Aconcheguei-lhe ternamente a manta junto aos ombros e deixei-a ficar adormecida, era cedo ainda, a noite
fora-lhe tormentosa, que descansasse agora enquanto eu cuidava de que tudo
estivesse pronto para o pequeno-almoço mal acordasse. Quanto a mim esperaria por
ela, não que não tivesse fome, que tinha, inda que pouca, mas esperar por ela
era modo de demonstrar o amor e a consideração que lhe tinha e me merecia.
Tínhamos
marchado a noite toda e todos estavam exaustos e famintos, o sol não demoraria
a despontar abrasando tudo, tudo e todos que se aventurassem debaixo dele,
ouvia os homens fazendo medições antes que a última estrela se apagasse e
discutindo, a questão não valia a discussão, mais milha menos milha, apesar de
tudo a noite tinha rendido. Digo apesar de tudo porque trazê-la connosco
atrasara-nos a todos, atrasara e metera em risco, eu sabia-o e mesmo assim dei
a ordem, que improvisassem uma padiola e a trouxessem, custasse o que custasse.
Ninguém respingou, e ela, mau grado o estado periclitante em que se encontrava
e o sangue que perdera, sobrevivia. Perdera e continuava perdendo, pouco
mas perdia.
Hoje,
que por razões um tudo-nada idênticas recordo esses dias lembro que estiveram
na minha resolução de saída e abandono. Talvez abandono obrigue a pensar numa
obrigação que alguém me tenha imposto, numa expulsão, que não foi o caso, nem
uma atitude minha de virar as costas irresponsavelmente, o que não aconteceu.
O que aconteceu foi que nos devemos obrigar a ser coerentes e consequentes, mormente
em cenários como aqueles em que vivíamos. Verdade que ela se salvou, verdade
que sobrevivera, mas colocara toda a coluna em perigo, todo o grupo, e todos
sabiam que por amor eu tinha infringido as regras, e as regras têm que ser
iguais para todos, não jogávamos a botões, e não há vidas mais valiosas que outras,
haver há sempre, ou haverá, como aconteceu, mas temos que estar aprontos para
pagar o seu preço, e o meu foi uma demissão honrosa.
Néli * tinha sido salva mas eu perdera-me, perdera a autoridade, deitara a perder o
respeito que me era devido, o crédito acumulado, desbaratara o prestigio que
arduamente tinha conquistado, dissipara a confiança que em mim tinha sido depositada
a um preço alto, altíssimo, e quantos o cumprimento das regras tinha condenado
? Não se vence uma guerra com o coração, vence-se com a razão e razão e emoção
estão por vezes nos antípodas ainda que não possamos perder de vista nem uma
nem outra, nunca. É nesse estreito e periclitante equilíbrio entre razão e
emoção que radica a honra, a hombridade, a probidade, a rectidão, a confiança,
o respeito e a nobreza de caracter que carregamos connosco, desfeito esse equilíbrio,
por si só a carga alijar-se-á.
Deus
concedeu-nos livre arbítrio para que não sacudamos a água do capote. Não há
arbitrariedades, o que há, demasiadas vezes, é quem não assuma a
responsabilidade pelos seus actos, por isso eu tinha que me demitir, tinha que
me respeitar, e aos demais. A quantos naqueles anos caóticos tinha sido
concedido o tiro de misericórdia para os poupar ao sofrimento, para os poupar
de cair nas mãos do inimigo, para que não fossem um peso para os demais, sim, a
quantos tinha sido concedido esse tiro de misericórdia para que outros
sobrevivessem ? Vivessem ?
Regras
são regras, em cenários assim não podem ser personalizadas, nem pontuais, têm
que ser gerais, universais, iguais. Quem vai sabe ao que vai, sabe o que o
espera, sabe com o que contar, nunca vi ninguém chorar, nem implorar, mas vi
agradecer, sim, despedir-se e agradecer.
Uma única
vez e por acordo de todos tínhamos infringido as regras, a pedido de Tchaló que
deixáramos ferido na esperança de conseguirmos voltar a tempo com um Unimog, ou
um helicóptero. Não conseguimos, mas ele soubera que esse risco existia e
fora-lhe recomendado que guardasse para si a última bala. Não guardou, ou não
guardou ou não teve oportunidade para isso. Quando conseguimos voltar em seu
socorro chegámos tarde, atrasados, um dia no máximo mas atrasados. O cenário
que se nos deparou não deixava dúvidas, muito provavelmente tinha sido comido
vivo, rezámos para que Deus o não tenha permitido mas a quantidade de mabecos
mortos à sua volta e a distância a que se encontrava a arma, ainda municiada,
indicavam luta renhida, os mabecos pagaram um preço alto antes de lhe chegarem
ao sangue cujo odor os atraíra. O seu olfacto detecta um cheiro a dez milhas de
distância, é cinco vezes mais apurado que o das hienas. O torso do infeliz
Tchaló, que não estava ainda limpo pelas aves de rapina, era um relógio
assinalando a hora da morte, os restantes membros, dispersos, indicavam a luta travada
pela presa entre mabecos esfaimados, a ausência de perfuração no crânio provava
que não tinha guardado para si a última bala, restava a questão crucial,
estaria ainda vivo, ainda consciente quando os mabecos… Tínhamo-lo deixado
muito ferido, consciente de si mas muito debilitado, com água bastante, mas o
esforço que os cães da pradaria lhe terão exigido pode ter sido demais para
ele. As nossas boas consciências exigiam-nos que tivesse falecido antes de…
A
morte não pode ser aleatória, uns sim outros não, os homens criaram as regras
para se respeitarem a si mesmos, para se superarem, para se honrarem. Na aldeia
fui louvado ao chegar com Néli numa padiola, viva, mas a honra tem sempre um
preço, ou não seria honra. O amor sobreviveu graças ao coração mas sucumbiu às
regras, Néli não podia voltar a aceitar-me. Eu demonstrara ser um fraco e ela
era e continuava sendo a vanguarda, uma guerrilheira, uma líder. A
verticalidade e o proscénio assim lho exigiam.
* http://mentcapto.blogspot.pt/2016/11/396-lebam-ku-bo-o-canto-da-esperanca.html