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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

487 - A DIFICIL ARTE DE VER E DE OLHAR * ...


Anote aí menino, é da discussão que nasce a luz, antes dela as trevas, o caos, e não atingir a luz ou não ver é como sendo cego, você passa ao lado e não vê. Tudo isto me ia ela dizendo calma, serena e maternalmente. Ela a Ana H., dona dum olhar aguçado, enquanto deambulávamos distraídos pelo calçadão.  

Era domingo e aquele era seu modo de dar aprovação e concordância a um curso de formação que ali me levara, nada mais que um mestrado dedicado ao tema da observação, isto é dedicado a olhar, a ver, à visão, no sentido de construir perfis e teorias baseadas em factos observáveis, mensuráveis e palpáveis, os quais sem um apurado treino escapariam ou passariam despercebidos ao mais atento que ao lado deles passasse ou os pisasse.

 Ana H. tinha olho de milhafre, ela que era escritora e pintora, tendo um pé na fotografia e outro no cinema, não podia dar-se ao luxo de ver mal, via bem melhor que um falcão ter-lhe-ei dito uma ou outra vez gabando-a e reconhecendo em simultâneo quanto com ela também aprendera por aqueles dias, aprendizagem extra formação, isto é fora da formação oficial que tão longe me levara e em que o destino quisera, talvez como partida colocar-me no colo dela, capaz de ser minha mãe.


Estaríamos, se a memória me não falha por volta de 78, e enquanto a academia carioca me habilitava na difícil arte de ver, me preparava ou capacitava para transformar a informação colhida em conhecimento, me ensinava onde a procurar e a colher para seguidamente a transformar, Ana H. nas horas vagas fazia com que eu chegasse mais longe e transformasse por sua vez, ou por minha vez esse conhecimento em sabedoria.

Como ela bem dizia e não se cansava de o dizer, “a realidade só se mostra a quem esteja preparado para a ver” o que não deixava de ser uma grande verdade, a informação estava acessível mas almas haveria que nem a saberiam ver, seleccionar ou colher, repetia. É preciso ter olho de falcão, ou de milhafre, e foi por ela que fiquei sabendo e conhecendo uma curiosa teoria que em Portugal sempre foi desconhecida ou ignorada, os aborígenes australianos conhecem-na há quarenta mil anos. Ana H. devia andar pelos quarenta e cinco, portanto não teria tido conhecimento dela há mais tempo que isso e, segundo ela, existem três espécies de aves cujo modo de espantar a caça e caçar no mínimo nos espantará.


São elas o milhafre de assobio, o falcão castanho e o milhafre negro, esta última uma espécie migratória que pode ser encontrada em Portugal e aqui faz ninho. Carregam no bico tições ardendo, sobem às alturas e largam-nos, incendiando florestas e savanas, espantando a caça e caçando-a com extrema e facilitada facilidade, redundância de Ana H. que com elas gostava de brincar. Claro que a teoria tem o seu quê de rebuscada em demasia para as nossas mentes dizia ela rindo. Os indígenas australianos conheceram-na e confirmaram-na há quarenta mil anos, é só um aparte, quem vai acreditar em selvagens ? Mas eles sabem, eles viram, eles tiraram-se de dúvidas, tiveram tempo para isso, adiante, quem não tem olho é como quem não vê, para os tugas toda esta psicologia é uncanny, fazes muito bem em treinar o olhar filho, quem não vê é como quem não sabe.

Naturalmente esta sua aprovação tácita tinha o condão de me deixar mais atento nas aulas frequentadas de segunda a sexta, em que treinava o olhar, apurava teoricamente o treino de ver, onde encontrar o que deveria olhar e observar, o extrapolar do observado ou visto, quem, quando, quantos, como, para onde, em que direcção, carregados, leves, descalços, calçados, mirar, apalpar os restos duma fogueira, analisar uma beata, um maço de tabaco amassado e atirado fora por descuido, uma carteira de fósforos inadvertidamente perdida, excrementos humanos, seu aspecto e dureza, o factor tempo, um botão caído, um fósforo queimado, o reflexo dum relógio, cheiro a tabaco no ar, pegadas, rodados, terra remexida, o nada, o silêncio das aves, o piar dos pássaros, brilhos na noite, fumaça no horizonte, a marca duma mijadela, os vários níveis de rastos sobrepostos, o sentido em que aponta um galho partido, ou a erva pisada, tudo isto nós estudávamos a semana inteira p’ra depois num breve fim de semana Ana H. me explicar que pela inclinação das pinceladas num quadro se poderia adivinhar quem o pintara, ou que há quarenta mil anos o homem pré-histórico já pintava paredes nas cavernas, deixando pistas, rastos, círculos principalmente, por serem fáceis e serem simbólicos, símbolos aos quais os tolinhos de hoje e dos discos voadores atribuem a classificação de testemunhos de aliens aterrissando e visitando a Terra.

