A mota
atormentava-me e em simultâneo assustava-me. Toda aquela parafernália de
campainhas e luzinhas fazia-me temer uma paragem nada agradável devida a falta
de combustível. E depois como seria, não era coisa que se levasse às costas,
pelo que apontei-a logo à Mobil, onde cheguei, adivinhem, lembram-se daqueles
filmes do 007 em que ele desligava a bomba no último segundo e o marcador
digital da espoleta nos indicava que o fizera no derradeiro 0, 007 milissegundo
antes da coisa ter ido pelos ares ? Pois bem, mas eu afinal cheguei à bomba, de
gasolina ressalvo, e depois de atestar verifiquei que o depósito afinal (outra
vez afinal, o jogo de ontem fez-me mal, ou o jogo ou as mistelas) ia eu dizendo que afinal ainda lá teria gasosa para uns cinquenta
quilómetros pelo menos, os japoneses não são nada exagerados, devem ter ficado
com traumas e complexos após Fukushima. Aposto.
Atestei
e fui pagar, o Ludovino, gentil como sempre, ofereceu-me uma linda bola de
praia que presto ofereci a uma criancinha ranhosa que andava por ali e eu, para
corresponder à empatia perguntei-lhe pela brasileira, a brasileira não é a
Brasileira do Chiado, mas uma beldade tropical que lhe tem arruinado a vida e a
saúde, o posto de gasolina é o último negócio de família que, por causa dela,
ou apesar dela ainda não trespassou, vai morrer feliz o Ludovino, novo e feliz,
mas quem a conheça reconhecer-me – á razão, a mim e mais ainda ao Ludovino, há
coisas que nos fazem acreditar na beleza da natureza, na finalidade positiva da
vida, que nos enchem de devoção ambientalista, e estávamos nisto, filosofando, quando
pelo canto do olho topei o freguês que se seguia preparando-se para pagar e não
fui capaz de me suster;
-
Foda-se ! Você é policia ó amigo ! Ou é ou foi ! Multou-me há quarenta anos por
causa d'uma merda de uma mijinha às duas da manhã ! Nunca mais esqueci essa
cara ! Você não pode ser bom homem !
E
era verdade, era ele, e era policia aliás estava aposentado. Eu nunca esquecera
aquela cara de buldogue, e disse-lho, fora em 1974, não recordo o dia exacto
mas foi entre o 16 de Março e o 25 de Abril, o Café Portugal fechava às duas da
manhã, a malta ficara-se na conversa, que nos levou até ao início da rua Gabriel
Victor do Monte Pereira onde, apertado, dada a hora tardia e o escuro de um
pequeno cotovelo que a rua fazia, dei dois passos e aliviei-me da cerveja que
me atormentava a plenitude do pensamento e me desassossegava o intelecto e a
dialéctica.
Nem sei
de onde eles apareceram, eram dois, andavam acossados desde a intentona de
Março e eu, eu e todos os cabeludos, éramos decerto gente da oposição, ou da
oposição ou dela simpatizantes, e não se enganavam.
-
Mas onde queria você que eu me aliviasse com o café fechado homem ?
Ontem,
então, como hoje, não havia, nem em quantidade e muito menos em qualidade,
casas de banho públicas que satisfizessem, e já que estamos em maré de filosofias
e retóricas adianto-vos duas coisinhas, por um lado uma vez houve em que a brasileira
quase me convenceu a tornar-me vegan, e por outro, outro lado não se percam,
posso assegurar-vos que muitíssima coisa não mudou absolutamente nada desde
então neste país e algumas até mudaram para pior, para bem pior ou muito pior depois
do 25 de Abril.
Resumindo,
penalizou-me em setenta e cinco escudos, o que à época e por uma mijinha foi um
dinheirão ! Multado por indecente e má figura. Talvez agora o Ciríaco, o
Pereira e a Ana compreendam melhor o gozo que me dá mijar em todo o lado e
sempre que posso, é a minha luta, é uma tara, um complexo, uma vingança cuja
divida se encontra ainda muito longe de me estar paga na totalidade.
O polícia,
de canadianas e arrastando o esqueleto lá abalou num mata-velhos a chiar de
ferrugento. Sobreviveu ao 25 Abril, decerto se adaptou, reformulou, eu não vos
disse que quase nada mudou ? Nem a merda nem as moscas, só mudou a retórica, a
dialéctica, a demagogia, que passou a ser feita à maneira *…