quinta-feira, 7 de julho de 2016

358 - O ARTISTA ILUMINADO ….……......……….

 Pintura de Guido Daniele – Milão - Itália *

Chegara perto de mim a todo o vapor, ofegante, nem bom dia nem boa tarde, nem olá, nem como vais ? Eu nem a entendia c’a pressa de falar e de se impor, recomendei-lhe calma, c’aguentasse os cavais. Não me pediu segredo nem dinheiro, pois é, é inacreditável, mas solicitou-me urgência, a mim, que descendo de um bufarinheiro e tal bastou p’ra me irritar, que impertinência. Urgência era de quando eu acreditava haver nas coisas principio meio e fim, urgência era quando cria que o mundo girava declinado simplesmente por cortesia, urgência era no tempo em que se ouviam as musas nos jardins, agora, agora se me querem ofender peçam-me urgência, mas urgência por quê ? E para quê ?

Urgência no meio desta demência é incongruência, confusão, absurdo, qual a nexexidade dela neste mundo agiota onde não bate a bota com a perdigota, mundo dividido, encantado, poliglota, sem bases, abstruso e fora de linha, pelo que me forcei a alhear-me dela, repetitiva, insistente e chata até ao tutano. Com esta idade podia ser um Picasso, um Matisse, Salvador Dali, um qualquer. Algo se passara com ela que ninguém aprofundara. Nem quando enlouquecera. Crucificaram-na.

São as capas dos jornais quem hoje me convoca, Teixeira dos Santos vigiando o desempenho da CGD, a raposa guardando o galinheiro, Pedro Guterres contratado pela Mota-Engil, bendita a pátria que tais filhos tem e para bem dos quais somos imolados.

Lembro-me dela desde há mais de vinte e tal anos, a esperança nos olhos, a magia nas mãos, sonhos em ebulição, o céu como limite. Ainda falei com o pai, Ermelinda fora crucificada, ainda lhe disse que se fosse comigo iria lá abaixo ao Algarve partir a cara ao tipo, porém sempre fora um pai com mais garganta que cabeça;

- E depois ?  Um professor não tem sempre razão ? 

Respondera-me.

De nada teria valido ter-lhe dito que não, de nada teria valido ter-lhe dito que naquele capitulo ser até muito raro terem razão. Não é a arte sobejamente subjectiva, furtando-a portanto e naturalmente aos cânones de uma razão preconceituosa ?

Mas, apertado entre subjectividade e cânones, esse pai ficara como ficam agora os clientes ou consumidores perante os caixas dos supermercados, quando a maquineta lhes pergunta após terem inserto o cartão multibanco;

- A crédito ou a débito ?

Ele inscrevia-se naquela folgada percentagem dos que não sabendo uma coisa nem outra e perante a pressão da fila em espera respondia sim. A ignorância não se publicita, a vida não é o varão d’uma discoteca e quando o banco lhe pede contas e as vai prestar, esclarece-as no segredo dos gabinetes e orgulha-se por a sua reputação não ser matéria do domínio público, nem sair beliscada apesar dos juros lhe custarem os olhos da cara.

A cara, isso, eu ter-lhe-ia ido à cara, crucificou-a, ele teria que me explicar, e não só a mim o que dissera à miúda, não se desfaz um sonho, não um professor, ainda por cima munido de uma subjectividade imprópria para a questão e usando de violência psicológica sobre uma adolescente que estava incumbido de formar e não de confundir. Era um artista iluminado certamente. Não se faz. As duas mãos estampadas naquela cara seria o mínimo que o pai devia fazer-lhe, talvez mesmo partir-lhe o nariz, fazê-lo sangrar, para ele aprender a ser homenzinho. Era por certo um professor fechado, um artista iluminado, imagino-o apreciador de cores fortes, de traços definidos, apreciador de vinhos, e de direitos, aposto que nunca falta a uma manifestação.

O maior problema desta crise nem é a obscena promiscuidade com que a matilha politica suga tudo à sua volta sem deixar nada para os outros, é que os outros lho consintam sem lho fazerem sentir, sentir que o preço dos abusos lhes sairía pela hora da morte, a esta classe politica alguém devia obrigar a esbarrar com a cara em duas mãos, nas duas mãos de cada um de nós, não reconhecerão nunca outro argumento, quando muito o garrote, ou o muro, mas não queria entrar por aí para vos não assustar, além de que tenho uma reputação a defender...

Nada teria custado ao pai da pikena ter montado a mota e rumado ao Algarve, assumindo-se como um justiceiro cavalgando em honra da sua dama, atravessando as planícies alentejanas como quem atravessa as pampas argentinas, cindindo de dia besouros e besourinhos e de noite luzes e luzinhas, em direcção ao pirilampo que tão bem soube mandar abaixo os sonhos a personalidade em formação e o carácter ainda não consolidado de uma adolescente. O motard das pampas**, o Ernesto, o Che tê-lo-ia feito, independentemente do escândalo que pudesse armar, Emília teria adorado e talvez a sua jovem personalidade não tivesse claudicado ao ver o seu cavaleiro acorrer em defesa da sua dama, ela. Foi um crime, a miúda foi simplesmente crucificada.

O que esta crise tem de pior é a dignidade que nos retira, em especial aos jovens, esta crise seca tudo em seu redor, protege numa redoma os que estão bem instalados e aos outros exige que trabalhem, que se esforcem para os manter sem sequer lhes darem os meios para o fazerem, para se libertarem, para se dignificarem, pois o trabalho como todos sabemos liberta e honra. Quanta violência, quantas ambições por cumprir, quantas realizações ficam p’lo caminho, quantos sonhos abandonados, quanto orgulho engolido, quantas vidas não cumpridas, quantos dramas, quanta inconsciência e incompetência no que ao prever, acautelar, providenciar e assegurar do futuro à nossa juventude concerne. Só paroli, paroli, paroli… Outros países para se desenvolverem revoltaram-se. Encostem a nossa elite a um muro e não hesitem, fuzilem-na…

O mesmo devia ter feito o meu amigo àquele professor algarvio que sem um laivo de consciência negou a uma miúda a existência, somente porque ela alimentava outros padrões. Estava eu congeminando estas pérolas e, tão repentinamente quão se tinha atrelado a mim, ei-la agora correndo em sentido contrário e no encalço de um individuo que passara apressado, de gabardina, ou quispo, em pleno verão, de aspecto untuoso, coxeando ligeiramente e arrastando a perna, aposto que a fim de se ver livre dela, e fiquei-me  olhando-os enquanto a vista mo permitiu, depois meti-me no carro e também eu dei meia volta e marchei rua adiante, até dar com eles numa fila enorme e enrolada, um magote de gente apinhada frente às instalações do IEFP, essencialmente jovens e alguns menos jovens numa fila de gente amorfa, sem futuro, sem dignidade, gente condenada, uma geração inteira condenada, ou ainda mais gerações, todas elas condenadas…                                                                                                                                                                                                                                           Pintura de Sónia Barreto - Évora - 2017

* Pinturas de Guido Daniele – Milão - Itália
* https://www.facebook.com/guido.daniele.9
**http://www.saeditora.com.br/catalogo/relatos/de-moto-pela-america-do-sul/
** https://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%A1rios_de_Motocicleta