 E quem sabe se não seriam mesmo discos voadores ?


Mais tarde, enquanto estendíamos os pés e fumávamos um baseado saltava para a Alta Idade Média e para o Renascimento, época onde ou em que, jurava ela, continuámos com os círculos, mas mais aprimorados, renascidos da cultura da Grécia clássica e da romana antiga, dizia ela que pelas alturas em que Portugal nascia, séculos XII e XIII apareceram as rosáceas, círculos enriquecendo a arquitectura, primeiro na romana depois com vitral na gótica, posteriormente os vitrais em paredes inteiras, a Banda Desenhada desse tempo e o modo de transmissão do conhecimento. Lá está dizia ela entusiasmada, a banda desenhada do vitral transmitia informação era o catecismo dessa era, ninguém sabia ler mas todos tinham dois olhos, viam, a visualização antecedeu em milénios a escrita filho, e pintar é mostrar algo, por isso eu pinto, mas a escrita não me chega, não me enche, não me preenche, escrevo, pinto, fotografo, faço cinema, levar as pessoas à sabedoria dá trabalho, o conhecimento é matéria densa, pesada, consistente, não é para todos sabias ?

Ela regressou ao país antes de mim, acompanhei-a até ao Galeão, fez o check-in e despedimo-nos com lágrimas nos olhos, nunca mais nos vimos, falámo-nos uma ou duas vezes pelo telefone e com intervalos de três ou quatro anos entre cada chamada, eu aprendi a ver, aprender a ver manteve-me vivo, Ana H. pintou, escreveu, fotografou e filmou o que queria que víssemos, ela que tinha um olhar de falcão, incisivo, penetrante, penetrou-me a alma, ficou-me no coração, jamais a esquecerei, nunca a esqueci, nem nos piores dias daquela terra sem grei.

O meu destacamento, mau grado o risco acrescido p'lo tipo de terreno que pisávamos e o perigo derivado da natureza das operações desenvolvidas, registou sempre pouquíssimas baixas, e nisso foi único. Obrigado Ana H., porque também tu me ensinaste a ver. E a olhar e a ver os outros, ver como caminham, como falam, gesticulam, as pausas que fazem, as contradições, atitudes, maneirismos, pancas, tiques, taras, vestimentas, modas, manias, hábitos, disposições, humores, cultura, conhecimentos, escrita, caligrafia, estrutura das frases, incoerências, inconstâncias, contradições, polaridades, reticências, repetições, silêncios, as pessoas são um livro aberto, há que saber olhar e ver, há que saber lê-las...  





quarta-feira, 18 de maio de 2016

347 - IMPROBABILIDADES, homenagem singela e simbólica a Ana Hatherly*, que pintava com palavras...

 Picture by Catita (Eborense produzindo arte em Berlin) **

Quando me viram de braço dado com a Anna no aeroporto do Galeão já eu a conhecia há pelo menos uns dezassete dias, mais prosaicamente do voo Portugal – Rio, onde eu ia por formação e férias, e ela aguardava ser agraciada pela Academia Brasileira de Filologia com a Medalha Oskar Nobiling. Portanto aquele bilhetinho com um lindo madrigal por mim perdido na fila do chek in, nada mais significava que quiasma entre a sua especialidade e a minha ambição, coisas que somente uma subjectiva fascia desenharia no pensamento de quem nos olhasse.  

Estávamos pois despedindo-nos entre risos que se humedeciam de lágrimas e lágrimas que esmaltavam nossos sorrisos, havendo razões de sobra quer para festejarmos quer p’ra lamentarmos não por nos termos conhecido mas por nos irmos separar, quem não nos conhecesse ficaria às voltas com um pensamento ambíguo suspenso entre mãos, há até quem diga ser a ambiguidade a arte da suspensão.

