Chegara
perto de mim a todo o vapor, ofegante, nem bom dia nem boa tarde, nem olá, nem
como vais ? Eu nem a entendia c’a pressa de falar e de se impor, recomendei-lhe
calma, c’aguentasse os cavais. Não me pediu segredo nem dinheiro, pois é, é inacreditável, mas solicitou-me urgência, a mim, que descendo de um
bufarinheiro e tal bastou p’ra me irritar, que impertinência. Urgência era de
quando eu acreditava haver nas coisas principio meio e fim, urgência era quando
cria que o mundo girava declinado simplesmente por cortesia, urgência era no tempo em que se ouviam
as musas nos jardins, agora, agora se me querem ofender peçam-me urgência, mas
urgência por quê ? E para quê ?
Urgência
no meio desta demência é incongruência, confusão, absurdo, qual a nexexidade
dela neste mundo agiota onde não bate a bota com a perdigota, mundo dividido,
encantado, poliglota, sem bases, abstruso e fora de linha, pelo que me forcei a
alhear-me dela, repetitiva, insistente e chata até ao tutano. Com esta idade
podia ser um Picasso, um Matisse, Salvador Dali, um qualquer. Algo se passara
com ela que ninguém aprofundara. Nem quando enlouquecera. Crucificaram-na.
São
as capas dos jornais quem hoje me convoca, Teixeira dos Santos vigiando o
desempenho da CGD, a raposa guardando o galinheiro, Pedro Guterres contratado
pela Mota-Engil, bendita a pátria que tais filhos tem e para bem dos quais
somos imolados.
Lembro-me
dela desde há mais de vinte e tal anos, a esperança nos olhos, a magia nas
mãos, sonhos em ebulição, o céu como limite. Ainda falei com o pai, Ermelinda fora
crucificada, ainda lhe disse que se fosse comigo iria lá abaixo ao Algarve
partir a cara ao tipo, porém sempre fora um pai com mais garganta que cabeça;
- E
depois ? Um professor não tem sempre
razão ?
Respondera-me.
Respondera-me.
De
nada teria valido ter-lhe dito que não, de nada teria valido ter-lhe dito que
naquele capitulo ser até muito raro terem razão. Não é a arte sobejamente
subjectiva, furtando-a portanto e naturalmente aos cânones de uma razão
preconceituosa ?
Mas,
apertado entre subjectividade e cânones, esse pai ficara como ficam agora os
clientes ou consumidores perante os caixas dos supermercados, quando a
maquineta lhes pergunta após terem inserto o cartão multibanco;
- A
crédito ou a débito ?
Ele
inscrevia-se naquela folgada percentagem dos que não sabendo uma coisa nem
outra e perante a pressão da fila em espera respondia sim. A ignorância não se
publicita, a vida não é o varão d’uma discoteca e quando o banco lhe pede
contas e as vai prestar, esclarece-as no segredo dos gabinetes e orgulha-se por
a sua reputação não ser matéria do domínio público, nem sair beliscada apesar
dos juros lhe custarem os olhos da cara.
A
cara, isso, eu ter-lhe-ia ido à cara, crucificou-a, ele teria que me explicar,
e não só a mim o que dissera à miúda, não se desfaz um sonho, não um professor,
ainda por cima munido de uma subjectividade imprópria para a questão e usando
de violência psicológica sobre uma adolescente que estava incumbido de formar e
não de confundir. Era um artista iluminado certamente. Não se faz. As duas mãos
estampadas naquela cara seria o mínimo que o pai devia fazer-lhe, talvez mesmo
partir-lhe o nariz, fazê-lo sangrar, para ele aprender a ser homenzinho. Era por
certo um professor fechado, um artista iluminado, imagino-o apreciador de cores
fortes, de traços definidos, apreciador de vinhos, e de direitos, aposto que nunca falta
a uma manifestação.
O
maior problema desta crise nem é a obscena promiscuidade com que a matilha
politica suga tudo à sua volta sem deixar nada para os outros, é que os outros
lho consintam sem lho fazerem sentir, sentir que o preço dos abusos lhes sairía pela
hora da morte, a esta classe politica alguém devia obrigar a esbarrar com a
cara em duas mãos, nas duas mãos de cada um de nós, não reconhecerão nunca
outro argumento, quando muito o garrote, ou o muro, mas não queria entrar por
aí para vos não assustar, além de que tenho uma reputação a defender...
Nada
teria custado ao pai da pikena ter montado a mota e rumado ao Algarve,
assumindo-se como um justiceiro cavalgando em honra da sua dama, atravessando
as planícies alentejanas como quem atravessa as pampas argentinas, cindindo de
dia besouros e besourinhos e de noite luzes e luzinhas, em direcção ao pirilampo
que tão bem soube mandar abaixo os sonhos a personalidade em formação e o
carácter ainda não consolidado de uma adolescente. O motard das pampas**, o Ernesto, o Che
tê-lo-ia feito, independentemente do escândalo que pudesse armar, Emília teria
adorado e talvez a sua jovem personalidade não tivesse claudicado ao ver o seu
cavaleiro acorrer em defesa da sua dama, ela. Foi um crime, a miúda foi
simplesmente crucificada.
O
que esta crise tem de pior é a dignidade que nos retira, em especial aos
jovens, esta crise seca tudo em seu redor, protege numa redoma os que estão bem
instalados e aos outros exige que trabalhem, que se esforcem para os manter sem
sequer lhes darem os meios para o fazerem, para se libertarem, para se
dignificarem, pois o trabalho como todos sabemos liberta e honra. Quanta
violência, quantas ambições por cumprir, quantas realizações ficam p’lo
caminho, quantos sonhos abandonados, quanto orgulho engolido, quantas vidas não
cumpridas, quantos dramas, quanta inconsciência e incompetência no que ao
prever, acautelar, providenciar e assegurar do futuro à nossa juventude
concerne. Só paroli, paroli, paroli… Outros países para se desenvolverem revoltaram-se. Encostem a nossa elite a um muro e não hesitem,
fuzilem-na…
O
mesmo devia ter feito o meu amigo àquele professor algarvio que sem um laivo de
consciência negou a uma miúda a existência, somente porque ela alimentava
outros padrões. Estava eu congeminando estas pérolas e, tão repentinamente quão
se tinha atrelado a mim, ei-la agora correndo em sentido contrário e no encalço
de um individuo que passara apressado, de gabardina, ou quispo, em pleno verão,
de aspecto untuoso, coxeando ligeiramente e arrastando a perna, aposto que a
fim de se ver livre dela, e fiquei-me olhando-os enquanto a vista mo permitiu,
depois meti-me no carro e também eu dei meia volta e marchei rua adiante, até
dar com eles numa fila enorme e enrolada, um magote de gente apinhada frente às
instalações do IEFP, essencialmente jovens e alguns menos jovens numa fila de
gente amorfa, sem futuro, sem dignidade, gente condenada, uma geração inteira condenada, ou ainda mais
gerações, todas elas condenadas… Pintura de Sónia Barreto - Évora - 2017
* Pinturas de Guido Daniele –
Milão - Itália
* https://www.facebook.com/guido.daniele.9
**http://www.saeditora.com.br/catalogo/relatos/de-moto-pela-america-do-sul/
** https://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%A1rios_de_Motocicleta
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** https://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%A1rios_de_Motocicleta