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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

401 - HÁ FADAS EM ARRAIOLOS, por Luísa Baião*


 Estando um dia bem bonito, o verde campo florido de malmequeres preenchido libertou no ar mil cheiros, desejos e tantos apelos, que acordei em alarido. Assim que o sol despontou invadiu-me a alegria e nada nada demorou pr’a que liberta do enfado, tivesse agarrado o carro e apontando estrada incerta vogando sem qualquer fado, como quaisquer navios perdidos rodando em estrada deserta.

Faço isto algumas vezes para fugir ao fastio. Nada tendo a proibir-me libertei-me das grilhetas e quando alguém me chamou era tarde e já corria tanto quanto as borboletas. Corria pl’o Alentejo, pl’o Alentejo que eu amo, campos verdes e floridos, cheiros inebriantes e queridos, da terra que o olhar conquista, paisagem a perder de vista, como em vasto mar oceano.

Rolava despreocupada por uma estrada tão pisada, quando, sobre o alto de um monte me acenou o branco azul do casario deslumbrante. Em consciente desvario virei o rumo rumado e o almoço traçado pr’onde se fixavam os olhos e rumei a Arraiolos, vila que sempre adorei.

Sempre sempre no beicinho, as queijadas de toucinho tão macias, tão gostosas, de chorar e pedir mais. Almocei no Condestável, uns segredos de bom porco e outras especiarias tais. Passeei, calcorreei, ruas agora renovadas, outras inda esburacadas e tentei ver a verdade de conversas apuradas sobre estórias tão diversas como os buracos da praça, silos pr’a cuidados futuros, talhas de tintureiros em apuros** ou simples contos brejeiros de contadores feiticeiros.

Com passos vagos, gestos lentos, me passeei. E do castelo enxerguei quando o olhar semeei, como um sopro sobre as vagas, as searas ondulando, sussurrando histórias de antanho que, ofuscando, convidavam, a ver imagens de armas, de Miras e de Rivaras, de D. Fernando de Bragança o maior de Portugal e abastado senhor. Histórias de então e de hoje, de gentis almas misteriosas, recatadas, habilidosas, em secretas e novas missões arroladas, cujas vidas só o são, por muitas vezes em verdade, nos mais belos contos de fadas.

E, frente a quem dá a vida, num gesto de grande amor sem esperar qualquer outra paga que não seja um mero louvor, pequena fonte verte água e alimenta um espelho dela onde de forma singela se reflecte num mosaico, belo caleidoscópio arábico (?) que honra essa nobre terra.

Descida à vila de novo, labirinto onde mãos de fada cumprem turnos de horas mortas, vi dar à luz milagres extras, partos saídos de mãos destras, cuja beleza nos enleva e em sonhos nos revela ao tocar-lhes de mansinho, o ciciar do carinho com que portas dentro tecem, tapetes que vamos sentindo como janelas abrindo caminho a vidas mais belas. ***

Não vi nessa terra mágica nem mistérios nem segredos, mas vi, como nos degredos, trágica sina da gleba, gestos ledos mas estudados, donde irradia um esplendor que ofusca tristes tormentos passados na gestação dos enredados novelos. Calhou-lhes como fado e em destino tecer obras que glorificam e que sorrindo fabricam c’a gravidade de almas nobres, mas não por certo p’rós pobres.

E ali, a ver se encantam, mesmo à mão de semear, em exposições que nos espantam, como quem nos está a chamar, podemos ver a beleza estender-se numa certeza de quem sem as leis dominar, nos borda em excelsos padrões, geométricas constelações que nós gentios cobiçamos se para casa levamos com um aviso; “ não pisar “ !

E não havia segredos, nada até de espectral, apenas trabalho extremo, obras de alto coturno e a prova de que há na vida quem tenha tido por destino não um ofício de menino, mas ofício virado vício, em que a agulha a trabalhar, vai tecendo no bulício de vocações ancestrais, tapetes de porcelana, cuja marca não engana escultores, pintores ou amores de quem a verdade ama. Acariciei-os de leve, fechei os olhos expectante e ao toque do tapete, os sentidos se me abriram, qual janela mirabolante se expandiram e quis crer, de olhos fechados, mesmo sem ver, que a vida se me revela, e que estar viva, que ter vida, é ainda a coisa mais bela.

  
* Publicado por Luísa Baião em 10-2-003, coluna Kota de Mulher, Diário do Sul – Évora    



 Pode ter existido em Arraiolos um destes complexos tintureiros. 
  Pode ter existido em Arraiolos um destes complexos tintureiros.
Arraiolos complexo tintureiro surgido em escavação.