Estando
um dia bem bonito, o verde campo florido de malmequeres preenchido libertou no
ar mil cheiros, desejos e tantos apelos, que acordei em alarido. Assim que o
sol despontou invadiu-me a alegria e nada nada demorou pr’a que liberta do
enfado, tivesse agarrado o carro e apontando estrada incerta vogando sem
qualquer fado, como quaisquer navios perdidos rodando em estrada deserta.
Faço
isto algumas vezes para fugir ao fastio. Nada tendo a proibir-me libertei-me
das grilhetas e quando alguém me chamou era tarde e já corria tanto quanto as
borboletas. Corria pl’o Alentejo, pl’o Alentejo que eu amo, campos verdes e
floridos, cheiros inebriantes e queridos, da terra que o olhar conquista, paisagem
a perder de vista, como em vasto mar oceano.
Rolava
despreocupada por uma estrada tão pisada, quando, sobre o alto de um monte me
acenou o branco azul do casario deslumbrante. Em consciente desvario virei o
rumo rumado e o almoço traçado pr’onde se fixavam os olhos e rumei a Arraiolos,
vila que sempre adorei.
Sempre
sempre no beicinho, as queijadas de toucinho tão macias, tão gostosas, de
chorar e pedir mais. Almocei no Condestável, uns segredos de bom porco e outras
especiarias tais. Passeei, calcorreei, ruas agora renovadas, outras inda
esburacadas e tentei ver a verdade de conversas apuradas sobre estórias tão
diversas como os buracos da praça, silos pr’a cuidados futuros, talhas de
tintureiros em apuros** ou simples contos brejeiros de contadores feiticeiros.
Com
passos vagos, gestos lentos, me passeei. E do castelo enxerguei quando o olhar
semeei, como um sopro sobre as vagas, as searas ondulando, sussurrando
histórias de antanho que, ofuscando, convidavam, a ver imagens de armas, de
Miras e de Rivaras, de D. Fernando de Bragança o maior de Portugal e abastado
senhor. Histórias de então e de hoje, de gentis almas misteriosas, recatadas,
habilidosas, em secretas e novas missões arroladas, cujas vidas só o são, por
muitas vezes em verdade, nos mais belos contos de fadas.
E,
frente a quem dá a vida, num gesto de grande amor sem esperar qualquer outra
paga que não seja um mero louvor, pequena fonte verte água e alimenta um
espelho dela onde de forma singela se reflecte num mosaico, belo caleidoscópio
arábico (?) que honra essa nobre terra.
Descida
à vila de novo, labirinto onde mãos de fada cumprem turnos de horas mortas, vi
dar à luz milagres extras, partos saídos de mãos destras, cuja beleza nos
enleva e em sonhos nos revela ao tocar-lhes de mansinho, o ciciar do carinho
com que portas dentro tecem, tapetes que vamos sentindo como janelas abrindo
caminho a vidas mais belas. ***
Não
vi nessa terra mágica nem mistérios nem segredos, mas vi, como nos degredos,
trágica sina da gleba, gestos ledos mas estudados, donde irradia um esplendor
que ofusca tristes tormentos passados na gestação dos enredados novelos.
Calhou-lhes como fado e em destino tecer obras que glorificam e que sorrindo
fabricam c’a gravidade de almas nobres, mas não por certo p’rós pobres.
E
ali, a ver se encantam, mesmo à mão de semear, em exposições que nos espantam,
como quem nos está a chamar, podemos ver a beleza estender-se numa certeza de
quem sem as leis dominar, nos borda em excelsos padrões, geométricas
constelações que nós gentios cobiçamos se para casa levamos com um aviso; “ não
pisar “ !
E
não havia segredos, nada até de espectral, apenas trabalho extremo, obras de
alto coturno e a prova de que há na vida quem tenha tido por destino não um ofício
de menino, mas ofício virado vício, em que a agulha a trabalhar, vai tecendo no
bulício de vocações ancestrais, tapetes de porcelana, cuja marca não engana
escultores, pintores ou amores de quem a verdade ama. Acariciei-os de leve,
fechei os olhos expectante e ao toque do tapete, os sentidos se me abriram,
qual janela mirabolante se expandiram e quis crer, de olhos fechados, mesmo sem
ver, que a vida se me revela, e que estar viva, que ter vida, é ainda a coisa
mais bela.
* Publicado por Luísa Baião em 10-2-003, coluna Kota
de Mulher, Diário do Sul – Évora
Pode ter existido em Arraiolos um destes complexos tintureiros.
Pode ter existido em Arraiolos um destes complexos tintureiros.
Arraiolos complexo tintureiro surgido em escavação.