Ela vestia como uma sufragista e a ideia de regresso a casa fazia-a sorrir, os dentes brancos como teclas, ou antes as teclas de quaisquer bons pianos brancas como os dentes dela, eu desorientado de olhos perdidos e não achados, procurando-os, desfeito em cinzas, ou em lágrimas desfeito de tanto os procurar sem os achar, pois sou um individuo coerente até nas minhas contradições e uma vez enervado, rio-me de um modo trágico, de um modo que só mesmo o trágico provoca.

Passeávamo-nos de braço dado, ondulando ao sabor do desenho da calçada quando ela referiu vagamente sabor por sabor preferir pistácio, automaticamente sublinhei a minha preferência pela baunilha, todavia nem estava calor, aliás dos lados do calçadão soprava uma ventania que nos deixava mais tremidos e torcidos que na noite anterior, em que no Maracanãzinho tínhamos assistido a uma actuação dos Secos & Molhados, tendo ela sentido gelar-se-lhe a nuca apesar de bem abafada por uma quente e impermeável gola de pele, talvez de raposa.

E já que falamos em pistácios, baunilha e morangos Anna, que achaste da actuação dos Secos & Molhados ontem à noite ? 

- "Pouco milho p'ra muito bico, muita caca p'ra tão pouco penico"

respondeu-me ela numa lenta e repentina exclamação que me apanhou de tal modo desprevenido que inconscientemente mas de imediato retruquei :

- Isso é que é uma resposta clara ? !

Sabes meu caro amigo vou ser clara para ti, pegar a faca pelo cabo, a espada pelo punho ou o problema do concerto pela cauda pois já vi que tu detestas o caos, gostas de tudo arrumadinho, na tua idade também eu era assim, depois conclui que todo o conflito imposto pela organização ou arrumação das coisas deriva da multiplicidade dos pontos de vista, é aí que nasce a desordem. Aquele concerto não foi mais que uma panóplia desordenada de canções, diria mais, houve ali pouco objecto para muito objectivo e uma ambição nos objectivos dispondo de bem poucos objectos.

OK está bem, talvez tenhas razão, sempre ouvi dizer a respeito de elogios ser melhor merecê-los sem os ter que tê-los sem os merecer, faltou ali um guião sim, e o espectáculo perdeu velocidade, embalagem, vibração e nesse item não serei eu a dar-lhes o meu rapapé. Isto ia eu falando embalado nas minhas apreciações quando ela me cortou a palavra cortesmente, assim como a quilha de um barco corta as ondas mansas:

- Os espelhos reflectem sem falar, a populaça fala sem reflectir, o concerto foi uma porcaria, mais me pareceu uma reunião de intelectuais, onde tudo soa sempre a falso, os Secos & Molhados já se deitaram à sombra da bananeira, estão vivendo da fama, e o povinho aplaude porque já foi condicionado a aplaudi-los foi o que foi…

- Talvez tenhas razão Anna, sabes, tive um professor de Introdução à Politica que não se cansava de nos dizer, “Se a coacção existe é preciso combatê-la, mas se não existe rapidamente é criada. Na escala dos valores o que não pende, depende“ e eu cada vez que o ouvia lembrava-me daquela do horror ao vazio, tudo tem horror ao vazio e alguém preencherá o espaço que cada um de nós desdenhar. Como se o mundo fosse um tapete, melhor, uma tapeçaria, uma tela gigante, como se o mapa de Piri Reis estivesse ali esperando ser pintado e, se não avanças tu alguém avançará...


- Pois é meu querido amigo, mas tu já estás a exceder-te, a pisar o tapete, já deliras como se fosses num tapete voador e quem vai tirar-te o tapete debaixo dos pés sou eu senão já não te calas, é tarde, arrefeceu bastante, mais que certo o voo ter sido adiado, por mim a conversa do concerto está terminada, a arte é uma brincadeira e o público não passa duma família de larvas.

 Ela tinha razão, além de ser tarde era um daqueles casos em que melhor seria pensar onde cair morto não fosse eu cair num sitio desaconselhável, ou no regaço dela por exemplo, dela porque cerimoniosamente a via como minha mestra, embora me sentisse perseguido até ao complexo de inferioridade e, a menos que ela o quisesse, seria difícil encontrarmos naquela noite a harmonia das esferas que outras ocasiões tinham consentido, pelo que me limitei a ser o cavalheiro que acompanha a dama ao hotel e ao quarto, quando, para enorme surpresa minha colocou o braço sobre os meus ombros com perturbante candura e:

- Detesto a solidão, as sombras arrefecem-me a alma, entra comigo neste quarto minguante, sê o meu sol por um instante.

