Pois é, pois
foi, foi assim mesmo que a coisa se passou, sucedeu, apesar do escuro que
depois se fez média luz e finalmente luz. Inicialmente
foi um leve olor, um odor insinuante, o perfume a rosas pela manhã, acabadinhas
de regar, orvalhadas.
Só passado
algum tempinho, e quando a luz ficou de ficar, média, veio a vista, o
deslumbre, a visão, e lá voltou de novo e antes de tudo o insinuante perfume,
para imediatamente depois a sensual aparição. Aí já deu para enternecer mais,
ainda mais, derreter-me digamos. Nada mais restava ante tal milagre que
perseguir aquele odor perfumado até às pétalas orvalhadas e, primeiro
farejá-las, aspirar-lhes o perfume, a alma, deixarmo-nos envolver até
flutuarmos pairando sobre o fruto da roseira, fruto é como quem diz, flor, flor
milagreira e então, após envolvimento que me colocou boiando sobre mim mesmo,
aliás mais acertado seria dizer flutuando sobre o roseiral, veio-me arrebatamento tal que senti chegando-me aveludado, porém nada subtil, camuflado
sob a forma de um estremecimento ternurento, assim para um sentimento que nos
colhe a vontade mas livremente nos leva lá, nos conduz lá.
Digo nós por
não por ser caso único, como eu haverá milhares, milhões, a quem ante tal
aparição acomete uma metamorfose e, com crente e respeitosa genuflexão,
abdicam da vontade própria e deixam-se conduzir pelo arrebatamento do momento,
pela emoção e estremecimentos do coração, por tudo que de admirável encerra e
existe na paixão.
Não é este o
tempo do livre arbítrio, estamos nos campos do desejo, da cegueira, da pulsão,
diria que da ressurreição pois fico outro, todos ficamos um outro se a vontade
de não sei quê nem sei de quem nos enovela, enleia, atrai e seduz quando pétalas
banhadas de orvalho, abertas e perfumadas nos excitam o olfacto, os sentidos e
a razão, razão e sentidos que embotam
sem remissão conduzindo-nos ou atraindo-nos ao crucial, ou desaire, como um
buraco negro suga o universo e toma as rédeas de quem o orbite, captando-o,
cooptando-o para si, para seu exclusivo proveito ou antes repartido repasto,
gozo, prazer, partilha, comunhão.
Dias
inesquecíveis em que a Primavera pode acontecer no Verão, Outono, Inverno,
enfim, quando um homem quiser ou se dispuser a debruçar-se com carinho e
devoção sobre pétalas de rosa, orvalhadas ou não, perfumadas ou não, ciente ser
ele a quem cabe regar em cada dia, cada ocasião o jardim do Éden, as árvores da
vida e do conhecimento, o roseiral que lhe devolva em oferenda o madrigal de
paixões cuja seiva lhe caberá colher e lhe permitirá dessedentar-se en dépit de
la saveur acre e adocicado a maçãs verdes, le merveilleux fruto do paraíso
dissimulado em cada roseiral, em cada rosa, em cada pétala, em cada madrigal.
Assim o tomei
para mim e me tornei poeta, ou por ser poeta o colhi para mim descobrindo nele
um vendaval de paixões irreprimíveis, como se em vez de tocado uma rosa ou
beijado as suas pétalas tivesse aberto com ou sem cuidados a caixa de Pandora e
agora, liberto de mim me pudesse entregar de corpo e alma tal qual tivesse sido
tocado ou bafejado por sagrada epifania.
Sobre os
lençóis alvos sorria um mar de pétalas, como se ventania ciclónica os tivesse
atravessado um dia e, apesar do arrebatamento inquestionável pairando na luz
que dilacerava o quarto numa miríade de questões, apreensões e interrogações,
em cada pétala uma gota de orvalho persistia, mantendo o fulgor a frescura e a
beleza de cada rosa desse roseiral encantado no seio de um escuro que depois se
fez luz, média luz e luz, por fim luz perfumada em que, segundo os anjos, numa
manhã, com arrebatamento e paixão num estremecimento desejado e consentido se
regou o amor.