificil-arte-de-ver-e-de-olhar.html