Dizem que quando nos antípodas as borboletas batem as asas tal cousa pode gerar um tornado deste lado, a verdade é que na presença dela mais fácil seria senti-las esvoaçando no meu estômago, sempre meus olhos por ela tornados indiscretos, me fizeram senti-los como sendo uns olhos de vidro, uns olhos pisa papeis, cor daquele vidro fenício que muitos nem conhecemos, uns olhos poliédricos como os d’alguns insectos, tudo mirando com manifesta intenção de caçar a tal borboleta azul do outro hemisfério. Por mim estava capaz de abrir a alma por ela, rasgando-a na Santíssima Trindade se necessário fosse. 

Certo que ela nunca me dera esperança nenhuma em especial, mas não ter nenhuma em especial para mim significava especialmente que me restavam todas as outras, que todas eram possíveis. Por vezes é preciso que vejamos tudo a uma nova luz, quantas vezes não se torna forçoso ver a luz das trevas ? Comunicar por radiações cósmicas ? Alimentar o mantra, o karma, a aura. Às tantas dei comigo pensando de mim para mim que Anna era linda, de cabelo azul e olhos castanhos ou versa-vice, e igualmente uma fera, uma leoa, tudo isso mas também uma implacável caçadora de homens e, confesso-vos ter sentido alguma consolação ao imaginar-me perseguido por uma mulher nascida sob o signo do Leão, afinal era ela quem repetidamente afirmava:

- “A amizade é um sentimento de difícil definição. Na prática porém todos concordam que ela se traduz acima de tudo por serviços prestados.“

Era claro para mim ser mais fácil concordar com ela que encontrar um nocturno de Chopin às duas da manhã, por isso dei-lhe a mão ao entrarmos no quarteirão do Tropicana Village Hotel o destino dela, e a que ela reagiu graciosamente:

- Obrigado pela mãozinha querido, e como desejas que a faça ? Com grão? Guisada ? Gratinada ? Assada ? À jardineira ?

Rimo-nos ambos da gracinha, rindo alto, demasiado alto para a hora tardia e despertando os ânimos de um rafeiro mimado que se nos dirigiu latindo ameaçador e raivoso.

 - Mãozinha a esta hora não querido, é coisa pesada, mas só para vingar esse rafeiro comerei de bom grado um cachorro quente.

As borboletas primeiro e o cachorro com mostarda depois puseram-me o estômago igualmente latindo por coisa quente. Após comermos retomei a direcção do Tropicana e com a noite minguando bastante dei-lhe de novo o braço e fui para casa com ela, sim, porque ambos dispúnhamos de hotel na mesma rua.

Na noite enevoada Anna inspirava-me porém a mesma ternura de todos os dias, coisa difícil de inspirar a ternura, se o não sabem ficai sabendo-o, é densa e pesada como o nevoeiro. Enevoado eu, sabia não ser um avançado metrossexual, também não era de modo nenhum um cavernícola retrossexual, todavia na sua presença sentia-me, embora constrangido, um sapiosexual assumido aguardando que entre nós qualquer fase harmoniosa, mesmo póstuma, se estabelecesse e nos imortalizasse neste universo em que para tal, depois de Mercúrio deveríamos seguir em frente em direcção ao sol até encontrarmos Vénus de Milo, onde viraríamos então à esquerda.  

Picture by Jorge Sistelo Lx ***

* NOTA: Este pequeno texto foi pensado e escrito como uma pequena, simbólica e singela homenagem a Ana Hatherly, para assinalar a efeméride da distinção por ela recebida da Academia de Filologia no Rio de Janeiro. Idealizei-o tentando ao máximo socorrer-me do seu estilo, da sua linguagem, do vocabulário, de contradições e jogos linguísticos que ela teria usado, ela que pintava paisagens com palavras. Devo ter sido das primeiras pessoas fora da comitiva (ela diria fora da camarilha) a felicitá-la. Paz à sua alma.



https://youtu.be/-zLicyzaH5A

** https://www.facebook.com/wazzupcatita/?fref=ts  a Pequena desta foto é a artista Catita, filha da minha amiga Rosa Gouveia Catita, e que emigrou para Berlin onde se encontra produzindo arte. Felicidades para ela.

*** https://www.facebook.com/Jorge-Sistelo-1706530189571287/?fref=ts


http://observador.pt/2015/08/05/morreu-a-escritora-e-artista-visual-ana-hatherly/