Eles
Cumprira a
missão de que fora incumbido, não desiludira quem nele confiara, só isso
poderia explicar o seu ar feliz, morreu nos meus braços e juro que nunca vira,
nem voltei a ver, tão lindo morto, tão feliz morto. Morto mas feliz, e se eu vi
gente morrer, e morta… Chorei claro, não sem antes ter gritado umas quantas ordens, mas
chorei.
Naquele
tempo, situação e lugar não havia nem houve nunca autópsias, nem o feliz morto
a teve, mais a mais sabia-se do que tinha falecido, exaustão e desidratação. O soba
ordenou a meia dúzia de homens que providenciassem o enterro e designou mais
dois que levassem à família e aldeia do morto a triste nova e, descontada a
azáfama causada pelas notícias por ele trazidas e que originaram um pandemónio,
a vida continuou.
Também ali havia que enterrar os mortos e cuidar dos vivos,
não sendo banal a morte era contudo uma coisa normal, com a qual todos nascemos
como nascemos com cor nos olhos, não se saber quando chegará só nos alivia e apimenta
a vida, não nos exime dela, morte. Como disse não era banal morrer-se, sendo
até muito chorada e lamentada qualquer morte, porém jamais temida. Como se pode
temer algo que temos certo desde o primeiro minuto, desde o primeiro choro,
desde o primeiro grito ?
Sessenta dos
melhores de entre nós voluntariámo-nos para aquela missão, “Galinha do Mato” era
uma missão arriscada mas imprescindível, essencial à nossa sobrevivência
colectiva, do seu êxito dependeria o bem-estar futuro e a vida de todos na
aldeia. Com o passar do tempo os recontros recrudesceram de intensidade deixando
há muito de ser recontros para tomarem a regularidade e a dimensão de
confrontos, urgia portanto acautelar, prever, assegurar, prevenir, garantir uma
posição forte, e todos tinham ouvido bem, eram expectáveis entre dez a vinte
por cento de baixas, feridos graves teriam que ser deixados ao seu próprio
cuidado, Deus e o destino saberiam que fazer, seria uma operação temerária e,
por certo implacavelmente perseguidos na retirada, todavia a vida tem destas
coisas, força-nos a estas opções, a vida é feita de escolhas, escolhemos a
segurança de todos, a segurança da aldeia, o preço poderá ser alto, só quero a
meu lado quem esteja disposto a pagá-lo se necessário.
Não que por
esses dias se morresse feliz, mas a morte era companheira diária e inseparável,
estava presente em tudo que fazíamos, por isso nunca se pisava em falso, tudo
era previsto, antecipado, estudado, planeado, e a estratégia decidida. Cada um
sabia exactamente o que fazer e o que dele se pretendia, e todos conheciam o
objectivo final e comum, todos sabiam que se arriscavam para o mesmo fim, o bem
comum, o bem de todos, sabia-se por que se morria caso se morresse, e como tal
ninguém dava um passo em falso, ninguém se desviava do plano traçado, a sorte
de cada um dependia de todos e a de todos estava nas mãos de cada um.
A marcha fora
penosa, no deserto caminhámos de noite descansando de dia, ao sexto dia
parámos, teria que ser dado descanso ao corpo antes de lhe exigirmos o máximo,
e limpar armas, rever planos, mandar batedores, esperá-los e ouvi-los,
recapitular tudo de novo e de acordo com as novas por eles trazidas, sopesar as
forças em presença, redefinir estratégias e tácticas, assinalar alvos e perigos
prioritários, combinar uma saída de escape para fuga ou retirada, comer e beber
q.b. e dormir antes do esforço final.
Toda a semana
caminháramos a pé, numa operação daquele melindre veículos podiam ter-nos
traído, são difíceis de esconder, são observados a longa distância e deixam
rastos visíveis do ar, deixam fumos, óleos, sobretudo “gritam” mal sejam
tocados por qualquer radar, por isso preferimos a marcha, mesmo carregados, e
agora tratava-se também de limpar, olear e municiar as armas, ao sétimo dia
esperáva-nos um trabalho de monta, o Senhor tinha descansado, mas cabia-nos
fazer um bom trabalho nesse dia em que Ele decerto teria os olhos colocados em
nós, como tal cada um recolheu-se em si mesmo e rezou as suas orações.
Vós
O regresso
dos batedores constituiu uma surpresa de arromba, nada, não havia nada, nem um
poste de pé, o próprio vento apagara todas as marcas, só a areia e a terra do
chão, ainda empapadas em óleos assinalava o lugar, não fora isso e ninguém
diria ter existido ali uma base do SAA, uma base perigosa, uma base ofensiva,
uma base de onde partiam todas as surtidas que a nossa aldeia e todo o sul tinham
sofrido no último ano. A desolação foi total, mas foi debaixo dela que o
regresso se fez, por razões que todos compreenderão esta caminhada pareceu
maior e mais cansativa.
Ao sétimo dia
do regresso encontrávamo-nos a uma légua da aldeia quando amanheceu, e de
imediato toda a gente pôde ver a dispersa mas alta coluna de fumo que se erguia
para a sua banda, um batedor esclareceu, «aquilo ser fumo velho, ser fumo com
dois dia, dois pa três pá», entreolhámo-nos e num ápice carregámos mochilas e tudo
que havia a carregar, o pequeno-almoço ficaria para depois, por agora era meter
uma bucha para enganar a fome e dar corda aos sapatos.
Eles
Quanto mais
nos aproximávamos maior era a devastação visível, o panorama, a aldeia fora
alvo de um ataque em peso na nossa ausência, da aldeia e do aquartelamento nada
restava em pé, a brutalidade do ataque tinha apanhado todos completamente de
surpresa, tinha sido uma autêntica chacina, pelo calibre dos cartuchos
hélicanhões tinham participado, nem foram respeitados velhos nem mulheres, nem
crianças e, quando conseguimos efectuar uma contagem minimamente credível
calculámos duzentos e quarenta, havia corpos irreconhecíveis, partes de corpos,
bocados aleatórios espalhados por toda a parte, era impossível contabiliza-los
tal o modo como alguns ficaram, andei quase um mês passado da
mioleira, inda assim faltariam cerca de vinte pessoas, teriam tido tempo de
fugir ? E porque não regressaram já ?
A vida
convive diariamente com a morte, é para a vida que devemos preparar-nos por ser
ela o milagre, a morte está certa, pode surgir com mais pressa, ou mais
vagar, estar demorada, mas é garantidamente a única certeza e garantia que a
vida nos consente. Desperdiçar a vida e temer a morte é um absurdo. Meses atrás
aquele negro que em meus braços recebera uma morte feliz salvara-nos a todos, durante dois dias correu para nos avisar, todos
lhe ficámos devedores da vida, devido a si o acampamento fora desmontado e
abandonado, e quando alguém viera da mata por nós tivera uma desilusão tão
grande quão a nossa meia dúzia de dias atrás, encontrara a aldeia deserta,
abandonada. Mas desta vez ninguém soubera, ninguém correra a avisar, a matança
fora pérfida e excepcionalmente bem planeada.
A vida é
isto, quantas vezes me lembro que se estou vivo o devo a essa grande derrota e
desilusão que sofri, eu e mais cinquenta e nove, viver é manter a morte numa
corda bamba, a vida é um fluxo, um refluxo, poucos pensam nela mas deviam
pensar, muitos pensam na morte quando precisamente esses deviam esquecê-la,
descansar, ignorar o devir…
Naturalmente
logo houve quem garantisse ter eu uma estrelinha, que já fora a uma guerra e
saíra dela vivo, que haverá gente para quem a estrelinha não brilhe tanto como
a minha. Gente há que me achará maluco, que achará andar eu ainda passado da
mioleira, porém sou bastante certinho e confiável, quero dizer que podeis
confiar em mim, que sou pessoa de palavra, normal, sem taras, ainda penso antes
de agir, planeio as coisas, não avanço às cegas, prevejo, penso, medito e
decido, só depois ajo, e não me afasto um milímetro do que planeei.
Ok, concedo
não ser fácil, nem eu caso único, há bué de pessoas que o conseguem, ainda assim
entendo que não devemos ser tão rígidos quanto a enfrentar a morte, sim, para
alguns será mais fácil enfrentar um exército com uma arma nos braços, para
outros puro terror. Como tudo na vida a coragem perante a morte aprende-se, como se aprende a calma, aprende-se e cultiva-se ao longo de uma vida, através da experiência, da sabedoria, da leitura, porque no que concerne
à morte, a única coisa que te permitirá será regatear e impor-lhe digidade, a morte aceita-se ou não, nunca será uma questão do momento mas de atitude, sempre foi e será uma questão de atitude perante a vida.
Carpe diem.
Nós
* Pode ver também: http://mentcapto.blogspot.pt/2011/09/manhinga-mami.html